22 Setembro 2023
Discurso do Papa Francisco no encontro inter-religioso na Mongólia: as religiões são chamadas a oferecer harmonia. Nenhuma confusão entre crença e violência, entre fé e sectarismo.
Segue abaixo o importante discurso proferido pelo Papa Francisco em Ulan Bator, capital da Mongólia, para o encontro ecumênico e inter-religioso que aí se realizou em 03-09-2023. Publicamos o texto somente agora porque foi injustamente ignorado e foi reproposto por Veritas in caritate.
A carta é publicada por Santa Sé, 03-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bom dia a todos vocês, caros irmãos e irmãs!
Permitam-me dirigir-me a vocês assim, como irmão na fé com os crentes em Cristo e como irmão de todos vocês, em nome de uma comum busca religiosa e da pertença à mesma humanidade. A humanidade, no seu anseio religioso, pode ser comparada a uma comunidade de viandantes que caminham na terra com o olhar voltado para o céu. É significativo a esse respeito o que um crente, vindo de longe, afirmou sobre a Mongólia, escrevendo que viajou por lá “não vendo nada além do céu e da terra” (Guilherme de Rubruk, Viaggio in Mongolia, XIII/3, Milão 2014, 63). O céu, tão límpido, tão azul, aqui abraça a vasta e imponente terra, evocando as duas dimensões fundamentais da vida humana: aquela terrena, feita de relações com os outros, e aquela celeste, feita de busca pelo Outro, que nos transcende. Em suma, a Mongólia recorda-nos a necessidade de todos nós, peregrinos e viandantes, de virar o olhar para o alto para encontrar a rota do caminho na terra.
Estou, portanto, feliz por estar aqui com vocês neste importante momento de encontro. Agradeço calorosamente a cada um pela sua presença e por toda intervenção que enriqueceu a reflexão comum. O fato de estarmos juntos no mesmo lugar já é uma mensagem: as tradições religiosas, na sua originalidade e diversidade, representam um formidável potencial de bem a serviço da sociedade. Se os responsáveis das nações escolhessem o caminho do encontro e do diálogo com os outros, certamente contribuiriam de modo decisivo para o fim dos conflitos que continuam a causar sofrimento a tantos povos.
A dar-nos a oportunidade de estarmos juntos para nos conhecermos e enriquecermos reciprocamente é o amado povo mongol, que pode orgulhar-se de uma história de convivência entre expoentes de diversas tradições religiosas. É lindo recordar a virtuosa experiência da antiga capital imperial Kharakhorum, dentro da qual existiam locais de culto pertencentes a diversos "credos", testemunhando uma louvável harmonia. Harmonia: gostaria de sublinhar essa palavra de sabor tipicamente asiático. É aquela relação particular que se cria entre realidades diferentes, sem sobrepô-las e uniformizá-las, mas no respeito pelas diferenças e em benefício da convivência. Pergunto-me: quem, mais do que os crentes, é chamado a trabalhar pela harmonia de todos?
Irmãos, irmãs, pelo grau com que conseguimos nos harmonizar com os outros peregrinos na terra e pela forma como conseguimos difundir a harmonia, onde vivemos, se mede o valor social da nossa religiosidade. De fato, toda vida humana, e ainda mais toda religião, é obrigada a “medir-se” com base no altruísmo: não um altruísmo abstrato, mas concreto, que se traduz na procura do outro e na colaboração generosa com o outro, porque “o homem sábio se alegra em doar e só por isso se torna feliz” (The Dhammapada: The Buddha’s Path of Wisdom, Sri Lanka 1985, n. 177; cf. as palavras de Jesus relatadas em At 20,35). Uma oração, inspirada em Francisco de Assis, reza: “Onde há ódio, que eu leve o amor, onde há ofensa, que eu leve o perdão, onde há discórdia, que eu leve a união”. O altruísmo constrói harmonia e onde há harmonia há entendimento, há prosperidade, há beleza. Na verdade, harmonia talvez seja o sinônimo mais apropriado de beleza.
Pelo contrário, o fechamento, a imposição unilateral, o fundamentalismo e a imposição ideológica arruínam a fraternidade, alimentam tensões e comprometem a paz. A beleza da vida é fruto da harmonia: é comunitária, cresce com a gentileza, com a escuta e com a humildade. E é o coração puro que a apreende, porque “a verdadeira beleza, afinal, reside na pureza do coração” (M.K. Gandhi, Il mio credo, il mio pensiero, Roma 2019, 94).
As religiões são chamadas a oferecer ao mundo essa harmonia, que o progresso técnico por si só não pode proporcionar, porque, visando a dimensão terrena, horizontal do homem, corre o risco de esquecer o céu para o qual fomos feitos. Irmãs e irmãos, estamos aqui hoje juntos como humildes herdeiros de antigas escolas de sabedoria. Ao nos encontrarmos, comprometemo-nos a partilhar todo o bem que recebemos, para enriquecer uma humanidade que no seu caminho é muitas vezes desorientada por míopes buscas de lucro e bem-estar. Muitas vezes é incapaz de encontrar o fio condutor: direcionada apenas aos interesses terrenos, acaba por arruinar a própria terra, confundindo progresso com retrocesso, como mostram tantas injustiças, tantos conflitos, tantas devastações ambientais, tantas perseguições, tanto desperdício da vida humana.
A Ásia tem muito para oferecer nesse sentido e a Mongólia, que está no coração deste continente, guarda um grande patrimônio de sabedoria, que as religiões aqui difundidas contribuíram para criar e que gostaria de convidar todos a descobrir e valorizar. Limitar-me-ei a mencionar, sem entrar em detalhes, dez aspectos desse patrimônio de sabedoria. Dez aspectos: o bom relacionamento com a tradição, apesar das tentações do consumismo; o respeito pelos idosos e pelos antepassados – quanto precisamos hoje de uma aliança geracional entre eles e os mais jovens, de um diálogo entre avós e netos! E depois, o cuidado do meio ambiente, da nossa casa comum, outra necessidade tremendamente atual: estamos em perigo. E ainda: o valor do silêncio e da vida interior, antídoto espiritual para muitas doenças do mundo de hoje. Portanto, um saudável senso de frugalidade; o valor do acolhimento; a capacidade de resistir ao apego às coisas; a solidariedade, que nasce da cultura dos vínculos entre as pessoas; o apreço pela simplicidade. E, finalmente, um certo pragmatismo existencial, que tende a procurar com tenacidade o bem do indivíduo e da comunidade. Esses dez são alguns elementos do patrimônio de sabedoria que este país pode oferecer ao mundo.
Falando dos seus costumes, já falei sobre como, na preparação para esta viagem, fiquei fascinado pelas moradias tradicionais com as quais o povo mongol revela uma sabedoria sedimentada em milênios de história. A ger constitui, de fato, um espaço humano: a vida da família acontece dentro dela, é um lugar de convívio amigável, de encontro e de diálogo onde, mesmo quando somos muitos, conseguimos dar lugar a mais alguém. E, além disso, é um ponto de referência concreto, facilmente identificável nas imensas extensões do território mongol; é motivo de esperança para quem perdeu o caminho: se existe uma ger, existe vida. Encontra-se sempre aberta, pronta a acolher o amigo, mas também o viandante e até o estrangeiro, para lhes oferecer um chá fumegante que lhes restaura as forças no frio do inverno ou um fresco leite fermentado que refresca nos dias quentes de verão. Essa é também a experiência dos missionários católicos, vindos de outros países, que aqui são acolhidos como peregrinos e hóspedes, e entram na ponta dos pés neste mundo cultural, para oferecer o humilde testemunho do Evangelho de Jesus Cristo.
Mas, juntamente com o espaço humano, a ger evoca a essencial abertura para o divino. A dimensão espiritual dessa habitação é representada pela sua abertura para o alto, com um único ponto por onde entra a luz, em forma de claraboia em gomos. Assim, o interior transforma-se num grande relógio de sol, no qual a luz e a sombra se perseguem, marcando as horas do dia e da noite. Há um belo ensinamento nisso: o sentido da passagem do tempo vem do alto, e não do mero fluxo das atividades terrenas. Em certos momentos do ano, aliás, o raio que penetra do alto ilumina o altar doméstico, recordando o primado da vida espiritual. A convivência humana que se realiza no espaço circular é assim constantemente religada à sua vocação vertical, à sua vocação transcendente e espiritual.
A humanidade reconciliada e próspera, que como expoentes de diferentes religiões contribuímos para promover, é simbolicamente representada por essa união harmoniosa e aberta ao transcendente, na qual o compromisso com a justiça e a paz encontra inspiração e fundamento na relação com o divino. Aqui, caros irmãos e irmãs, a nossa responsabilidade é grande, especialmente nesta hora da história, porque o nosso comportamento é chamado a confirmar na prática os ensinamentos que professamos; não pode contradizê-los, tornando-se motivo de escândalo. Não existe, portanto, nenhuma confusão entre crença e violência, entre sacralidade e imposição, entre percurso religioso e sectarismo.
Que a memória dos sofrimentos padecidos no passado - penso sobretudo nas comunidades budistas - dê a força para transformar as feridas obscuras em fontes de luz, a ignorância da violência em sabedoria de vida, o mal que destrói em bem que constrói. Assim seja para nós, discípulos entusiastas de nossos respectivos mestres espirituais e servidores conscienciosos de seus ensinamentos, dispostos a oferecer sua beleza a todos que acompanhamos, como amigáveis companheiros de viagem. Que isso seja verdade, porque em sociedades pluralistas e que acreditam nos valores democráticos, como a Mongólia, cada instituição religiosa, regularmente reconhecida pela autoridade civil, tem o dever e, acima de tudo, o direito de oferecer o que é e o que acredita, no respeito pela consciência alheia e tendo como objetivo o maior bem de todos.
Nesse sentido, gostaria de confirmar a vocês que a Igreja Católica quer caminhar assim, acreditando firmemente no diálogo ecumênico, no diálogo inter-religioso e no diálogo cultural. A sua fé baseia-se no eterno diálogo entre Deus e a humanidade, que se encarnou na pessoa de Jesus Cristo. Com humildade e no espírito de serviço que animou a vida do Mestre, que veio ao mundo não “para ser servido, mas para servir” (Mc10,45), a Igreja oferece hoje o tesouro que recebeu a cada pessoa e cultura, permanecendo numa atitude de abertura e escuta do que as outras tradições religiosas têm para oferecer. O diálogo, de fato, não é antitético ao anúncio: não achata as diferenças, mas ajuda a compreendê-las, preserva-as na sua originalidade e as coloca em condição de confrontar para um enriquecimento franco e mútuo. Assim podemos reencontrar na humanidade abençoada pelo Céu a chave para caminhar na terra. Irmãos e irmãs, temos uma origem comum, que confere a todos a mesma dignidade, e temos um caminho partilhado, que não podemos percorrer senão juntos, morando sob o mesmo céu que nos envolve e nos ilumina.
Irmãos e irmãs, a nossa presença aqui hoje é um sinal de que a esperança é possível. A esperança é possível. Em um mundo dilacerado por conflitos e discórdias, isso poderia parecer utópico; ainda assim, as maiores empreitadas começam furtivamente, com dimensões quase imperceptíveis. A grande árvore nasce da pequena semente, escondida na terra. E se “a fragrância das flores se espalha apenas na direção do vento, o perfume de quem vive segundo a virtude se espalha em todas as direções” (cf. The Dhammapada, n. 54). Deixemos florescer essa certeza de que os nossos esforços comuns para dialogar e construir um mundo melhor não sejam em vão. Vamos cultivar a esperança. Como disse um filósofo: “Cada um foi grande segundo aquilo que esperava. Um foi grande esperando o possível; outro esperando o eterno; mas quem esperou o impossível foi o maior de todos" (S.A. Kierkegaard, Tremor e tremor, Milão 2021, 16). Que as orações que elevamos ao céu e a fraternidade que vivemos na terra alimentem a esperança; que sejam o testemunho simples e credível da nossa religiosidade, do caminhar juntos com o olhar voltado para o alto, do habitar no mundo em harmonia – não esqueçamos a palavra “harmonia” – como peregrinos chamados a salvaguardar a atmosfera de casa, para todos. Obrigado.
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O diálogo não é antitético ao anúncio. Francisco e as outras tradições religiosas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU