20 Agosto 2021
Gastón Soublette não usa computador. Responde suas entrevistas em uma máquina de escrever. Corrige o texto manualmente e, por fim, envia suas respostas, transcritas na íntegra nessa entrevista. Em seus 94 anos, o filósofo, musicólogo e ensaísta reflete sobre o humanismo e a educação, em um mundo cada vez mais desumanizado, à custa da produção e o consumo.
“Em um tempo de caos e desordem como o que vivemos, devemos antes de mais nada tomar consciência de que os males que padecemos são causados por um tipo de humano gerado por esse modelo de civilização puramente econômico e tecnológico”, destaca, de sua casa em Limache [Chile].
A entrevista é de Francisco Castillo Mora, publicada por El Mostrador, 15-08-2021. A tradução é do Cepat.
O que significa, hoje, ser humanista?
Ser humanista hoje significa, antes de mais nada, tomar consciência de que estamos nos desumanizando há muito tempo por causa do império de um modelo de civilização que com seus empreendimentos caiu na desmesura, impondo-nos formas de vida nas quais toda a nossa existência se reduz à economia e tecnologia.
Esse modelo de civilização nos empobreceu psicologicamente e massificou os povos gerando uma racionalidade universal de puros lugares comuns convencionais, uma estrutura mental em que o próprio sentido da vida e a noção de transcendência são substituídos pelo crescimento e o rendimento.
Aqueles que ainda não perderam a capacidade de refletir e a consciência acerca da violência que esse sistema exerce sobre a natureza humana, mobilizam-se para gerar forças que atuam no sentido contrário, a fim de recuperar a sabedoria e a virtude perdidas, a noção de sentido e de transcendência, buscando criar uma forma de cultura alternativa.
Nesse sentido, buscou-se incluir no ensino médio e superior critérios para privilegiar as humanidades acima do reducionismo que implica a avassaladora presença da ciência e a tecnologia. As humanidades devem ocupar o lugar que lhes corresponde por sua capacidade formativa da pessoa humana.
Quem foram suas influências literárias?
Como escritor, meus textos não estão classificados no campo literário. O que escrevi é “ensaio”. Mesmo em meus livros sobre crítica literária ou cinematográfica, o que predomina é uma linguagem filosófica. Sendo assim, não há em minhas obras influências propriamente literárias. Há, sim, influências de pensadores, entre os quais destaco o psicólogo Carl Gustav Jung.
Que lembranças têm de sua educação escolar? Considera que se perderam experiências e valores no sistema educacional chileno?
Minha educação escolar, vista de meus 94 anos, foi, em minha opinião, tremendamente deficitária no que se refere aos valores e à formação da pessoa. Os professores só passavam a matéria e colocavam notas de um a sete para avaliar o desempenho. Eram incapazes de atrair o interesse dos alunos por meio de dissertações e diálogos, gerando uma instância de verdadeira reflexão.
Não tenho acompanhado a evolução do ensino médio, mas fui informado sobre a nefasta tentativa do governo em retirar história e filosofia da lista de disciplinas, o que revela que esse é um país que perdeu sua dignidade.
Que mudanças culturais experimentou ao longo de sua vida? Pensa que o novo ciclo político e uma nova constituição podem exercer uma influência que permita uma mudança cultural na sociedade?
Experimentei mudanças culturais, se assim é possível chamar, ao me aprofundar em temas da cultura popular e indígena. Isso reduziu, em sua justa medida, meu interesse pela cultura europeia.
O mesmo posso dizer em relação ao meu interesse pela sabedoria chinesa, por meio dos clássicos confucianos e taoístas.
Devo o primeiro a Violeta Parra, e o segundo a meus professores Lanza del Vasto e Elena Jacoby de Hoffman.
Acredito que uma nova constituição para o Chile, elaborada por uma assembleia constituinte formada pelos mais diversos segmentos da população do país, por gente que majoritariamente possui um desenvolvido sentido social e que está consciente de que o tema do meio ambiente é prioritário, junto com o consentimento de que os povos originários tragam ainda critérios de ação e pensamento, é um passo à frente em nossa luta contra formas de governo que privilegiam os interesses empresariais acima das legítimas aspirações do povo.
Em um tempo de caos e desordem, onde podemos depositar a nossa confiança no futuro?
Em um tempo de caos e desordem como o que vivemos, devemos antes de mais nada tomar consciência de que os males que padecemos são causados por um tipo de humano gerado por esse modelo de civilização puramente econômico e tecnológico. Esse tipo humano carece de virtude e sabedoria, assim como também carece das noções de sentido e transcendência.
A virtude é a qualidade humana de quem ama e respeita a seu próximo como a si mesmo. A sabedoria é o conhecimento do sentido da vida. E o sentido está atrelado à noção de transcendência. A educação não nos oferece essa base que em outros tempos foi o fundamento de nossa cultura.
Tendo presente essas premissas, o que cabe fazer é enfatizar os aspectos formativos da educação, que se encontram sobretudo nas humanidades e nas ciências sociais, tornando também conhecidas aos jovens as práticas psicológicas, por meio das quais se obtém o conhecimento, o domínio e o dom de si mesmo. Tudo isso se assenta no fundamento cristão de nossa cultura.
Essa pandemia nos leva a olhar novamente com maior atenção ao nosso mundo interior? O que você encontrou no seu?
A pandemia nos forçou a diminuir a intensidade e o neuroticismo que caracteriza as formas de vida dessa civilização. A necessidade de fechar em seus próprios lares toda a população do país, permitiu a convivência mais próxima com os membros da família, o que para muitos significou uma valiosa experiência humana, no entendimento de que estou me referindo a pessoas com uma qualidade humana básica.
Esse confinamento, para outros, ocorreu na solidão, o que para alguns, entre os quais me incluo, foi uma oportunidade para conhecer a si mesmo e buscar um equilíbrio que, quando sincero, permite avaliarmos com melhores critérios o que se fez na vida. Para outros, o confinamento solitário constituiu uma instância de encontro com o Senhor, fora do comum.
Para outros, menos afortunados, o confinamento gerou angústia e neurose, problemas de desemprego e perda de recursos.
No pior sentido do problema, gerou-se um aumento explosivo da criminalidade: roubos, saques, prisões, golpes, assaltos, ataques à propriedade, estupros, sequestros, homicídios e feminicídios.
É preciso tomar distância do fenômeno para se ter uma ideia clara sobre quais foram suas reais consequências.
Você foi chamado de sábio da tribo. Como gostaria de ser lembrado?
O “sábio da tribo” é uma denominação mais poética do que real. Eu me dediquei a estudar os textos dos grandes sábios como Confúcio, Lao-Tsé e outros, e tudo o que concerne à sabedoria bíblica, como também à sabedoria popular crioula e indígena. Meus alunos e amigos estão satisfeitos que o registro tenha certo domínio desses temas que, nos tempos em que vivemos, suscitam muito interesse em um setor cada vez maior, em nível mundial.
Gostaria que lembrassem de mim como o velho cujo coração sempre permaneceu jovem.
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“A sabedoria é o conhecimento do sentido da vida”. Entrevista com Gastón Soublette - Instituto Humanitas Unisinos - IHU