02 Agosto 2023
"Nessa perspectiva, toda sacralização do poder, na medida em que gera abusos (e não apenas no âmbito sexual) deve ser denunciada e processada e isso não tanto no plano jurídico, mas na formação das consciências dos candidatos aos ministérios e dos leigos, chamados a compreender plenamente no fundo o caráter diakonico, isto é, de serviço, que toda forma de ministerialidade é chamada a viver", escreve Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, em artigo publicado por Settimana News, 01-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Está provocando discussões a entrevista concedida por Hans Zollner, jesuíta, professor na Gregoriana, consultor da diocese de Roma para a vigilância sobre os abusos, em 28 de julho no jornal Domani (pág. 6).
Em particular, uma passagem crucial questiona a teologia e pede um estudo mais aprofundado: os abusos encontrariam seu húmus em “uma estrutura hierárquica investida de poder sagrado, que faz com que sacerdotes, religiosos e bispos sejam considerados seres superiores, não graças a competências pessoais ou profissionais, mas simplesmente porque desempenham um cargo. Isso é agravado pelo fato de que esse privilégio é reconduzido à esfera divina, portanto, a algo que está além de qualquer justiça terrena. Nós somos considerados um mundo à parte e isso é muito perigoso teologicamente porque não respeita o pilar do cristianismo, ou seja, que Jesus Cristo se fez homem aceitando submeter-se à justiça terrena”.
A esta altura, como costuma se dizer, é fácil “colocar o dedo na ferida” e cuida disso o seu amigo e colega Fulvio Ferrario, apreciado teólogo valdense no seu blog, quando, depois de precisar que não se pode se basear nessas afirmações para introduzir uma polêmica entre as confissões cristãs, afirma: “é justo assinalar, porém, que Zollner formula, à sua maneira, algumas das objeções evangélicas fundamentais à doutrina católica do ministério, que é o pivô (não UM, mas O pivô) da doutrina católica da Igreja”.
É necessário algum esclarecimento, também porque, se a realidade correspondesse ao que aqui se descreve, não se entenderia porque pessoas como o Padre Zollner e eu mesmo, mas também muitas outras, insistiriam em permanecer "católicas" até à medula. E o primeiro esclarecimento diz respeito ao que Ferrario chama de "doutrina católica" e "mentalidade difundida".
Quanto ao primeiro vocábulo, não podemos esquecer a lição do Concílio Ecumênico Vaticano II a respeito do ministério, dentro de um processo de reconciliação com a modernidade e consequentemente de "dessacralização" das figuras ministeriais. Um magistério que se insere em uma tradição a ser entendida de forma muito mais ampla do que o tradicionalismo afirma, referindo-se apenas ao enunciado a partir o Concílio de Trento (com o relativo destaque para a ritualidade do missal de São Pio V).
Daí uma salutar provocação, como a do colega evangélico: o empenho em fazer com que o último concílio seja recebido e assimilado na forma mentis dos crentes, tanto em nível pessoal como comunitário. E sobre tudo isso estamos nos questionando e trabalhando sessenta anos depois de sua celebração.
A referência à "mentalidade difundida" é mais problemática, pois há muitos, padres e leigos, que não aceitaram a visão de Igreja e de ministério presente no Concílio Vaticano II, de forma que se continua a representar uma forma sacralizada (e eu ousaria dizer "pagã”) das figuras ministeriais.
Nesse sentido, mais do que atribuir os males da comunidade eclesial à renovação conciliar, eles devem ser reconduzidos à persistência de mentalidades, atitudes, comportamentos e representações de tipo pré-conciliar. A esse propósito, no furor da polêmica antiprotestante pós-tridentina, muitas vezes caiu-se na armadilha de identificar a "sacramentalidade do ministério" com a "sacralidade do poder" (operação, aliás, já presente na Idade Média).
A diferença é abismal e não é percebida apenas por aqueles que se obstinam em não querer reconhecer a difícil conversão eclesial que nos conduziu a perceber e viver cada vez mais o ministério como serviço. Aqui é preciso distinguir cuidadosamente tais "reações" daquilo que foi autenticamente transmitido na Igreja ao longo dos séculos que nos precederam.
Em todo o caso, mesmo nesse nível, enquanto persistem atitudes "sacralizantes" o ministério, sobretudo do diácono, do padre e do bispo, é preciso ter uma venda nos olhos para não ver formas e práticas consolidadas presentes nos territórios, em que, especialmente os padres apresentam-se nas suas comunidades e nas cidades e vilarejos onde vivem com um profundo sentido do "serviço" que são chamados a prestar, com todos os defeitos e limitações do seu ser humanos.
Concluindo, a "doutrina católica" sobre a Igreja e os ministérios não se orienta a partir da "sacralidade do poder", mas da "sacramentalidade do ministério". E sobre isso o diálogo com os irmãos evangélicos deve ser mantido aberto.
Nessa perspectiva, toda sacralização do poder, na medida em que gera abusos (e não apenas no âmbito sexual) deve ser denunciada e processada e isso não tanto no plano jurídico, mas na formação das consciências dos candidatos aos ministérios e dos leigos, chamados a compreender plenamente no fundo o caráter diakonico, isto é, de serviço, que toda forma de ministerialidade é chamada a viver.
Permanecer convictamente católicos, mesmo deixando-se provocar pelas reflexões de irmãos de outras pertenças, significa, portanto, arregaçar as mangas simplesmente para que a mensagem do Vaticano II seja finalmente compreendida, bem interpretada e vivida das bases aos mais altos níveis da comunidade.
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O sagrado e o poder. Artigo de Giuseppe Lorizio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU