“Um projeto de saúde universal seria um projeto no qual há um planejamento para atender ao conjunto da população, com ações de promoção à saúde, prevenção de doenças, vigilância de agravos com potencial”, pontua o médico sanitarista
Três são as questões urgentes para enfrentar o sucateamento do Sistema Único de Saúde – SUS, desde a implementação da Emenda Constitucional – EC 95, que instituiu o teto de gastos: ampliar a imunização, expandir a cobertura de atenção básica à saúde e reduzir as longas filas de espera para a atenção especializada, diz Hêider Pinto ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ele, essas “têm sido a prioridade do governo”. A recomposição do orçamento, destaca, “garantiu as primeiras medidas do governo Lula no Congresso Nacional. Sem essa recomposição do orçamento não seria possível tentar garantir a saúde como direito de toda a população. O SUS estava com diversas fragilidades orçamentárias no programa de vacinação, na farmácia popular, no financiamento das ações de serviço e saúde e no Programa Mais Médicos. Todos esses serviços tinham menos recursos do que necessário; a retomada desses financiamentos é muito importante”.
Outra iniciativa fundamental para enfrentar o sucateamento do sistema de saúde, menciona, é o retorno do Programa Mais Médicos. “Para se pensar na expansão da cobertura de atenção primária da população, sem dúvida alguma o Programa Mais Médicos é decisivo, em especial nas áreas mais vulneráveis, seja no interior do país, no semiárido Nordestino, nas regiões ribeirinhas do Norte da Amazônia, seja na periferia de cidades como Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador ou aí mesmo no Vale do Sinos”, defende na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp. De acordo com ele, somente o acesso à atenção primária à saúde “tem capacidade de resolver mais de 70% dos problemas de saúde” da população.
Hêider Pinto (Foto: Reprodução)
Hêider Pinto é médico sanitarista e militante da reforma sanitária. Mestre em Saúde Coletiva e doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.
IHU – Nos últimos anos, fala-se do sucateamento do SUS. Como esse sucateamento se manifesta na prática hoje?
Hêider Pinto – O sucateamento do SUS se mostra em diversos aspectos. O principal elemento que contribuiu para essa situação foi a aprovação da Emenda Constitucional que estabeleceu o teto de gastos e, consequentemente, limites máximos para o uso de recursos na saúde, fazendo com que o sistema de saúde perdesse dezenas de bilhões de reais se comparado aos recursos que o sistema deveria ter se a regra anterior continuasse vigente.
Essa situação foi observada na Atenção Primária à Saúde, com a paralisação da expansão da cobertura, o fim da ampliação de novas unidades básicas de saúde, a redução do número de agentes comunitários de saúde, além das dificuldades relacionadas ao Programa Mais Médicos nos últimos anos dos governos Temer e Bolsonaro. Houve também uma redução de investimentos na área de saúde mental e nos centros psicossociais. Ainda que a pandemia tenha forçado a ampliação das Unidades de Terapia Intensiva – UTIs, por outro lado, vários serviços foram reduzidos. Isso se expressa na redução do número de consultas e vários quantitativos demonstrados pelos números. Portanto, trata-se de um sucateamento na expansão de novos serviços, na produção, com consultas, procedimentos, cirurgias, e na redução do número de profissionais, onde a redução de agentes de saúde é o sinal mais marcante.
IHU – Quais os três pontos mais urgentes que precisam ser resolvidos em relação ao SUS no país atualmente?
Hêider Pinto – Três são as questões urgentes e que têm sido a prioridade do governo. Uma delas diz respeito à imunização; não estou falando somente da Covid-19, mas da redução da cobertura vacinal que houve nos últimos anos e que poderá trazer diversos problemas de saúde e crises sanitárias, inclusive com o retorno de doenças que já haviam sido erradicadas ou estavam controladas. Outro aspecto fundamental é ampliar a cobertura de atenção primária à saúde para poder ter, de fato, a letra constitucional sendo cumprida na prática, que consiste em garantir cobertura universal de atenção primária para toda a população e, a partir da atenção primária como porta de entrada, conseguir garantir acesso a outros serviços que a população precisar. O terceiro aspecto consiste em reduzir e enfrentar as longas filas de espera para a atenção especializada, como consultas, exames, procedimentos, incluindo não somente procedimentos de diagnóstico, mas cirúrgicos também. Esses são os três elementos centrais a serem enfrentados imediatamente.
IHU – Como essas questões estão sendo abordadas no governo Lula? Qual sua avaliação? O que há de novo na área da saúde no governo?
Hêider Pinto – Faço uma avaliação muito positiva dos primeiros meses do governo, com a escolha da ministra da Saúde [Nísia Trindade Lima], que é claramente defensora da ciência e teve uma liderança importante na Fiocruz, ligada ao movimento brasileiro de reforma sanitária, comprometida com a saúde como direito de todos e dever do Estado. É a primeira ministra, desde 2016, que reafirma integralmente os elementos da Constituição brasileira previstos no capítulo sobre saúde. Isso é fundamental.
Outra coisa decisiva no novo governo é a recomposição do orçamento que garantiu as primeiras medidas do governo Lula no Congresso Nacional. Sem essa recomposição do orçamento não seria possível tentar garantir a saúde como direito de toda a população. O SUS estava com diversas fragilidades orçamentárias no programa de vacinação, na farmácia popular, no financiamento das ações de serviço e saúde e no Programa Mais Médicos. Todos esses serviços tinham menos recursos do que necessário; a retomada desses financiamentos é muito importante.
Também são muito importantes as prioridades estabelecidas pelo governo, como a prioridade clara na área de vigilância, para poder recuperar o programa de vacinação e imunização, a retomada do Programa Mais Médicos, a aprovação da lei de saúde bucal [Lei n. 14.572/2023] para garantir atenção odontológica gratuita de qualidade, tanto nas unidades básicas de saúde quanto nos centros de especialidade odontológicas, e nos laboratórios que fazem as próteses dentárias.
Na atenção especializada, várias medidas voltaram a ser embasadas em evidências, seja na condução da saúde da mulher, seja em relação à saúde mental, retomando um caminho que o SUS vinha percorrendo há décadas, mas que havia sofrido ingerências ideológicas no desgoverno anterior, seja no parto, seja na criminalização do abordo ou na adesão de uma lógica manicomial na saúde mental.
O aporte de mais um bilhão de reais para a redução de filas de espera para consultas especializadas, exames e cirurgias eletivas no sistema de saúde também foi fundamental. As filas de espera estavam enormes e, agora, o país começa a se organizar para, no momento presente, enfrentar essa situação e construir um projeto estruturante que evite que as filas aumentem novamente.
Outra medida importante do novo governo é a prioridade dada à criação da Secretária de Informação e Saúde Digital [criada por meio do Decreto n. 11.358/2023]. Este é um passo necessário que o sistema de saúde brasileiro precisa dar em relação à transformação digital para ter serviços mais efetivos, eficientes e fáceis de serem acessados pela população, e para que os profissionais de saúde possam cuidar de maneira humanizada, personalizada e melhor das pessoas.
IHU – O que seria um projeto de saúde universal para atender às demandas da sociedade brasileira?
Hêider Pinto – Um projeto de saúde universal seria justamente um projeto no qual há um planejamento para atender ao conjunto da população, com ações de promoção à saúde, prevenção de doenças, vigilância de agravos com potencial ou de impacto negativo na população. Precisamos de programas de promoção da saúde, academias da saúde, saúde na escola, programas de vacinação, além da necessidade de enfrentar questões relativas ao saneamento básico. Todos esses elementos fazem parte de um projeto universal. Geralmente, pensamos só na questão da saúde, mas esquecemos os aspectos relativos à vigilância. O acesso à atenção primária para toda a população brasileira, com atendimento próximo das casas das pessoas, tem capacidade de resolver mais de 70% dos problemas de saúde. Além disso, pode ser um incremento progressivo na capacidade de continuar o cuidado daqueles problemas que são mais comuns e extrapolam a capacidade de resolução da atenção primária.
IHU – Quais são os principais desafios para a reconstrução do SUS?
Hêider Pinto – Os desafios para a recuperação do SUS passam pela recomposição do financiamento, pela recuperação da gana, do otimismo, da vontade das pessoas trabalharem pela construção do Sistema Único de Saúde. O processo de sucateamento, a redução das remunerações, a precarização das relações de trabalho e o esforço feito durante a pandemia esgotaram muito os profissionais de saúde. O resgate desse elemento humano é fundamental para conseguirmos superar os desafios. Ao mesmo tempo, é preciso um investimento importante não só nos profissionais do dia a dia, mas nos gestores. Precisamos fazer essa mesma convocação aos gestores, para saírem dessa situação de desgoverno e passar novamente a coordenação das ações nos estados e municípios, de maneira articulada com o governo federal, discutindo políticas de curto, médio e longo prazos.
Outro elemento importante é o Brasil atualizar a Política de Saúde Digital, que é fundamental hoje no mundo inteiro, no setor público e privado, para conseguirmos ter serviços mais efetivos, com mais resultados, com menos gastos de recursos e mais agilidade e proximidade das pessoas.
IHU – Sua tese doutoral tratou do Programa Mais Médicos. Qual a importância de sua retomada neste momento?
Hêider Pinto – É importante a retomada deste programa que havia sido descontinuado e fragilizado por causa de questões ideológicas. Infelizmente, vimos o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro misturar política partidária e ideologia com questões científicas e sanitárias. Ou seja, o Ministério parou de considerar protocolos científicos relacionados à Covid-19 e políticas públicas baseadas em evidências. O Programa Mais Médicos reúne várias evidências nacionais e internacionais de resultados, mas, por uma questão ideológica, optou-se por sua descontinuidade.
A retomada do programa é muito bem-vinda. Hoje, para se pensar na expansão da cobertura de atenção primária da população, sem dúvida alguma o Programa Mais Médicos é decisivo, em especial nas áreas mais vulneráveis, seja no interior do país, no semiárido Nordestino, nas regiões ribeirinhas do Norte da Amazônia, seja na periferia de cidades como Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador ou aí mesmo no Vale do Sinos.