04 Julho 2023
Ter saúde, ou seja, desfrutar de um completo bem-estar físico, mental e social, é um dom que depende de inúmeros fatores que interagem entre si. Embora estejamos acostumados a supervalorizar o papel da saúde, a verdade é que os elementos mais decisivos em nossa saúde se dão fora dos centros de atenção primária e dos hospitais. Tanto que a genética, os comportamentos, as condições socioeconômicas, o nível educacional, as redes sociais de apoio e as características do local em que vivemos influenciam, entre muitos outros fatores, em 89% da saúde humana.
A reportagem é de Esther Samper, publicada por El Diario, 02-07-2023. A tradução é do Cepat.
Como explica o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, da mesma forma como a paz não nasce no campo de batalha, nem a justiça nos tribunais, a saúde também não começa nas clínicas e nos hospitais. Nesse sentido, algumas políticas públicas ambiciosas podem ter muito mais efeitos sobre a saúde de uma população (ao promover e proteger a saúde e prevenir as doenças) do que grandes investimentos em Saúde.
Dentro do amplo e intrincado conjunto de fatores que incidem sobre a nossa saúde, as empresas também têm um papel muito relevante. As práticas das empresas, positivas ou negativas, também possuem um grande impacto na saúde das sociedades humanas. Não obstante, essas influências comerciais sobre a saúde costumam receber relativamente pouca atenção, apesar do alto número de mortes que provocam.
Para lutar contra esse fenômeno, há alguns meses, a revista médica The Lancet publicou uma série especial de artigos que analisam, com diferentes enfoques, como as empresas impactam na saúde das pessoas, um conceito conhecido como “determinantes comerciais da saúde”. Também são propostas diferentes estratégias para limitar a influência negativa dessa indústria sobre a saúde da população do planeta.
No editorial que acompanha a série de artigos, expõe-se o caso ocorrido durante a pandemia de Covid-19. Diversas empresas farmacêuticas, que receberam um importante investimento público, venderam suas vacinas, tratamentos e testes para quem mais pagou, o que causou uma desigualdade global na saúde que custou mais de um milhão de vidas, enquanto as empresas obtinham lucros multimilionários.
As práticas empresariais que foram implementadas para dificultar o acesso de pacientes com HIV a antirretrovirais, em países de baixa renda, no final do século passado, e a desinformação espalhada por empresas de leite de fórmula para estorvar a amamentação são outros exemplos claros do impacto negativo de determinadas práticas comerciais sobre a saúde.
Além dos efeitos sobre a saúde, determinadas práticas comerciais também podem contribuir para desigualdades raciais e de gênero. Por exemplo, no passado, a indústria mundial do tabaco foi associada ao colonialismo e à escravidão e, hoje, inúmeros anúncios em diversos países continuam coisificando as mulheres como um objeto sexual.
Certas multinacionais estão intensificando seus efeitos negativos sobre a saúde humana e do planeta, ao mesmo tempo em que promovem maior desigualdade social e sanitária. Quatro setores econômicos, em particular (tabaco, álcool, combustíveis fósseis e produtos alimentícios não saudáveis), estão por trás de ao menos um terço das mortes mundiais anuais, segundo o estudo sobre a Carga Global de Doenças, em 2019.
Os produtos oferecidos por essas empresas causam, direta ou indiretamente, um total de 19 milhões de mortes anuais no mundo (34% do total de 56 milhões de mortes) desencadeadas por câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças respiratórias crônicas, entre outras, e também provocadas pela crise climática.
A estimativa acima é bastante conservadora e é provável que, na realidade, os danos à saúde sejam ainda maiores do que os calculados. Outras empresas que afetam negativamente a saúde das sociedades humanas são as dedicadas às apostas, à comercialização de leites artificiais e à mineração.
Algumas soluções políticas poderiam impedir esse dano, mas em muitos países não estão sendo implementadas e os danos provocados por alguns produtos e práticas comerciais acarretam um grande custo para indivíduos e sociedades. O diretor da OMS destaca que nosso atual sistema socioeconômico global prioriza, antes de tudo, a geração de lucros empresariais cada vez maiores e o crescimento econômico, sem levar em conta como isso impacta na saúde, no meio ambiente e nas sociedades.
Além disso, Tedros Adhanom explica que “quando os lucros estão ameaçados, algumas empresas e outros atores com interesses comerciais diretos minam deliberadamente as políticas de saúde pública, incluindo o assessoramento da OMS, por meio de grupos de pressão, ameaças legais, autorregulação ineficaz, distorção das provas científicas, acobertamento de suas práticas e outras ações”.
Os autores da referida série da revista The Lancet destacam que o conflito entre os lucros empresariais e a saúde das pessoas não é novo. No entanto, Rob Moodie, professor de Saúde Pública da Universidade de Melbourne (Austrália), aponta que, “agora, estamos em uma situação em que os lucros estão muito acima das pessoas e do planeta”.
Compreender melhor a complexa influência das empresas, com efeitos positivos e negativos, é essencial para estabelecer leis que detenham ou limitem aquelas ações empresariais que representem um risco à saúde, enquanto se fortalece outras (por meio de investimentos e outras ações) que promovam a saúde e o bem-estar. Na revista médica, fazem um convite a dar importância e reforçar o investimento no estudo dessa matéria: “A Saúde Pública não pode e nem vai melhorar sem medidas nos determinantes comerciais da saúde, do nível local ao global”.
Atuar de forma decidida sobre os determinantes comerciais da saúde não só significaria evitar inúmeras mortes, mas também reduzir de modo notável o impacto das doenças (diabetes, câncer, doenças cardiovasculares...) que mais afligem as sociedades dos países ricos e também das doenças infecciosas que afetam, de modo especial, os países em desenvolvimento.
Desde o ano 2020, a OMS está realizando uma série de iniciativas para repensar o modelo econômico para que se concentre mais em indicadores de saúde e bem-estar do que em outros puramente monetários, como o Produto Interno Bruto. Segundo a revista The Lancet, “a saúde deve se tornar uma consideração crucial nos marcos de investimento e mercados mundiais de capitais. Para isso, será necessário adotar modelos econômicos diferentes, novas medidas legislativas e regulatórias, a defesa e a prestação de contas por parte da sociedade civil e uma melhor responsabilidade social das empresas”.
Em 2024, a OMS publicará o primeiro Relatório Global sobre os Determinantes Comerciais da Saúde, que será acompanhado, por sua vez, por uma conferência global sobre essa questão.
A pesquisadora em Saúde Pública e autora de um dos artigos na revista The Lancet, Anna Gilmore, argumenta que muitas das mortes de pacientes são provocadas por produtos e práticas de grandes corporações, sendo muitas totalmente evitáveis. A especialista pede aos profissionais de saúde que “se unam ao chamado em favor da mudança e pressionem os governos para que tomem medidas, entre outras razões, porque os sistemas de saúde não podem enfrentar o peso da morbidade provocada por algumas empresas, atualmente, e ao custo que isso acarreta”.
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Quatro setores empresariais estão por trás de mais de um terço das mortes anuais no mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU