02 Outubro 2023
"Pessoalmente, estou disposto a reconhecer plenamente a positividade da escolha de incluir os adultos entre as pessoas ofendidas, desde que, no entanto, se reconheça que uma grande parte da responsabilidade recai sobre aqueles elementos culturais tão difundidos no catolicismo que colocam como central a função de guia espiritual dos sacerdotes, a obediência incondicional, a hierarquia e a disciplina".
O artigo é de Marco Marzano, professor titular de Sociologia na Universidade de Bérgamo, publicado por Domani, 29-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
À lista das conferências episcopais que decidiram, diferentemente daquela italiana e polonesa, levar a sério o combate aos abusos sexuais do clero, deve-se agora acrescentar aquela da Suíça. De fato, há poucos dias foi publicado o primeiro Relatório da comissão independente encarregada de lançar luz sobre o tema no território da Confederação Suíça.
Trata-se de um “estudo piloto” realizado em apenas um ano de trabalho e precursor de um estudo mais amplo e aprofundado de investigação a ser realizado no futuro próximo. Apesar dessa limitação, o documento apresenta pelo menos dois motivos de interesse notáveis.
O primeiro deles é metodológico e diz respeito ao caráter primorosamente científico da empreitada.
O episcopado suíço decidiu confiar a delicada tarefa de trabalhar sobre o tema a um grupo composto unicamente por acadêmicos, em particular historiadores da Universidade de Zurique especialistas em pesquisa de arquivo e história oral.
A eles, a igreja suíça concedeu acesso total aos arquivos paroquiais e diocesanos (e aos de muitas ordens religiosas) que contêm os dossiês relativos a sacerdotes culpados desses crimes ao longo dos últimos 70 anos (uma recusa definitiva em disponibilizar seus registros aos pesquisadores veio, ao contrário, dos órgãos do Vaticano, da nunciatura apostólica e de todos os dicastérios romanos).
Os cientistas sociais envolvidos no empreendimento puderam, portanto, explorar com total liberdade em todas as dioceses do país, dezenas de arquivos, examinar milhares de páginas de documentação e em seguida realizar dezenas de conversas e entrevistas com as vítimas, mas também com especialistas e representantes eclesiásticos.
É óbvio que, por esse caminho, por razões fáceis de imaginar (arquivos destruídos ou incompletos, dados apagados, denúncias de crimes não relatadas ou nunca apresentadas, relatórios amenizados em comparação com os depoimentos das vítimas) só foi possível esclarecer parte do fenômeno.
Contudo, trata-se daquela parte que era bem conhecida das autoridades eclesiásticas e que, pelas mais variadas motivações e muitas vezes com a cumplicidade de indivíduos, famílias e autoridades civis, foi mantida escondida por décadas.
Um obscurecimento, e o relatório reconhece-o muito apropriadamente, que não se limitou ao clero diocesano, mas incluiu ordens religiosas e também os chamados "movimentos eclesiásticos", ou seja, aqueles grupos, tantas vezes gerados pela ação de um líder carismático (Kiko Arguello, Chiara Lubich, etc.), que animaram a vida da Igreja nos últimos sessenta anos. Em tais agregações por vezes prevaleceu uma lógica sectária e fanática, inevitavelmente acompanhada por manifestações de subordinação incondicional, enganos e abusos (também sexuais).
Foram cerca de mil casos de abuso identificados e documentados pela comissão. As vítimas resultaram na sua maioria homens (56%) e em grande parte menores (74%). Esse último dado remete para um segundo motivo de interesse derivado dos dados do relatório suíço. Os autores do relatório decidiram, de fato, ampliar o levantamento também aos adultos (14%; a idade dos restantes 12 por cento não foi possível estabelecer).
Para justificar tal escolha, os autores do relatório tiveram que adotar aquela teoria que estabelece que se um dos dois parceiros numa relação sexual desfruta de uma posição de autoridade em relação ao outro (e, portanto, se este último se encontra numa condição de "dependência espiritual, emocional, financeira ou estrutural"), todo consentimento é absolutamente excluído por princípio.
“Em tais situações – cita o relatório – o autor do crime se esforça para ‘subjugar’ preventivamente as suas ‘vítimas’, para que as pessoas ofendidas se sintam ‘escolhidas’, e o contato físico seja motivado pelo contexto sagrado”.
Em outras palavras, o consentimento que o parceiro mais frágil (mas adulto e plenamente capaz) expressou no momento da consumação da relação deve ser considerado, por essa teoria, sempre o resultado de uma manipulação, de uma extorsão sutil por parte do poderoso.
Os estudiosos suíços estão conscientes da natureza controversa dessa posição e, em duas passagens do artigo, mencionam dois riscos que não devem ser subestimados: o primeiro é que a distinção entre abuso e relações sexuais consensuais desapareça totalmente, uma vez que esta última pode sempre, passado o tempo e dadas as condições acima mencionadas, ser classificada como abuso.
O segundo risco é que as vítimas fiquem “presas” para toda a vida num papel que lhes atribui apenas a condição de objetos passivos e manipulados. Assim, “uma vez que várias pessoas declararam explicitamente que não querem identificar-se apenas como vítimas”, optou-se, explica o relatório, por renunciar ao uso do substantivo ‘vítima’ e utilizar “formulações distintas como ‘pessoas abusadas’ ‘pessoas ofendidas’ e “pessoas vítimas de abuso’”.
Pessoalmente, estou disposto a reconhecer plenamente a positividade da escolha de incluir os adultos entre as pessoas ofendidas, desde que, no entanto, se reconheça que uma grande parte da responsabilidade recai sobre aqueles elementos culturais tão difundidos no catolicismo que colocam como central a função de guia espiritual dos sacerdotes, a obediência incondicional, a hierarquia e a disciplina.
Em suma, é preciso aceitar (e os redatores do relatório também o fazem explicitamente nas páginas conclusivas do documento) o fato da ideia da salvação (ou da perfeição) ser alcançada por meio da confiança total num pastor (homem e celibatário) ao qual são atribuídas virtudes e qualidades sobre-humanas é a premissa para a grande maioria dos abusos, dos cruzamentos de limites, das manipulações e das violências clericais. Se esse elemento não for modificado, a história dos abusos clericais nunca terminará. Mais uma confirmação disso foi recebida da Suíça.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Abusos na Igreja, o relatório sobre os assédios na Suíça lança luz sobre os problemas do clero. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU