12 Outubro 2023
“Jon Fosse se junta à lista de escritores como Graham Greene, Flannery O’Connor, Julien Green e Heinrich Böll que ousaram desafiar a modernidade, postulando a existência de Deus. A Academia Sueca premiou essa rebeldia intempestiva. Fosse nos ensina que a esperança é sempre mais poderosa que a experiência. Sob a sua luz, abrem-se caminhos. Longe dela, só há abismos”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 10-10-2023. A tradução é do Cepat.
O último Prêmio Nobel de Literatura foi para o escritor norueguês Jon Fosse. Fosse é católico e não se contenta em reiterar teses existencialistas, trufadas de pessimismo. O mundo não lhe parece absurdo. A realidade não é apenas biologia e química, mas um processo feliz no qual emergem o amor, o bem e a beleza. E essa tríade não é uma simples convenção social, mas um sinal de transcendência. Em nosso interior, fulgura uma centelha divina.
Para Fosse, o essencial não é narrar uma peripécia, mas criar uma atmosfera que propicie uma revelação. O mundo exterior é apenas um caminho para o mundo interior. Descrever uma paisagem é um exercício de introspecção, não uma mera recreação. Quando algo é descrito, por mais clareza que se alcance, sempre há algo que escapa e isso é o essencial. Para além do que os olhos veem e as palavras reproduzem, há algo irrepresentável, mas que é autenticamente real.
Fosse não escreve para se apropriar da realidade, mas para apontar os limites da compreensão humana. A razão não pode oferecer o sentido do mundo. Só a experiência mística pode criar uma abertura que nos ajude a vislumbrá-lo, mas de uma forma incompleta. Fosse é um visionário que aceitou a penumbra do não saber, um asceta que usa as palavras para propagar o silêncio, um escritor do limite.
Sócrates destacou que a sabedoria começa com um limite. O limite é o território fronteiriço entre o que se manifesta e o que resiste a se objetificar. Paradoxalmente, o que se esconde é o fundamento do que aparece. Podemos chamar esse limite de Deus, embora saibamos que essas quatro letras são apenas um sinal incapaz de expressar o que representam.
O positivismo lógico sustenta que Deus é uma palavra vazia de conteúdo, pois não designa nenhum objeto do mundo físico. Esta objeção não leva em conta que Deus não é um dado empírico, mas alteridade radical. Como destaca George Steiner, as fronteiras do conhecimento não são limites empobrecedores, mas o que nos faz experimentar “a certeza de um sentido divino que nos supera e nos envolve”. O que chamamos de transcendência não é algo que está fora, além, mas algo que começa no aqui e agora, manifestando a profundidade do real.
Não se alcança a experiência religiosa só por meio de ritos, mas também pela poesia, a música, a pintura, e a sua missão não é competir com a razão científica, mas nos ajudar a encontrar a paz interior. Não se trata de se consolar com a ilusão de hipotéticos outros mundos, mas de habitar o mundo com serenidade e coragem.
Diante da razão instrumental, que exerce violência sobre a natureza e a sociedade, a perspectiva espiritual adota uma disposição de escuta, semelhante à que empregamos ao ouvir uma sinfonia, ler um poema ou contemplar uma obra de arte. Como advertiu Wittgenstein, o essencial não é redutível a uma proposição lógica. Não cabe expressá-lo. Só é possível intuí-lo, contemplá-lo e incorporá-lo à vida como rito, vivência, práxis.
A fé não é, segundo Karen Armstrong, uma adesão teórica, mas “uma mudança profunda na consciência”. Converter Deus em um absoluto que justifica a perseguição do outro, do estrangeiro, do herege ou dissidente constitui “uma negação sacrílega de tudo o que Deus representa”. A experiência religiosa começa quando duas ou três pessoas apertam as mãos e tecem um vínculo de solidariedade.
Esse vínculo converte a transcendência em presença, em algo eficaz e real. O ateísmo é um fenômeno necessário, pois serviu para libertar a experiência religiosa de ídolos e interpretações infantis. A fé não é uma suspensão da razão, mas “kenosis perpétua”, como afirma Armstrong, um esvaziar-se dos preconceitos e egoísmos que nos distanciam dos outros. Sair de si mesmo para se conectar com a vida em suas diferentes formas – semelhança, alteridade, mistério, diferença – é a única maneira de experimentar a transcendência.
A experiência religiosa é uma compreensão mais profunda do mundo. A santidade não nasce da obediência, mas de acolher e libertar o pobre, o estrangeiro, o oprimido, o desamparado. Essa abertura não é mera solidariedade, mas uma autêntica teofania. Todos os seres humanos são santuários do transcendente, templos onde habita a chama do sagrado e infinito.
Muitas vezes, repete-se que a ciência explica a realidade de forma convincente, mas os físicos não acreditam que as fórmulas matemáticas sejam algo mais do que sombras de uma totalidade indescritível. “A vida supera a ciência”, afirma o físico e pastor anglicano John Polkinghorne. A impossibilidade de distinguir o fenômeno da observação (experimental ou matemática) e o fato de que as propriedades das partículas só se manifestam quando entram em relação com outras entidades contrariam a visão newtoniana do real como algo objetivo.
As grandes certezas da física ruíram. O espaço tridimensional e o tempo unidimensional se tornaram aspectos de uma continuidade quadridimensional. Os átomos não são elementos sólidos e indestrutíveis, mas estruturas com 99,9999999% de vazio.
O tempo flui a um ritmo diferente dependendo da velocidade com que nos movemos. Na escala subatômica, não existem diferenças fundamentais entre partículas e ondas: as partículas podem se comportar como ondas e vice-versa. A gravidade não é uma força, mas um efeito da deformação (ou curvatura) do espaço por um grande corpo. O teorema de Kurt Gödel nos lembra que qualquer sistema lógico ou formal precisa de axiomas inverificáveis para se sustentar. Todos os paradigmas científicos estão incompletos e entrariam em colapso sem axiomas externos que não podem justificar com suas leis.
“O mundo se esvanece e se esquiva de nós. Estamos diante de algo verdadeiramente inefável”, escreve o físico Percy Bridgman. Na ciência, como apontou Einstein, a coisa mais honesta é reconhecer que “realmente existe aquilo que é impenetrável a nós, que se manifesta como a mais alta das sabedorias e a mais radiosa das belezas, [e] que as nossas faculdades embotadas só podem entender em suas formas mais primitivas”.
Depois das sessenta milhões de vidas destruídas durante a Segunda Guerra Mundial, o ceticismo se espalhou pelo mundo. Auschwitz parecia ser a demonstração definitiva da inexistência de Deus. Alguns proclamaram que Deus havia moldado o mundo, mas não foi capaz de controlar sua criação. Alguns objetaram que Auschwitz certificava a morte do Deus criado pela Modernidade, aquele Deus onipotente e onisciente que havia criado o mundo do nada, mas ainda permanecia o mistério primordial do sagrado.
Seria necessário repensar o divino a partir de uma nova perspectiva. Deus não é um ente, mas, sim, como aponta o teólogo Paul Tillich, “a preocupação última”. Ou seja, o compromisso de buscar a verdade, a beleza, o amor, a justiça, a compaixão. Deus é um mistério que explicamos simbolicamente, tecendo histórias e mitos. A morte de Deus é mais uma etapa nesse processo. Uma etapa necessária e esclarecedora, pois coloca fim ao império das religiões, abrindo caminho para a possibilidade de vivências espirituais mais criativas.
Mestre Eckhart descreveu Deus como a alteridade ou diferença que está além do próprio Deus, o fundo metafísico inacessível que não podemos separar do ser humano, sem condená-lo à perplexidade e à angústia. Deus é essa justiça que não existe, mas que almejamos. A promessa que pulsa para além do desejo. Qual é a contribuição do cristianismo para a compreensão de Deus? Um amanhã ético.
Ao se encarnar, Deus mergulha na finitude da humanidade. Só a partir daí pode anunciar com credibilidade que o mal não triunfará. Como aponta Jürgen Moltmann, em O Deus Crucificado: “Deus passou por Auschwitz e agora Auschwitz está em Deus. Graças a isso, há um amanhã para suas vítimas”.
Jon Fosse se junta à lista de escritores como Graham Greene, Flannery O’Connor, Julien Green e Heinrich Böll que ousaram desafiar a modernidade, postulando a existência de Deus. A Academia Sueca premiou essa rebeldia intempestiva. Fosse nos ensina que a esperança é sempre mais poderosa que a experiência. Sob a sua luz, abrem-se caminhos. Longe dela, só há abismos.
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Jon Fosse e a mística intempestiva do século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU