03 Agosto 2020
A Igreja precisa seguir a Cristo na pobreza e na perseguição, mas também precisa de recursos humanos para realizar a sua missão. O “e” que é típico do catolicismo ajuda a articular o modo como se pode entender a ideia de uma “Igreja pobre”.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por Commonweal, 31-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que fazer diante do fato de que a Igreja Católica recebeu 1,4 bilhão de dólares do Paycheck Protection Program do governo dos Estados Unidos [programa de empréstimo voltado para que pequenas empresas consigam manter suas folhas de pagamento]?
As considerações do arcebispo de Oklahoma City, Paul S. Coakley, presidente da Comissão de Justiça Nacional e Desenvolvimento Humano da USCCB [Conferência dos Bispos dos EUA, na sigla em inglês], parecem suficientes. Como ele afirmou em uma declaração, a “Igreja Católica”, neste caso, abrange as centenas de dioceses, paróquias, escolas, agências de serviço social e outras organizações católicas individuais que empregam coletivamente milhares de pessoas e, portanto, não estão proibidas de receber ajuda federal sustentada pelos contribuintes.
“O Paycheck Protection Program foi projetado para proteger os empregos dos estadunidenses de todas as etapas da vida, independentemente de trabalharem para empregadores com ou sem fins lucrativos, baseados na fé ou seculares”, dizia a sua declaração.
Vários meios de comunicação católicos fizeram a mesma observação, e parece claro que há menos coisas nessa “história” do que ela aparenta.
Contudo, ao mesmo tempo, devemos permanecer atentos às questões constitucionais e políticas relativas à relação entre Igreja e Estado, e à necessidade contínua de prestação de contas e transparência financeiras à luz dos vínculos entre a crise dos abusos sexuais e a má gestão financeira nas instituições católicas.
Parece que uma parte da objeção ao financiamento do Paycheck Protection Program para a Igreja decorre da crença de que o dinheiro poderia ser usado para pagar acordos e custos legais associados a casos de abuso sexual e outros escândalos. E isso, infelizmente, fala muito do nível de consideração que muitas pessoas têm pela Igreja Católica hoje.
Mas também podemos usar este momento para pensar nas questões eclesiológicas e teológicas mais amplas suscitadas pelo papel cada vez mais decisivo do dinheiro na vida da Igreja, especialmente na Igreja Católica dos EUA. Como resultado das mudanças na cultura política católica desde o século XX, os doadores ricos adquiriram o tipo de legitimidade que a Igreja institucional poderia conferir antigamente a imperadores, reis e príncipes – como evidenciado agora na crescente influência dos grupos católicos e líderes empresariais católicos conservadores e tradicionalistas.
Mas esse desenvolvimento em si decorre em parte de quatro décadas de hostilidade aos gastos do governo e do desmantelamento de programas federais de serviço social, o que aumentou a pressão sobre as organizações católicas para fornecer esses serviços mais do que em qualquer momento desde que esses programas foram implementados no século XX. As doações que a Igreja Católica recebe dessas entidades privadas não resultam necessariamente de simpatia ou de apoio ao trabalho que está sendo realizado nessas áreas; pelo contrário, às vezes, as contribuições podem ter o objetivo de influenciar a posição da Igreja em questões como a imigração, o ambiente e a economia.
Mas, no caso dos pagamentos do Paycheck Protection Program, estamos falando de dinheiro dos contribuintes. E isso deveria nos fazer pensar sobre o complexo significado da “Igreja pobre” na recente tradição católica e o que essa ideia significa daqui para a frente.
O ensino católico contemporâneo sobre esse assunto começa com o Vaticano II. Os documentos do Concílio eram um tanto ambivalentes sobre o assunto da relação entre a Igreja e o status quo político, social e econômico, assim como sobre o apoio do estatal (financeiro ou não) à Igreja Católica. A ambivalência era um reflexo das diferentes sensibilidades evidentes no Vaticano II – ilustradas, por exemplo, pelo “Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre”, por um lado, e pela posição mais favorável ao capitalismo dos bispos europeus e norte-americanos.
O dominicano francês Yves Congar, provavelmente o teólogo mais influente do Concílio, ajudou a moldar um novo entendimento da “Igreja pobre” com o seu livro de 1963, “Por uma Igreja serva e pobre” (republicado em vários idiomas desde a eleição do Papa Francisco). Congar descreveu a vocação essencial da Igreja como o serviço ao próximo, em conexão direta com o amor à pobreza. Ele se referia ao contraste visto ao longo da história entre uma Igreja destinada a ser pobre, como Cristo, e uma que, através de seus representantes, se manifesta externamente como rica.
Mas o conceito dele não era materialista: Congar entendia a ideia de pobreza na Igreja como cristológica (a única riqueza da Igreja é Cristo) e eclesiológica (os pobres são um sacramento do nosso encontro com Deus). Na realidade, Congar nunca abordou o que significa ser uma “Igreja pobre” no sentido financeiro literal. Em vez disso, Igreja e pobreza deveriam ser entendidas em um sentido universal: todos os membros da Igreja são pobres.
A tensão não resolvida entre uma “Igreja rica” e uma “Igreja para os pobres” é evidente na constituição conciliar Lumen Gentium, no número oito:
“Assim como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim também a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação. Cristo Jesus ‘que era de condição divina... despojou-se de si próprio tomando a condição de escravo’ (Fil 2,6-7) e por nós, ‘sendo rico, fez-se pobre’ (2 Cor 8,9): assim também a Igreja, embora necessite dos meios humanos para o prosseguimento da sua missão, não foi constituída para alcançar a glória terrestre, mas para proclamar a humildade e abnegação, também com o seu exemplo.”
A Igreja precisa seguir a Cristo na pobreza e na perseguição, mas também precisa de recursos humanos para realizar a sua missão. O “e” que é típico do catolicismo ajuda a articular o modo como se pode entender a ideia de uma “Igreja pobre”.
À medida que as interpretações do Vaticano II mudavam durante os pontificados de João Paulo IIe Bento XVI, houve menos ênfase na ideia de uma Igreja pobre, paralelamente aos repúdios vaticanos à teologia da libertação que começaram no início dos anos 1980. Mas, de repente, em 2013, a eleição do Papa Francisco ajudou a trazer de volta a ideia de uma Igreja pobre.
O nome que o novo papa adotou foi, ele mesmo, uma indicação disso. “Ah, como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres”, disse ele poucos dias após sua eleição, confirmando que retomaria o discurso interrompido do Vaticano II.
A relação de Francisco com a teologia da libertação pode ser complicada, mas ele claramente fala uma linguagem diferente dos seus antecessores sobre a ideia de uma Igreja pobre.
No entanto, ele também mostrou algumas ambivalências. Por exemplo, a sua recente nomeação de Mario Draghi para a Pontifícia Academia para as Ciências Sociais. Draghi obteve seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology e foi presidente do Banco Central Europeu de 2011 a 2019. Sua nomeação sinaliza o pragmatismo não ideológico que Francisco adota às vezes, até mesmo na questão da economia moderna.
Embora o seu magistério sobre o sistema capitalista possa ser resumido na sua afirmação de que “esta economia mata”, ele também acredita na necessidade de se comprometer com as questões sociais e políticas.
Pode ser difícil acreditar na possibilidade de comprometimento na cultura eclesial polarizada de hoje, mas o comprometimento, obviamente, é uma característica significativa da tradição católica. Mesmo no nível magisterial, há um compromisso – até mesmo sobre o conceito de dinheiro, que não pode ser tratado de forma definitiva e infalível de uma vez por todas.
É assim em uma Igreja Católica global, onde situações históricas, políticas e sociais muito diferentes estão em jogo. No entanto, existem alguns dilemas pós-Vaticano II para resolver. Em muitos países, incluindo os EUA, a Igreja Católica não é apenas uma importante defensora dos sem voz, mas também, literalmente, uma tábua de salvação.
Quais são os custos para que os pobres tenham uma Igreja pobre? Embora a Igreja não possa se dar ao luxo de ser politizada, ela resguarda o direito e o dever de ser política, conforme necessário para a sua missão profética. Ser profético significa renunciar aos privilégios concedidos por meio de concordatas ou de outras cláusulas e decretos não escritos. Mas uma retirada radical da praça pública significaria perder a plataforma para falar em favor e em nome dos excluídos ou dos que sofrem sob o sistema econômico.
Em última análise, isso se resume a contradições intelectuais e eclesiais na cultura teológica e política dos católicos. A ideologia libertária do pequeno governo é incompatível com a tradição social católica. Mas a tradição social católica também não apoia a ideologia de uma pequena Igreja que renuncia à ajuda na forma de dinheiro dos contribuintes para o seu trabalho pelo bem comum.
Uma virada sectária no entendimento católico das relações entre Igreja e governo seria paga, como sempre, pelas pessoas que menos podem pagar.
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Uma Igreja pobre? Dinheiro, sectarismo e tradição católica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU