11 Julho 2023
O cartão de visita de dom Víctor Manuel Fernández, novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, é resumido em um trecho da entrevista publicada pela Infovaticana em 5 de julho. Resposta interessante, digna de nota.
A reportagem é de Fabrizio Mastrofini, publicada por Settimana News, 10-07-2023.
"Não lhe parece certo que, em determinado momento da história, um latino-americano que era pároco nas periferias, que cresceu em uma pequena cidade do interior, com uma sensibilidade para a dor dos marginalizados da sociedade, com uma história de vida muito diferente daquela de um europeu ou de um americano, mas que, ao mesmo tempo, tem um doutorado em teologia, deva ocupar este cargo? Mais uma vez, digo que aprenderei com a história, respeitarei os processos, dialogarei, mas vou fazê-lo ‘à minha maneira’".
Vale ressaltar que a Infovaticana é um jornal on-line que se caracteriza por posições muito decididas inspiradas pelo conservadorismo católico e pela fustigação dos costumes. O afã por títulos chamativos levou em 8 de julho (dia do relatório dos bispos espanhóis sobre os abusos sexuais do clero, traduzido integralmente pela revista Crisis, outro jornal on-line de mesma tendência), ao título: “La infestación homossexual de la Iglesia católica”, ou seja, “The Homosexual Infestation of the Catholic Church”, tradução fiel em espanhol do artigo original em inglês, de uma reportagem que na verdade fala sobre os abusos.
Mas, voltando ao novo prefeito, desde a nomeação em 1º de julho, já existem algumas postagens pessoais no Facebook em resposta às críticas, especialmente para o livro de 1995 sobre a arte de beijar "Cura-me com tua boca: a arte de beijar", que, mesmo sem ter sido lido nem sequer folheado, pois está esgotado, fez seu autor ser alcunhado, na Itália e fora, como "O arcebispo especialista em beijos".
Apesar de duas postagens de esclarecimento, a Infovaticana volta ao assunto e o novo prefeito responde. “Qualquer teólogo, biblista ou estudioso da literatura sabe que, para interpretar um texto é fundamental colocar-se claramente diante do seu gênero e não lhe pedir o que não pode dar. Esse é um livro que escrevi com um grupo de jovens quando eu era um jovem pároco.
E o tema do livro é profundamente conservador. Vocês sabem por quê? Porque respondia à preocupação daqueles jovens – muito bem formados por mim – de aprender a explicar a outros jovens por que se deve evitar o sexo antes do casamento. Pois bem, enquanto conversávamos e conversávamos, ocorreu-nos enfatizar que o sexo não é tudo, que se você o adiar, se pode desenvolver muitas outras formas de expressar o amor e crescer nesse amor. Assim, como exemplo de uma daquelas expressões de afeto que podem ocorrer sem a necessidade do sexo, havia o beijo.
Assim, junto com eles, pesquisamos com outros jovens, procuramos poesias e montamos juntos essa catequese. Não era um manual de teologia, era uma tentativa pastoral da qual nunca me arrependerei. (…) De fato, pouco tempo depois, pedi ao editor que não o reimprimisse. Não lhe parece que seja algo mal intencionado pegar aquele livrinho, usar frases isoladas daquele livrinho pastoral juvenil para me julgar como teólogo?”
A pergunta com a qual se fecha a resposta obviamente não tem seguimento por parte do editor da entrevista. No entanto, levanta uma questão sobre a "teologia" do novo prefeito. Sobre esse tema o próprio arcebispo teceu algumas considerações, desta vez em entrevista concedida ao Crux Now, o periódico on-line fundado e dirigido por John Allen, um conhecido e estimado vaticanista americano e que está em Roma há muitos anos.
"Durante minha formação em Roma", escreve o arcebispo, "me especializei na Sagrada Escritura. Isso também me orientou para os estudos hermenêuticos e me aproximei particularmente do filósofo [Hans-Georg] Gadamer, que me influenciou profundamente. Depois fiz um doutorado em teologia sobre o pensamento de São Boaventura, em particular sobre a relação entre conhecimento e vida, tema que também marcou profundamente minha maneira de entender a teologia e o serviço dos teólogos, orientado a alimentar a vida espiritual".
E continua: "Quanto aos pensadores modernos, concentrei-me principalmente nos grandes: Rahner e von Balthasar. Recebi muito de ambos. Na Faculdade de Teologia, ministrei cursos de Teologia (Pneumatologia, Tratado sobre a Graça, Antropologia) e também de Bíblia (sinópticos, hermenêutica e pregação, etc.). Além de muitos escritos informativos, certamente escrevi textos mais elaborados e especulativos: numerosos artigos de exegese bíblica, um manual sobre a Graça, um manual de Teologia Espiritual, artigos sobre o estado intermediário e sobre a pessoa do padre (na revista Angelicum), artigos sobre o pensamento paulino, sobre as relações com o judaísmo e sobre a inculturação (na Nouvelle Revue Théologique), só para dar exemplos".
Importante, na entrevista da Crux Now, a pergunta seguinte sobre como entende o diálogo teológico. Pergunta que contém uma implicação, relativa à Pontifícia Academia para a Vida.
O jornal conservador on-line La Nuova Bussola Quotidiana, em poucos dias já dedicou vários artigos ao fato de que, com o novo prefeito, alinha-se o eixo astral que liga dom Paglia (e o Papa Francisco, é claro) para desmantelar a teologia moral católica. Duas provas: o volume Etica teologica della vita, publicado em junho de 2022 e promovido pela Pontifícia Academia para a Vida, e agora a própria nomeação do novo prefeito.
Dadas essas premissas, é importante ler a resposta completa à pergunta: como entende o diálogo teológico?
“Quando se olha a quem compõe a Comissão Teológica Internacional, se verá que são pessoas de linhas diferentes, mas têm a tarefa de produzir um documento comum. A experiência de Aparecida, e o objetivo de Bergoglio naquele momento, consistia em chegar a um documento final que refletisse a riqueza e a variedade da discussão daquelas semanas. Por um lado, o diálogo teológico implica a busca de um certo consenso, mas nem tudo se resume ao consenso.
Um texto também pode recolher e indicar que, para além desses consensos, existe uma diversidade de opiniões que pode enriquecer aquele tema, sobre o qual será necessário continuar a se aprofundar. Nem tudo tem que ser ‘fechado’. Recordemos, por exemplo, a famosa controvérsia de auxiliis em que duas escolas teológicas [os dominicanos e os jesuítas] brigaram e se condenaram mutuamente. O papa da época [Clemente VIII] não quis encerrar a questão e disse que ainda era uma questão de livre discussão que precisava ser mais aprofundada.
Por outro lado, hoje é inevitável incorporar elementos que vêm do diálogo ecumênico e inter-religioso, mas é preciso aceitar que isso não implica que todos usemos as mesmas categorias teológicas ou a mesma linguagem. É necessário aceitar de uma vez por todas que existem diferentes linguagens teológicas. Já Santo Agostinho e São Tomás diziam que a teologia também se faz com metáforas. No diálogo inter-religioso, por exemplo, o espaço mais rico e fraterno é criado entre os monges, que falam a partir de uma experiência espiritual na qual se encontram preciosos pontos de contato”.
E já que estamos no tema, para o periódico espanhol (on-line e impresso) Vida nueva, o novo Prefeito responde uma pergunta em que se pede para falar sobre a teologia do povo e se ela seria, como dizem os detratores do papa, uma nova forma de marxismo.
“Eu diria duas coisas. Por um lado, parece-me que houve um grande crescimento nesse sentido. Hoje, essa sensibilidade à dor dos pobres e essa atenção à cultura dos desfavorecidos é mais bem compreendida do que em outras décadas. Também os políticos de direita falam dos pobres, ainda que difiram nos métodos propostos para erradicar a pobreza. Por outro lado, porém, nos últimos anos a polarização da sociedade voltou a aumentar e tudo o que tem a ver com esta mensagem é considerado “populista”. E é a acusação mais difundida, mais que "comunista".
Por último, para o momento, chegou uma entrevista do VaticanNews, o canal oficial da Santa Sé, do Dicastério para a Comunicação, que não acrescenta muito ao que já foi dito.
A partir dessas premissas – postagens, entrevistas, atenção constante da imprensa católica internacional – quando ele ainda nem partiu para Roma, será interessante verificar o que acontecerá em termos de declarações, uma vez que o novo prefeito estiver instalado.
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“À minha maneira”: o programa do Prefeito latino-americano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU