21 Setembro 2023
“A tarefa estratégica dos ecossocialistas é definir um espaço equidistante dos excessos prometeicos da ecomodernidade e dos excessos ascéticos do comunismo partidário do decrescimento, ainda que a tensão não possa ser finalmente resolvida”, escreve Cédric Durand, um dos principais representantes da atual escola marxista de economistas na França, professor da Universidade Paris XIII, em artigo publicado por Sidecar/El Salto, 19-09-2023. A tradução é do Cepat.
Na aula inaugural proferida em 1977 para celebrar sua incorporação ao Collège de France, posteriormente publicada em Comment vivre ensemble. Cours et séminaires au Collège de France (1976-1977), Roland Barthes explorou uma “fantasia de vida, um regime, um estilo de vida”, que não era nem solitário, nem comunitário: “Algo assim como a solidão com interrupções regulares”.
Inspirando-se nos monges do Monte Athos, Barthes propôs chamar esse modo de convivência de idiorritmia, do grego idios (próprio) e rythmós (ritmo). “Fantasmaticamente falando, não há nada de contraditório entre querer viver só e querer viver juntos”, afirma. Nas comunidades idiorrítmicas, “cada sujeito vive de acordo com seu próprio ritmo”, sem deixar de manter “contato uns com os outros, dentro de um determinado tipo de estrutura”.
Ainda que na opinião de Barthes este estilo de vida não regulamentado seria exatamente o contrário “da desumanidade fundamental do falanstério de Fourier, com sua cronometragem de cada quarto de hora”, sua visão é igualmente utópica. Contudo, enquanto Fourier propunha um plano para uma comunidade organizada e fechada, Barthes não esboçava tanto um modelo, mas tentava definir uma zona entre duas formas extremas de vida: “uma forma excessivamente negativa: a solidão, o eremitismo” e “uma forma excessivamente assimiladora: o convento ou o mosteiro”.
A idiorritmia é, portanto, “uma forma intermediária, utópica, edênica, idílica”: a “utopia de um socialismo da distância”. Nesta via intermédia entre viver só e com outros, a interação entre os indivíduos é tão leve e sutil que permite a cada um escapar do ditame da heterorritmia, sob cujo regime é preciso se submeter ao poder e se ajustar a um ritmo alheio imposto de fora.
A fantasia de Barthes é francamente pertinente para abordar as atuais visões ecossocialistas. A aporia que identifica entre solidão e sociabilidade, entre autonomia e coordenação, tem paralelismos com os conflitos que animam o atual debate em curso entre os partidários do decrescimento e os defensores de um Green New Deal ou de alguma de suas propostas equivalentes. Impulsionado pela intensificação da crise ecológica, pela desordem imperante no pensamento dominante e a ascensão do movimento climático, o debate se tornou um dos mais vivos na cena intelectual de esquerda.
Um dos principais pontos de divergência se refere ao problema da tecnologia e sua escala. Na opinião de “ecomodernos” como Matthew Huber, autor de Climate Change as Class War (2022), para ecologizar nossas sociedades e abolir a pobreza global é necessário “um enorme esforço social de investimento público e planejamento” que propicie a aceleração do progresso técnico: “resolver a mudança climática requer um desenvolvimento em massa das forças produtivas”.
Conforme Huber escreveu em Sidecar/El Salto, no ano passado, “resolver a mudança climática requer novas relações sociais de produção que desenvolvam as forças produtivas rumo à produção limpa”. Nesta perspectiva marxista tradicional, o planejamento socialista – as novas relações sociais de produção – poderia nos permitir implementar soluções tecnológicas atualmente limitadas pela busca capitalista de lucros.
O filósofo japonês Kohei Saito, ao contrário, tem uma visão menos otimista do potencial ecossocialista do avanço tecnológico. De acordo com a sua leitura de Marx, exposta em Marx in the Anthropocene (2023), as forças produtivas que os ecossocialistas herdariam são as “forças produtivas do capital”: seu conteúdo tecnológico é indissociável das relações de produção capitalistas.
Ainda mais preocupante, na interpretação de Saito, é o domínio do capital sobre o trabalho, que não é apenas uma questão de propriedade, mas deriva da crescente socialização da produção: “o capital organiza a cooperação no processo de trabalho de tal modo que os trabalhadores individuais já não podem realizar as suas tarefas sozinhos e de forma autônoma, mas estão subjugados ao comando do capital”.
Saito conclui que “as forças produtivas do capital não podem ser transferidas adequadamente para o pós-capitalismo, porque são criadas com a finalidade de subjugar e controlar os trabalhadores”. A tecnologia capitalista “elimina as possibilidades de imaginar um estilo de vida completamente diferente”. De acordo com a sua visão do decrescimento, “a abolição do regime despótico do capital pode, inclusive, exigir a redução da escala de produção”.
Tanto Huber como Saito expõem argumentos sólidos e perspicazes sobre a transição ecológica para o socialismo, embora suas posições marquem, em muitos aspectos, polos opostos no espectro da teorização de esquerda sobre a crise climática. Cada ponto de vista tem suas limitações.
Enquanto a primeira implica um temerário ato de fé na sabedoria e agilidade de uma futura liderança socialista para enfrentar o legado tecnológico capitalista, a segunda ignora o fato de que o abandono das “forças produtivas do capital” e a redução da produção levariam a uma desespecialização da atividade produtiva, o que levaria a uma redução drástica da produtividade do trabalho e, em última instância, ao colapso do nível de vida.
Se o preço potencial da adoção ecomoderna do desenvolvimento tecnológico é a alienação humana e a coisificação tecnocapitalista, o custo provável da rejeição do mesmo pelo decrescimento é a austeridade e o empobrecimento.
Desse modo, assim como para Barthes o problema da idiorritmia residia na “tensão existente entre o poder e a marginalidade”, entre a regulação excessiva e o isolamento excessivo, a 2023-09-21 00:00:00 é definir um espaço equidistante dos excessos prometeicos da ecomodernidade e dos excessos ascéticos do comunismo partidário do decrescimento, ainda que a tensão não possa ser finalmente resolvida.
Fantasmaticamente falando, como diria Barthes, não há nada de contraditório em querer desfrutar das riquezas de uma sociedade tecnologicamente avançada e querer se desenvolver em harmonia com a natureza. Em vez de escolher entre a aceleração e a redução de escala, o ecossocialismo deveria tentar encontrar um equilíbrio entre estas alternativas.
A coisificação das forças produtivas herdadas do capital e um certo grau de alienação no processo de trabalho só deveriam ser tolerados na medida em que sejam colocados a serviço de fins democraticamente legítimos, por meio do planejamento concebido com o propósito de estabilizar o clima e satisfazer as necessidades humanas.
Uma vez que esta linha intermédia seja aceita como questão de princípio, começa o trabalho verdadeiramente árduo para os ecossocialistas. Recentemente, Jason Hickel, estudioso do decrescimento, propôs uma definição ampla dos objetivos da transformação ecossocialista (e anti-imperialista):
“Devemos alcançar o controle democrático sobre o sistema financeiro, a produção e a inovação, bem como organizá-lo em torno de objetivos tanto sociais como ecológicos, o que exige assegurar e melhorar as formas de produção social e ecologicamente necessárias, reduzindo, ao mesmo tempo, a produção destrutiva e menos necessária”.
A formulação de Hickel parece incontestável, mas definir nossos objetivos sociais e ecológicos, bem como decidir quais as formas de produção que são necessárias e quais são destrutivas, implica uma mudança revolucionária. Como observou o pioneiro da economia ecológica, Karl William Kapp, em 1974:
“A formulação de políticas ambientais, a avaliação dos objetivos ambientais e o estabelecimento de prioridades exigem um cálculo econômico substantivo, em termos de valores de uso social (politicamente avaliados), para os quais o cálculo formal efetuado em termos de valores de câmbio monetário não proporciona uma medida real e não apenas nas sociedades socialistas, mas também nas economias capitalistas. Daí o aspecto “revolucionário” da questão ambiental como problema teórico e prático”.
Barthes não desenvolveu plenamente as implicações políticas de suas ideias, mas em sua opinião eram de grande importância. Como explica no início da conferência, a força do desejo – a figura da fantasia – está na origem da cultura. No entanto, na busca de um equilíbrio emancipador entre cooperação e autonomia – entre desenvolvimento das forças produtivas e transformação das relações sociais –, a especulação abstrata será menos importante do que prestar muita atenção à nossa situação histórica e às instituições do mundo real. O poder da fantasia é tão forte quanto as visões concretas que produz.
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Viver juntos. Artigo de Cédric Durand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU