11 Agosto 2021
Governar a vasta e variada produção bibliográfica de Romano Guardini, considerado por muitos como um Padre da Igreja dos nossos tempos, conseguindo sugerir chaves hermenêuticas e caminhos de sistematização, é uma operação complexa, que requer um longo tempo de árdua aplicação e iluminada compreensão.
O comentário é de Giovanni Chifari, teólogo italiano e professor do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Foggia, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 08-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Massimo Naro, teólogo sistemático da Faculdade Teológica da Sicília em Palermo, lida há anos com Romano Guardini e publicou sobre o teólogo ítalo-alemão preciosos artigos científicos e um robusto livro pela editora Rubbettino, intitulado “Archetipo e Immagine” [Arquétipo de imagem] (2018). O estudo posterior, “Scienza della realtà” [Ciência da realidade], concentra-se na epistemologia teológica de Guardini, pesquisando aquilo que confere unidade à obra e ao pensamento do teólogo.
O livro, após uma breve Introdução (pp. 7-8), se desenvolve em dois capítulos: “Reproduzir o conhecimento próprio de Deus: natureza e tarefa da teologia” (pp. 9-31) e “Inverter a analogia: uma contribuição à epistemologia teológica” (pp. 37-67). Seguem-se a Conclusão (pp. 71-74) e o Índice de Nomes (pp. 75-76).
Segundo Massimo Naro, o que dá unidade à obra e ao pensamento de Guardini é “o interesse pela relação entre o homem e Deus” (p. 10), iluminado pela revelação e relido e compreendido de novo em Cristo. “O dizer e o dar-se de Deus – explica Naro – ocorrem em Cristo ou, melhor, são Cristo” (p. 11), que é, insiste o teólogo siciliano, no rastro de von Balthasar, “o universal concretíssimo [...] que nos permite conhecer a Deus na sua relação com o homem” (p. 11).
Massimo Naro
Scienza della realtà.
La riflessione di Romano Guardini sul senso
della teologia Bolonha: EDB, 2020, 77 páginas.
Qual é, então, a natureza da teologia? Qual é a sua tarefa? Para Naro, a teologia é “cristocêntrica” p. (13) e tem uma vocação transdisciplinar. Entre os méritos de Guardini, segundo Naro, está “a pretensão de levar a razão de volta para dentro do ato de fé [...] concebendo a dimensão natural imersa no sobrenatural” (p. 16).
Um autêntico conhecimento teológico, como Lonergan também mostrará, depende do ato de fé, e Naro também concorda que ela é “verdadeiramente teológica na medida em que é teologal” (p. 21).
Trata-se de uma passagem decisiva. O próprio Guardini, no ensaio “Sagrada Escritura e ciência da fé”, observava que “o conhecimento teológico depende da vida de fé, da oração, da conduta cristã, da santidade da vida”. Sem desconsiderar esse fundamento espiritual, Guardini “se propunha a elaborar uma teologia que fosse epistemologicamente ulterior em relação a todos os outros saberes” (p. 24), uma espécie de ciência da realidade ou ainda da “real relação de Deus com o homem em Cristo Jesus" (p. 25), “logos humanado” (p. 26).
Junto com o teólogo E. Ortigues, Naro define essa teologia guardiniana como a “teologia do adjetivo possessivo”, não do “Deus em si”, mas do “Deus meu”, acrescentando que é precisamente “o dizer-se e o dar-se de Deus que dita a tarefa à teologia” (p. 28).
O resultado é uma teologia teologal em que a vigilância da fé pode fazer a passagem da apologética medieval para a teologia fundamental moderna. Guardini intui que, na fé, se realiza uma nova compreensão do objeto, como diria Lonergan em “Il metodo in teologia”: se o objeto investigado é autêntico, ocorre uma conversão do sujeito ao objeto. Isso significa que o conhecimento teológico pode se abrir à dimensão contemplativa (cf. p. 30).
Aprofundando a teologia de São Boaventura, Guardini também descobre que é preciso valorizar a “dimensão existencial da teologia”, a sua natureza relacional. Naro define esse método guardiniano como um “procedimento agápico”: “Para teologar, é preciso percorrer o caminho do amor” (p. 33), para depois explicar que “a teologia nos permite – analogicamente – aprender que, entre o homem e Deus, existe um relação icônica, em virtude da qual Deus é (re)conhecido no homem” (p. 33).
Entre as contribuições mais originais de Guardini à teologia está o fato de haver invertido o clássico uso da analogia. O segundo capítulo do texto de Naro é dedicado a esse tema.
Guardini não ignora as clássicas declinações da analogia, a emanatio como descensio ou exitus a Deo e o itinerário de retorno ascensio ou também reditus in Deum. No entanto, como mostra Naro, o teólogo ítalo-alemão, “repensando a lição de Boaventura, evidencia o valor humano da analogia” (p. 39), dando o “primeiro passo” rumo à “analogia relationis, ou também analogia amoris, visto que o ser humano se assemelha a Deus na medida em que pode realmente se pôr em relação com ele no rastro do ser que lhe é mais próprio, isto é, o amor agápico” (p. 39).
E é precisamente nesse caminho do amor, um caminho de retorno no qual o amor deseja a posse de Deus, que a analogia entis se torna analogia sanctitatis, mas também, acrescenta Naro, a analogia humana se torna analogia relationis (cf. p. 40).
Guardini se insere em um debate teológico que tinha visto o teólogo jesuíta polonês Przywara apontar para a analogia entis, enquanto o teólogo protestante suíço Karl Barth sugeria a analogia fidei. Para Guardini, existe um “caminho do meio” (p. 51) que se desdobra segundo a relação que conecta analogia e adoração: “Os conceitos com os quais o homem raciocina sobre Deus, na analogia [...] estão destinados a dar lugar ao silêncio adorante” (p. 51).
Em outras palavras, trata-se da índole sacrificial da analogia, entre teologia apofática e teologia catafática e abertura à teologia enfática: “A analogia é, portanto, ao mesmo tempo, discurso, adoração e louvor” (p. 52).
Esse caminho do meio ou terceira via da analogia é cunhada por Massimo Naro como inversio analogiae. A expressão não se encontra nos escritos de Guardini, mas consegue sintetizar eficazmente a operação epistemológica realizada pelo teólogo ítalo-alemão, esclarecendo a relação icônica entre Deus e o homem, tornada presente mediante a encarnação do Verbo.
Entre os pontos mais originais da obra está o fato de propor a inversio analogiae tanto como chave de leitura da epistemologia teológica de Guardini quanto como exigência teorética da sua Weltanschauung, que se coloca como processo corretivo daquela incompreensão da alteridade divina introduzida com a modernidade. Naro oferece páginas densas e esclarecedoras que permitem que os estudiosos e os leitores possam se orientar no diversificado cenário das reflexões teológicas e filosóficas, ajudando a compreender que “teologar não significa apenas conhecer Deus, mas também conhecer o mundo a partir de Deus” (p. 69).
As aplicações desse estudo são múltiplas, da filosofia das religiões à teologia. O ganho para a epistemologia teológica é considerável, porque a antropologia é reconduzida à teologia (cf. p. 63), e, com a inversão da analogia, a própria teologia pode se configurar como antropologia teológica. Uma antropologia teológica que é “iconicamente sistematizada” e pensada como “relação entre uma imagem divina arquetípica (Urbild) e uma imagem humana que é o seu reflexo (Ebenbild)” (p. 65), em estreita conexão com o sentido da revelação e a própria Escritura divina.
O livro está articulado de forma orgânica. O estilo é técnico e teológico, a linguagem é culta e refinada, clara, densa e incisiva.
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Romano Guardini e o sentido da teologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU