02 Novembro 2022
"Os seminários poderão ter que ser repensados, mas também terão que ser atualizadas as convicções daqueles que acreditam que seminários e casas de formação são apenas arcas de Noé onde jovens com problemas psíquicos ou de solidão vão se esconder tentando escapar das tensões do mundo".
O artigo é de Matteo Matzuzzi, jornalista, publicado por Il Foglio, 30-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Esquecida a antiga glória, a Igreja se pergunta o que fazer com os seminários. Há quem os queira reformar e quem fechar – O Papa que convida os aspirantes a padres a ficarem longe da pornografia, a CEI que quer que sejam examinados por psicólogas. Prédios cada vez mais vazios, números cada vez mais reduzidos. A Itália ainda se salva em relação ao resto da Europa secularizada, mas até quando?
Ao ouvir o Papa cabe ficar um pouco perturbados e inquietos: até padres e freiras são tentados pela pornografia digital: "Não direi 'levante a mão quem já teve pelo menos uma experiência disso', mas cada um de vocês pense se teve a experiência ou a tentação da pornografia digital”, observou na segunda-feira passada ao receber em audiência os seminaristas e os sacerdotes que estudam em Roma. Afinal, acrescentou Francisco, “é um vício que têm tantas pessoas, tantos leigos, tantas leigas, e também sacerdotes e freiras. O diabo entra por aí”. Ele se referia - e especificou - não ao lado "criminoso" da situação, mas à pornografia "meio normal": "É algo que enfraquece a alma", que "enfraquece o coração sacerdotal". Demasiadas histórias de homens que saíram dos seminários que denotam depois um estilo de vida não propriamente inclinado à missão para a qual foram formados, as crônicas o contam bem, há dioceses sem sacerdotes que, por desespero, acolhem aqueles que em outros lugares são descartados ou afastados pelos mais variados motivos. E muitas vezes nada bons. Mesmo os seminaristas, definidos precisamente como "errantes", que circulam de uma ponta a outra da Itália em busca de algum bispo que os acolha: "A instabilidade relacional e afetiva, e a falta de raízes eclesiais são sinais perigosos", sancionava o documento final do Sínodo sobre os jovens de 2018. Não é bom, disse e reiterou o Papa, algo deve ser feito para intervir primeiro, na raiz do problema.
A tentativa, talvez possa ser a última, é confiar a um psicólogo (de preferência uma psicóloga - curiosa a distinção entre homens e mulheres mesmo entre os profissionais, como se um psicólogo só por ser homem não esteja apto a investigar o estado do candidato) quantos entrarão no seminário. O/a especialista será chamado para avaliar se existem problemas nos jovens rapazes, de modo a minimizar as infelizes surpresas futuras que muitas vezes têm a ver com episódios de violência ou colapsos psíquicos que também pesariam sobre as comunidades confiadas a tais pastores. Os chamados padres "neuróticos" (cit. Jorge Mario Bergoglio). A Conferência Episcopal Italiana está trabalhando no projeto, será mais conhecido em maio, quando o plenário dos bispos votará os projetos para tentar desmentir aqueles que - e não são poucos - profetizam o iminente fechamento dos seminários devido à ausência de novos ingressos.
A Itália ainda se salva em relação à evidente desolação do outro lado das fronteiras, basta saber que enquanto 114 sacerdotes foram ordenados na França em 2018 (dos quais apenas 68 diocesanos), na Itália os novos sacerdotes somavam 248. No entanto, as campainhas de alarme tocam em ritmo incessante e estão cada vez mais altas, se é verdade que há sete anos os números sempre estão abaixo de 300, que por muito tempo foi uma espécie de linha vermelha convencional que avaliava a saúde do "sistema". Não há muito a fazer: há 50 anos as vocações diminuíram mais de 60%, de 6.337 seminaristas em 1970 para 2.103 em 2019. Hoje, há mais ou menos 1.800 aspirantes a sacerdotes na Itália e se calcularmos a idade média do clero, é fácil entender que em breve haverá um problema de cobertura das paróquias, com sacerdotes chamados a trabalhar horas extras e a serem cada vez mais funcionários do que padres. A falha está aberta há tempo e a questão vai muito além de números e estatísticas.
Mons. Erio Castellucci, que é vice-presidente da CEI, notava que se é verdade que os números do despovoamento são impressionantes, as formas “menos marcantes” da crise, as “privadas”, são as mais preocupantes. De fato, ele escreveu no prefácio do livro de Enrico Brancozzi Rifare i preti. Come ripensare o seminari (EDB) que “os pedidos de dispensa do ministério presbiteral não estão em declínio e o número de seminaristas continua diminuindo na Itália: dois indicadores muito claros de uma crise que continua a se manifestar. Não é mais um navio que se move fazendo as sirenes soarem; é um submarino que viaja quase sem ser notado, mas os efeitos continuam sendo tangíveis. A ressonância nacional é geralmente reservada para casos de imoralidade aberta; mas não são poucas as situações de crise pessoal que aparecem localmente”. Dom Domenico Cambareri em Contro Don Matteo. Essere preti in Italia (EDB) está certo disso: a crise do clero surge "certamente onde o pensamento deveria ser nutrido: os seminários diocesanos". De fato, explica que “se nos queixamos de uma ideologia eclesiológica frágil é porque há um pensamento já atrofiado que não sustenta mais o impacto com a história. Com o tempo, o mal-estar ganha forma e explode nas paróquias e os presbíteros são o contexto eclesial que, em vez de intervir na situação aliviando-a, a agravam, dando origem a um estilo de fraternidade cordial, sim, mas bem longe do risco de qualquer envolvimento emocional".
O já mencionado documento final do Sínodo sobre os jovens de 2018 colocou todos os problemas no papel: se os seminários são de fato lugares de absoluta importância, “às vezes esses ambientes não levam em conta adequadamente as experiências anteriores dos candidatos, subestimando sua importância. Isso bloqueia o crescimento da pessoa e corre o risco de induzir a assunção de atitudes formais, mais do que o desenvolvimento dos dons de Deus e a profunda conversão do coração”. Por isso, esclarecia-se: "Ao acolher os jovens nas casas de formação ou seminários é importante verificar um enraizamento suficiente em uma comunidade, uma estabilidade nas relações de amizade com os pares, no empenho de estudo ou de trabalho, no contato com a pobreza e o sofrimento“ e “o contributo da psicologia deve ser entendido como um auxílio para o amadurecimento afetivo e a integração da personalidade, a ser inserido no itinerário formativo segundo a deontologia profissional e o respeito pela efetiva liberdade de quem está em formação”.
É necessário um trabalho em equipe e também devem fazer parte do quadro as “figuras femininas”. Talvez o Papa ainda se lembre de quando não deu importância à sugestão que lhe foi dada por uma "mulher da paróquia", que o havia avisado sobre um jovem aspirante ao sacerdócio: "Lembro-me de um caso, um bom garoto, inteligente, que ia ser ordenado diácono. Uma senhora da paróquia disse-me: 'Eu o faria esperar um pouco porque é bom, tem todas as qualidades, mas tem algo que não me convence'. E um irmão coadjutor me disse 'Padre, faça ele esperar um ano, não vai fazer mal'. Os outros, só incenso. Eu segui aquele caminho, e depois de quatro meses ele foi embora por vontade própria, havia estourado uma crise”.
Não é um fenômeno infrequente, ainda que, segundo as palavras de Francisco, não é tanto o papel da paroquiana que chama a atenção, mas o fato de que quem era indicado para a formação dos futuros sacerdotes talvez não tenha se demonstrado muito perspicaz em avaliar todos os aspectos psicológicos do candidato. O problema está todo nos seminários, escrevia há alguns anos na revista estadunidense Commonweal um grupo de ex-professores dedicados à formação de futuros padres: “Os seminários desempenharam um papel significativo na atual crise da Igreja. É essencial entender como se formam os sacerdotes e, portanto, em última instância, os bispos”. É crucial, acrescentava, "entender a forma como são inculturados ao clericalismo desde os primeiros dias do seminário".
Estamos, portanto, diante de uma súbita corrupção dos costumes dos seminários? Segundo Massimo Firpo, autor de Riforma cattolica e concilio di Trento. Storia o mito storiografico? (Viella), não é que nos séculos passados as coisas fossem melhores. Há cartas e relatórios assinados por bispos e notáveis documentando episódios constrangedores de devassidão, ignorância, conventos “mais bárbaros que a barbárie espanhola”. Mas há também outros testemunhos, menos recentes, de padres incômodos ou julgados tais, que entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX contavam sua dura experiência no seminário, na maioria das vezes levando à censura ou ao desaparecimento de tais libelos, com o confinamento no esquecimento do autor.
Em suma, os escândalos de hoje só são amplificados pela circulação das informações e pela caixa de som midiática. A crise já existia e existe, e se antes era escondida pelo número exorbitante dos que entravam no seminário - seja por motivos sociais, ou apenas para estudar - hoje que aqueles imensos prédios estão vazios, emerge em toda a sua força desarmadora. Segundo Mons. Castellucci, “os mesmos padres de Trento, se se reunissem hoje, dariam vida a um seminário diferente daquele que providencialmente eles orientaram; e o fariam, creio eu, precisamente a partir da mesma instância da época: a necessidade de formar presbíteros capazes de ser pastores e estar no meio do rebanho. Provavelmente, porém – continuo com certa dose de presunção – não se centrariam na delimitação do território mas na proximidade com o povo de Deus”.
A questão é profunda: sempre Mons. Castellucci em entrevista ao L'Osservatore Romano disse, algum tempo atrás, que "hoje os jovens candidatos têm muitas vezes que lidar com vários temores: o medo de se desgastarem em incumbências organizacionais sufocantes mais que no anúncio do Evangelho, o risco de sentir-se atolados em uma pastoral tradicional, sem novidade e sem entusiasmo, o risco do hiperativismo que condiciona o tempo de oração e da reflexão, as dúvidas sobre a qualidade do próprio celibato, que hoje é menos protegido do que no passado. E, sobretudo, o medo de não conseguir manter uma coerência de vida ao longo dos anos, na inevitável comparação com os padres que não são coerentes, ou que abandonam o ministério: embora poucos, a sua situação faz muito barulho. Parece-me que a atual estruturação do Seminário já não seja mais suficiente para equipar os futuros presbíteros”.
Há muito que a Itália foi se embalando no mito de ser uma ilha feliz, mal e mal tocada pela onda da secularização que abalou as igrejas do centro e norte da Europa, como se os Alpes tivessem atuado como uma barreira à inevitabilidade de um movimento que há muitas décadas (na Holanda remonta à época entre as duas guerras, bem antes, portanto, do Vaticano II, erroneamente considerado o fator que determinou o colapso de um mundo) secou uma presença outrora florescente.
Hoje multiplicam-se os projetos de reforma e adequação da estrutura aos tempos atuais. Há também aqueles - e não são poucos - que apelam à sua supressão. Não tanto por "ódio" ao seminário, mas porque, argumenta-se, não é mais necessário. O mundo não é mais o de Trento, o século XXI não é o século XVI, a sociedade não é mais cristã. É preciso estar no mundo e não se isolar. O seminário, dizem sempre os que propõem a sua abolição, promove o clericalismo: tema profundamente sentido nos EUA, onde se publicaram dezenas de artigos, estudos e reflexões sobre este aspecto, sobretudo do lado do catolicismo liberal que coloca todos os indícios que levariam à condenação do seminário: os jovens que assim que entram começam a estudar italiano sonhando com uma carreira romana, que usam batina e até abotoaduras. Indícios de que algo está errado, cheiro de clericalismo e tradicionalismo, nada de pobres, periferias e eclesiologia do Vaticano II. Será realmente assim? Escreveu Mons. Massimo Camisasca, fundador da Fraternidade de São Carlos Borromeu, que envia missionários para todo o mundo e que entende de formação, que “as pedras angulares fundamentais do caminho educativo proposto no seminário da Fraternidade de São Carlos são a liberdade, a autoridade e a amizade. Educar não significa apenas comunicar ideias, mas envolver-se na vida de outra pessoa, partilhar a sua existência em profundidade”.
Os seminários poderão ter que ser repensados, mas também terão que ser atualizadas as convicções daqueles que acreditam que seminários e casas de formação são apenas arcas de Noé onde jovens com problemas psíquicos ou de solidão vão se esconder tentando escapar das tensões do mundo.
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A fábrica dos padres está em ruínas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU