27 Abril 2023
"O Novo Ensino Médio impõe o ensino embrutecedor. Forja novas gerações para o trabalho precário. E representa o sonho neoliberal de capturar o porvir. Revogá-lo é o primeiro passo para construir uma educação crítica e parte do projeto de reconstrução nacional", escrevem Nora Krawczyk, Márcia Aparecida Jacomini e Monica Ribeiro da Silva, em artigo publicado por Outras Palavras, 26-04-2023.
Nora Krawczyk é doutora em Educação pela Unicamp e professora associada no Departamento de Ciências Sociais e Educação da Faculdade de Educação da Unicamp. Coordena o Grupo de Pesquisa EMPesquisa São Paulo e o Grupo de Pesquisa Política, Educação e Sociedade (GPPES). Integra a rede EMPesquisa Nacional.
Márcia Aparecida Jacomini é doutora em Educação pela USP e professora da Unifesp. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud). É membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).
Monica Ribeiro da Silva é doutora em Educação pela PUC/SP e professora titular na Universidade Federal do Paraná. Coordena o grupo de pesquisa Observatório do Ensino Médio e integrada Rede Nacional EMPesquisa.
Ao refletir sobre a função da educação em 1968, Adorno considerava essencial analisar em que medida ela poderia ser algo decisivo contra a barbárie. Hoje se coloca como fundamental saber que educação pode enfrentar a barbárie.
Diante dos ataques às escolas das últimas semanas, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania no Brasil disse: “A gente não está indo bem, a gente está falhando miseravelmente com as crianças e adolescentes deste país” [1].
As palavras de Silvio Almeida nos fazem lembrar o pesadelo que o Brasil está vivendo com a reforma do ensino médio e com os falhos e descomprometidos argumentos a seu favor por setores sociais que só defendem seus próprios interesses e estão muito pouco preocupados com o futuro de nossos jovens e de nosso país.
Que reflexões podemos realizar sobre a reforma do ensino médio a partir das contundentes e verdadeiras afirmações do ministro Silvio? “Estamos criando uma sociedade em que as pessoas acham absolutamente normal fazer culto a armamentos… Nós estamos construindo uma sociedade miserável”. “Nós estamos correndo o risco de entregar um mundo pior para as pessoas que vem depois de nós”. “Nós estamos criando um mundo em que a esperança, o sonho não são possíveis” [2].
A educação é algo muito caro à humanidade para deixá-la nas mãos de poucos, especialmente quando estes representam um único pensamento: impor a racionalidade neoliberal a todos os espaços da vida. A conjuntura nacional do impeachment da presidenta Dilma Rousseff permitiu, por meio da “doutrina do choque” [3], a imposição de uma reforma rejeitada pela maioria dos movimentos vinculados à defesa do direito à educação e apoiada pelos institutos, fundações e movimentos que representam o capital.
Em meio a um discurso alarmista e com forte apoio mediático, típico dos países onde se implementaram diferentes políticas neoliberais, tal como o analisa Noami Klein, se impôs uma reforma educacional antidemocrática. Os estudantes denunciaram este caráter em 2016 e voltam às ruas em 2023 pedindo sua revogação. Eles querem apreender ciência sim, querem ter experiências artísticas sim, declaram os seus cartazes.
O ministro de educação, senhor Camilo Santana, embora mantenha-se alinhado à ideia de que a reforma é necessária e traz benefícios aos estudantes, aceitou “reformar a reforma” para corrigir problemas de implementação, frente aos “absurdos” que vem ocorrendo em relação aos itinerários formativos, e mantém silêncio sobre a drástica diminuição da carga horária da formação científica e humanista. Tendo em vista “melhorar a reforma” abriu consulta e suspendeu o calendário de implementação e de revisão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), estabelecido pelo governo Bolsonaro. Isto nada muda nas escolas de muitos estados que continuam com suas atividades como planejado para 2023. Mas os estudantes que este ano concluirão o ensino médio já no novo formato estão profundamente angustiados frente à incerteza de como será o Enem que eles terão que realizar. Serão penalizados porque cursaram o ensino médio no novo modelo que foi definido e implementado aos trancos e barrancos?
A narrativa construída pelos “reformistas” de que é possível fazer pequenas mudanças e adequações para resolver problemas de implementação poderá nos levar a entregar um mundo pior às novas gerações, um mundo em que a educação não será contra a barbárie, mas a própria barbárie.
Argumentamos neste texto que o problema da reforma não é de implementação, mas de concepção, grosso modo a implementação de uma política pública reflete sua concepção, seu desenho, e não é diferente em relação à reforma do ensino médio.
Em primeiro lugar é importante reafirmar que a reforma do ensino médio em curso não é só uma reforma curricular, ela envolve todas as dimensões que constroem a educação escolar e, portanto, é responsável pelos problemas de implementação que se apresentam no cotidiano das escolas e que impactam a formação dos estudantes, a organização do trabalho pedagógico, as condições de trabalho e a gestão escolar. Ela é responsável porque não aborda as questões estruturais da educação brasileira. Em seus enunciados fica claro o desconhecimento da instituição escolar, dos processos educativos e da juventude(s) brasileira.
A “nova arquitetura” do ensino médio, como é chamada a mudança na organização curricular, representa uma ruptura com a formação científica e humanista comum e geral para todos os estudantes, aspecto fundamental de uma educação contra a barbárie. Será que o objetivo da reforma é formar gerações que aceitem a tragédia humana que a sociedade mergulha sob a égide das políticas neoliberais e do capitalismo financeirizado?
Analisemos a concepção de educação da reforma do ensino médio e como necessariamente traria a desorganização e banalização da importância cultural da instituição escola.
A palavra de ordem da reforma é flexibilização, abrindo a possibilidade de escolha dos alunos, sintonizada com seus anseios e projetos de futuro, através da oferta de um currículo dinâmico e não enfadonho.
Nas últimas décadas as virtudes da flexibilização têm sido o principal argumento para a desregulamentação das relações de trabalho, da desvinculação de receitas dos recursos públicos, do currículo, entre outras. A reforma do ensino médio se insere no conjunto de reformas regressivas implementadas desde o governo Temer.
No caso da Lei 13.415/17 que deu origem à reforma do ensino médio não é diferente, pelo contrário faz parte de uma mesma concepção de reforma do Estado. Através dela não só estamos frente a um processo de desregulamentação da organização e conteúdo curricular, como também do tempo escolar, da responsabilidade pelo oferecimento do serviço educativo (parcerias) e da profissão docente. Em contrapartida, precariza a formação dos estudantes com a introdução da fragmentação curricular, orientada pelo individualismo e pelo empreendedorismo, como solução à barbárie do desemprego e do aumento estrondoso da desigualdade social.
A reforma curricular significa uma nova forma de distribuição do conhecimento socialmente produzido, colocando o ensino médio a serviço da produção de sujeitos técnica e subjetivamente preparados do ponto de vista instrumental, tendo em vista os interesses do capital, quebrando assim a organicidade da educação básica. Daí a pouca atenção voltada à formação de sentido amplo e crítico, ou sua secundarização, assim como a exclusão, como obrigatórias, de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Química, Física etc.
A formação técnico profissional que se pretende é meramente instrumental por ser desvinculada do conhecimento científico, ser ministrada por profissionais sem formação adequada para o exercício do magistério (notório saber) e direcionada para trabalho simples, visto que as escolas não são equipadas com laboratórios que permitam a realização de cursos de maior complexidade. Mais ainda, oferece-se ao estudante certificados intermediários, resultado de cursos de curta duração, que não tem valor no mercado de trabalho.
Que lugar se reserva para os estudantes com esta formação? O mercado de trabalho está passando por uma radical reestruturação em condições de acumulação flexível. Harvey (2012) [4], descrevendo de maneira nua e crua esse processo, mostra que as empresas se estruturam a partir de um núcleo restrito de gerentes, com trabalho em tempo integral, segurança no emprego, boas expectativas de promoção, formação contínua e outras vantagens. Esse grupo deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e se necessário, geograficamente móvel. Depois veem dois subgrupos periféricos: um de empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como o pessoal do setor financeiro, secretárias, responsáveis por trabalhos rotineiros e trabalho manual menos especializado. O outro grupo, também periférico, inclui empregados de tempo parcial ou temporários, com quase nenhuma segurança no emprego e grande flexibilidade numérica. É justamente nesse último grupo que mais cresce o mercado de trabalho.
Retirar disciplinas como Filosofia, Sociologia e História, dentre outras, da grade curricular obrigatória, significa silenciar as vozes e histórias das populações e grupos marginalizados, contribuindo para uma construção cultural e social ainda mais desigual e injusta. Reforça assim a dualidade escolar ao romper com o princípio de formação geral e direcionar os estudantes para itinerários que a escola oferta, não necessariamente que eles escolheram.
A diversificação precoce da escolarização da(s) juventude(s) em percursos formativos, obriga os estudantes, que estão vivenciando suas primeiras experiências de sua trajetória na juventude e, ao mesmo tempo, na última etapa de sua formação básica, a tomar decisões prematuras que ao longo de seu trajeto escolar poderá mudar e nesse caso serão vistas como “erros” de escolha, responsabilizando o jovem estudante pela sua trajetória escolar. As afinidades dos estudantes estão relacionadas a múltiplas experiências escolares e não escolares: familiares, de pares e outras imprevistas.
Em um país com imensas desigualdades sociais, educacionais e escolares só tende a aprofundar as desigualdades, inclusive no que se refere às possibilidades de acesso à educação superior e causa prejuízos, sobretudo, a estudantes das escolas públicas.
A organização do currículo com uma parte diversificada por meio de itinerários formativos é justificada com vistas a levar em conta os interesses dos jovens e baseada em exemplos descontextualizados de países considerados avançados, e sem uma reflexão crítica dessas experiências, inclusive por seus pesquisadores [5].
A inclusão da Educação a Distância é mais um exemplo do desconhecimento do processo educacional dos jovens e da importância cultural e socializadora da escola em prol de interesses privados que visualizam o financiamento estatal da educação como alvo para sua capitalização. (Harvey, 2014) [6]
Com a suspensão de aulas presenciais por conta da pandemia, proliferam as empresas privadas de serviços para EaD que hoje se voltam com força redobrada para sua implantação nos currículos escolares, que tanto a BNCC, com alto grau de padronização e de caráter altamente impositivo, quanto à parte diversificada abriram espaço para novas demandas de produtos e serviços educacionais.
Permitir que parte da carga horária do Ensino Médio seja ofertada na modalidade da Educação a Distância, além de ignorar que o Brasil é um país marcado por imensa desigualdade no que se refere à inclusão digital e a espaços físicos adequados, compromete a formação dos jovens num momento da vida em que o processo educativo não diz respeito apenas à aprendizagem de conteúdos, mas à convivência e à compreensão da função social do conhecimento. Trata-se de aprender e apreender o mundo de forma crítica e criativa o que demanda a vivência coletiva.
Portanto, a revogação da Lei do Novo Ensino Médio é necessária para garantir que a educação no Brasil seja um direito para todos e todas e não um privilégio de poucos. É preciso garantir uma formação crítica e cidadã, que promova a igualdade, a diversidade e a equidade, e que esteja em consonância com as necessidades da sociedade brasileira.
Os problemas de implementação estão ancorados, também, numa concepção de ensino médio dissociada do ensino fundamental, o que desestrutura o ensino, enfraquece o conhecimento científico em nome da flexibilidade curricular. O NEM não atende os anseios dos estudantes, não contribui para a construção de projetos de vida articulados às questões sociais, ele atende aos anseios daqueles que querem controlar a formação dos jovens para que aceitem a barbárie que o atual estágio do capitalismo e a política neoliberal tem provocado.
Entre as muitas medidas para que a educação seja um contraponto à barbárie, a revogação da reforma do ensino médio é imperiosa. Não é à toa que os “reformadores” estão fazendo a disputa com todas as armas, do Luciano Huck ao Estadão, todos em defesa de uma reforma educacional que favorece a barbárie.
1 Discurso emocionado do Ministro Silvio Almeida após o ataque na creche de Blumenau, no evento de apresentação da cartilha do novo Conselho Tutelar. 5/4/2023. Disponível aqui. Acesso 18/4/2023.
2 Idem.
3 Naomi Klein explica em seu livro The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism [A doutrina do choque: A Ascensão do capitalismo do desastre] explica que a história do livre-mercado contemporâneo foi escrita em choques e que os eventos catastróficos são extremamente benéficos para as corporações. Publicado em português pela editora Nova Fronteira, 2008.
4 HARVEY D. Condição Pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 145. 23 edição.
5 Entre outros, ENGUITA, M. e LEVIN, H. Las reformas compreensivas en Europa y las nuevas formas de desigualdade educativa. Revista de Educación, n. 289 (1989).
Jürgen Apel, H. e Álvarez-Valdés, M.V.Desarrollo del Sistema Educativo Alemán 1959-1990. Revista Espanhola de Pedagogia Vol. 50, nº 193 (1992).
SANTOS, D. De Sousa e ZAN, D. Djanira Pacheco: O sistema de ensino australiano: um olhar sobre as desigualdades educacionais. EDUR – Educação em Revista, N.38, 2022
6 HARVEY, D.O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
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Novo Ensino Médio: o que não tem conserto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU