16 Agosto 2023
"Após caminhos tortuosos marinados numa longa consulta pública, o MEC vem apresentar uma proposta para o 'Novo Ensino Médio'. O núcleo de sua inovação reside no aumento da carga horária escolar com a determinação de 2.400 horas de Formação Geral Básica integrando conhecimentos de Artes, Educação Física, Literatura, História, Sociologia, Geografia, Filosofia, Química, Física e Biologia. Especialistas em Educação, Políticas Educacionais e Políticas Públicas sinalizam otimismos. Alguns, inclusive, reabilitam o bordão do 'nunca antes'. Mas os mais serenos, mesmo entusiasmados, não conseguem esconder alguma hesitação ancorada em extremada apreensão".
O comentário é de Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas” (Brazil Publishing, 2019).
A melhor e mais autorizada avaliação, até o momento, dessa proposta do MEC foi feita pelo professor Daniel Cara da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A quem interessar possa, seus argumentos estão em seu curto, preciso e importante Sobre o Novo Ensino Médio. Tudo está lá. Mas outras dimensões gerais – ele sabe e todos sabemos – precisam ser abordadas. E urgentemente. Não restam dúvidas da importância do debate sobre o ensino no Brasil e alhures. Mas talvez se esteja chegando, no Brasil e também alhures, num momento crucial – e, quem sabe, sem volta – de se impor a necessidade de se meditar mais seriamente sobre a profundidade da complexidade do assunto geral que envolve o sentido da Educação neste momento do século.
Beira o truísmo o reconhecimento de que o presente século promoveu uma progressiva multiplicação de tecnologias, meios e mecanismos de acesso a informação, conhecimentos e saberes. Jamais ocorreu tamanha “democratização” de acessos na História da humanidade. Mas, em oposição, não é tão evidente que instituições formais de ensino – independentemente do nível – jamais foram tão descreditadas e desacreditadas.
Constrange dizer e constrange muito mais reconhecer que as instituições formais de ensino – escolas, faculdades, universidades e afins – não participam, desde sempre, que muito marginalmente do imenso universo geral da transmissão de Educação que envolve instituições como família, trabalho, ambiência social e igrejas. Mesmo assim, essas instituições formais foram progressivamente responsáveis pelo melhoramento de sociedades inteiras desde de tempos imemoriais.
Para o bem e seu contrário, elas funcionaram longamente como elevadores sociais muito eficazes. Especialmente após 1945. No entanto, a partir da crise financeira mundial de 2008, essa função social imprescindível perdeu definitivamente a sua eficácia. O elevador entrou em pane e instituições formais de ensino passaram a ser abertamente contestadas e humilhadas.
Mesmo como a redução quase absoluta do iletrismo e do analfabetismo em todo o mundo, as desigualdades multidimensionais, em lugar de diminuir, somente aumentam, especialmente depois de 2008. Mesmo que o acesso à informação, conhecimento e saberes tenha sido massificado, a concentração de conhecimento, riqueza e meios educativos verdadeiramente úteis continua restrita a segmentos diminutos em lugares ainda muito reservados. Somente os devotos da “religião woke” relutam em reconhecer.
Diferente do que se informa aos quatro ventos, o saber e o conhecimento formais de qualidade continuam com o peso e o valor de sempre. Entretanto, no quesito qualidade, eles estão cada vez mais ausentes dos espaços escolares massificados.
Coreia do Sul e Finlândia continuam as exceções no que tange à formação formal inicial. No entanto, a alta performance de seus sistemas escolares não é replicável e nem, talvez, desejável. A competição extrema, no primeiro caso, e confiança, colaboração e valorização dos professores, no segundo caso, envolvem um histórico de learning by doing multissecular incompatível com as urgências do resto do mundo atual.
Quase todos os países africanos, mais Índia, China, México e Brasil possuem dimensões demográficas expressivas somadas a históricos de descaso ostensivo com instituições escolares e com as passarelas entre instituições formais de ensino e outros espaços de transmissão. Como resultado, parcelas majoritárias das pessoas que habitam esses países, regiões e continentes estão, hoje, às portas da “ditadura da ignorância”.
A universalização do ensino formal nesses lugares tem, em contraponto, afirmado uma universalização da frustração dos escolarizados. Especialmente pela dimensão concretamente extremamente rudimentar, pueril e quase inútil do que se ensina em seus ambientes escolares.
O Google, o YouTube e o TikTok, reconheça-se, nesses países, sim, podem ser e geralmente são mais didáticos, pedagógicos e úteis. Essa constatação joga água no moinho do descrédito escolar. Mas está longe de ser um o mais grave.
Instituições formais de ensino são, antes e acima de tudo, espaços de sociabilidade. Lugares de fomento de capital invisível individual e coletivo de pessoas, comunidades e sociedades. Onde se interioriza a distinção inclemente entre público e privado. Onde se compreende que o conhecimento e o saber são buscas infinitas. Onde se entende o sentido do esforço. Onde se aprende que tudo é muito mais complexo do que se imagina.
Essa percepção nobre, digna e sofisticada de instituições formais de ensino vem perdendo a sua fluência e viabilidade. Ninguém pode acreditar que se ensina ou se aprende algo verdadeiramente útil em um estabelecimento de ensino com pessoas – professores, alunos e equipe – que não se identificam com a formalidade nem com o decoro que essa percepção impõe.
Aumentar o tempo e a abrangência da formação no Ensino Médio brasileiro pode até portar alguma importância. Mesmo que seja, sinceramente, muito difícil de se identificar a sua verdadeira relevância. Vale mencionar que os principais sistemas de educação formal do planeta estão reduzindo a carga horária da formação intermediária e investindo em formação complementar continuada alternativa e permanente em todos os níveis.
Nada indica, portanto, que essa proposta brasileira à contravento consiga colocar o elevador de redução de desigualdades em funcionamento novamente.
No fundo, algo muito importante na relação entre instituições formais de ensino e os demais aparatos de transmissão foi maculado no Brasil recente. Não foi sem propósito a ode insistente ao homeschooling até outro dia.
Muito do leite da credibilidade das instituições formais de ensino brasileiras foi derramado. Sem uma verdadeira reabilitação dessa credibilidade – que deveria começar por uma forte valorização da figura e da dignidade do professor –, o leite vai continuar derramando. Mesmo para os indiferentes à lactose que se recusam a ouvir a dobra dos sinos.
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Depois que os sinos dobram. Artigo Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU