02 Junho 2023
O novo episódio do podcast De Poa, que vai ao ar nesta quinta-feira (1º), recebe o catador de materiais recicláveis e cientista social Alex Cardoso. Ele conversa com Luís Eduardo Gomes sobre a experiência de viver da catação desde criança em Porto Alegre, a situação das famílias e cooperativas que trabalham com os resíduos e o ambiente político no Brasil para tratar do tema.
Representante no Rio Grande do Sul do Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis, ele é autor do livro “Do Lixo a Bixo”, que narra a sua trajetória de vida até se tornar um estudante universitário na UFRGS. Hoje, já graduado, ele faz mestrado em Ciências Sociais, também na Universidade Federal do RS. Alex foi indicado no início do ano para ocupar a direção do Departamento de Resíduos no Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, mas ainda não assumiu o cargo.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Confira a seguir trechos do episódio.
A entrevista com Alex Cardoso, catador de materiais recicláveis e cientista social, é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 01-06-2023.
Alex, como é a tua relação com a cidade de Porto Alegre?
Eu vim para cá com três meses de idade. Bom, primeiro, a cidade de Porto Alegre não tá tão alegre assim nesses últimos períodos. As últimas gestões deixaram a desejar muito e pessoas iguais a mim ficaram muito a mercê. A minha relação é uma relação bem umbilical, porque eu trabalho com o que Porto Alegre joga fora. Trabalho com os resíduos desde a infância, sou ex-morador da antiga vila Cai-Cai, que ficava localizada atrás do Beira Rio.
Atualmente resido no Loteamento Cavalhada. Quando morava na Cai-Cai, a gente coletava os materiais recicláveis no centro da cidade utilizando carrinho. Depois que a gente mudou, em 1994, para o loteamento Cavalhada, a gente organizou uma cooperativa e passou a receber a coleta seletiva na cidade. Tinha essa relação primeiro, em que eu mesmo fazia coleta com um carrinho.
Isso tu ainda era criança e adolescente?
A vida inteira foi marcada por esse trabalho, não tinha essa separação quando tava brincando e quando tava trabalhando, porque estar perto dos pais acho que é a coisa que a gente mais deseja quando é criança.
Os pais trabalhavam no centro, traziam o resíduo para casa, faziam a separação e eu e meus irmãos estávamos sempre juntos, tanto na parte da coleta, quanto também na parte da separação dos resíduos. A nossa vida girava em torno dos resíduos e os resíduos iam para casa. Então, não tinha uma separação, era tudo em volta dos resíduos. Era de onde nós trabalhávamos, onde a gente brincava, era de onde vinha a nossa renda, nossa alimentação, então o resíduo era o todo, né.
Depois de 94, a gente foi para a cooperativa. E aí vários catadores dessa comunidade se organizaram, coletivamente a gente formou essa cooperativa e passamos a receber a coleta seletiva da cidade de Porto Alegre. Aqui que eu chamo a atenção para essa questão do porque a gente tá abandonado na cidade. Em 1990, Porto Alegre implementou a coleta seletiva na cidade. Para nós termos ideia do avanço, atualmente mais de 2.000 municípios não têm coleta seletiva. Isso hoje, porque a coleta seletiva é um serviço que custa cinco vezes mais do que a coleta convencional.
Entretanto, a coleta seletiva faz com que a comunidade separe seus resíduos, que esses resíduos tenham um destino que é o retorno pro seu ciclo produtivo. Quando é a coleta convencional, os resíduos vão para o aterro sanitário ou para lixões. No Brasil, atualmente existem mais de 3.100 lixões ativos. Ou seja, mais de 60% dos municípios brasileiros ainda depositam no lixão. Então, por isso que a gente teve um grande avanço aqui na cidade de Porto Alegre.
O problema é que os avanços acabaram virando retrocessos, justamente porque Porto Alegre tem esse pioneirismo na questão da coleta seletiva, do encerramento do lixão, implantação do aterro sanitário, enfim, a gestão de resíduos feita pelos catadores e pelas catadoras. Mas, nos últimos anos, a Prefeitura tem deixado a desejar.
Em que sentido?
Primeiro, porque não tem uma valorização e reconhecimento sobre o trabalho das catadoras e dos catadores. O contrato da cooperativa que eu faço parte é de R$ 5.000 mensais, não paga sequer um administrador.
Quantas pessoas trabalham na cooperativa?
A nossa cooperativa tem um potencial de gerar 46 postos de trabalho, atualmente gera 20. Justamente por não ter valores que possam pagar o custo operacional do serviço, porque é uma planta industrial — capacidade de receber 10 toneladas por dia, mas a gente recebe duas toneladas hoje — e por não ter um contrato que pague os custeios que a planta tem, a gente acaba tem menos pessoas. A reciclagem é feita pela mão das pessoas, significa que menos pessoas, menos reciclagem na cidade.
E perde todo mundo, né? Perde a nossa comunidade por não ter o abraço para essa geração de postos trabalho, perde a cidade porque tem um histórico super positivo do pioneirismo, da participação, desse processo de reconhecimento e de valorização das pessoas, mas que agora as pessoas acabam sendo escanteadas. Ao mesmo tempo, a gente vê a cidade discutir sobre as privatizações, as concessões, grandes investimentos milionários, mas quem é da cidade, igual a mim, faço parte dessa cidade, acaba sendo deixado de lado.
Tu falou que as cooperativas trabalham hoje bem abaixo da sua capacidade, que tem capacidade para 10 toneladas na Cavalhada e está trabalhando com duas. A gente vê que isso é uma situação geral das cooperativas, já fizemos matérias no Sul21 e o relato de perda de renda é geral e a situação está assim há vários anos. Por que que o lixo não tá chegando nas cooperativas? A cidade ainda gera muito lixo, mas por que não chega nas cooperativas para ser reciclado?
Dos anos 90 para agora, nós tivemos um acréscimo de aproximadamente 30% na geração de resíduos. Então, nós tínhamos 1.500 toneladas/dia de geração de resíduo e a gente tá atualmente com 2.000 toneladas geradas na cidade, é bastante resíduo. A matemática é o que eu acho importante. Primeiro que a cidade tem uma matemática financeira, por isso que depende muito de quem vai ser o administrador da cidade.
Ultimamente, a gente tem escolhido muito mal nossos administradores. O Sebastião Melo era o vereador que fez a proposta de lei de proibição da circulação de carrinho e carroça na cidade de Porto Alegre. É aquele tipo de prefeito que dialoga com todo mundo, que bate na mesa, que fala alto, olha no olho e diz que vai resolver, que vai responder, cria GT de trabalho, vai encaminhar as coisas e tal, e no final, não encaminha nada.
Eu vejo uma estrutura engessada, burocratizada, e ao mesmo tempo com pessoas que não sabem o que estão fazendo. E aí o risco é que, quando a pessoa que tem o poder para decisão não sabe o que está fazendo, perde a cidade como um todo. E aí acaba investindo na iniciativa privada.
Quando tu me perguntaste o que tá acontecendo. Se tem mais geração de resíduos, tem também mais acúmulo. Os catadores se organizaram nesses últimos anos, aprenderam novas coisas, formularam novas políticas, até a própria Política Nacional de Resíduos Sólidos, uma série de leis para implementar um serviço que pudesse ter qualidade, participação, quantidade, enfim, poderia chegar quase à cidade de Lixo Zero.
Mas é que essas últimas administrações investem na iniciativa privada. O que significa? É que a coleta do resíduo vale muito dinheiro e aí tem uma empresa que é especializada nisso. Essa empresa, ela olha o catador fazendo a coleta e o catador, de certa forma, tá tirando o resíduo que ela poderia estar coletando. Então, ela vai intervir para que haja leis que proíbam a circulação dos catadores, porque esse resíduo vai ter que ser coletado. Quem vai coletar? Ela. Tem um serviço na cidade que é a coleta só, que é pegar os resíduos na cidade e levar até o aterro na Lomba do Pinheiro. Alguns serviços são separados. Um serviço é a coleta containerizada.
Aí eu tenho um artigo no Sul21 que é chamado ‘Os mini-lixões’, é importante que quem quiser se interessar possa procurar. A coleta containerizada custa R$ 3 milhões por mês para a cidade. A coleta convencional, que é aquela dos caminhões prensas, que passam duas ou três vezes nos nossos bairros, custa R$ 4 milhões. Só para coletar na cidade e levar até a Lomba do Pinheiro.
Na Lomba do Pinheiro, esses resíduos vão viajar por 120 quilômetros até o aterro sanitário em Minas do Leão. Essas viagens dos resíduos custam quase R$ 2 milhões por mês, que a empresa ganha para coletar. E para serem aterrados os resíduos, custa mais R$ 3 milhões por mês, que a empresa CRVR que ganha esse dinheiro para aterrar. Significa que nós estamos pegando esses resíduos, estamos pagando uma nota alta para coletar. E a reciclagem, R$ 5.000 se paga pra cooperativa fazer a triagem.
Para a gente entender, esse resíduo coletado pelas empresas não é reciclado?
Aí é que tá a grande questão. O container é a espécie de mini-lixão. Por quê? Como não tem uma discussão com a cidade, a cidade não participa mais da política pública, ela acaba deixando de lado. Então, ela abandona. Ao mesmo tempo em que a cidade abandona, a gente não consegue ficar com quem nos abandona, a gente corre, se esforça, vai atrás e tal, mas estamos abandonados.
Então, as pessoas estão abandonadas na cidade, não fazem mais parte da política pública. Ao mesmo tempo, elas também abandonam as ações que a Prefeitura faz. É uma matemática simples. Um abandona o outro. E aí o container é um mini-lixão porque as pessoas depositam tudo que tem ali dentro. Era pra depositar só orgânico, mas as pessoas não sabem o que é orgânico.
Era pra depositar o reciclável, não sabe o que é reciclável, não sabe o horário, roteiro, não participa, não sabe para onde vai o resíduo, não sabe quanto custa, não sabe nada. E a empresa também não divulga, porque ninguém quer divulgar isso. Porque não se divulga, ninguém discute, ninguém sabe. Como vale muito dinheiro, algumas poucas pessoas ganham.
Então, hoje é mais rentável financeiramente para essas empresas não reciclar? Pegar esse lixo acumulado e levar para o lixão?
Sempre foi. A gente discute a questão do fim dos lixões no País e como eu disse são mais de 3.100 lixões ativos no País. Parece que, por ter lixão, então não se tem investimento. Ao contrário, tem muito investimento. Essas empresas se organizam, formaram uma espécie de cartel.
Inicialmente, a gente chamava de cartel, mas daqui a pouco elas passaram a se organizar publicamente. Formaram uma Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, a Abrelpe, que se especializou no gerenciamento, na gestão. Tem duas coisas, uma é o gerenciamento e a outra a gestão. A gestão é quando vem o lobby ou os CEOs e oferecem propostas milagrosas. Antes, eram uma espécie de cartel, viviam na invisibilidade, funcionava por baixo dos panos.
Atualmente não, vive na cara dura, é organizado. E aí, agora, eles oferecem o serviço, a planta, daqui a pouco vem as empresas que trazem a tecnologia, que são mirabolantes. O que é a tecnologia mirabolante? É algo que resolve, mas a mão poderia resolver, com mais gente trabalhando, gerando mais postos de trabalho. Não, vem alguma coisa que a gente não compreende muito bem, uma máquina, que é uma pessoa sozinha e custa 10 vezes mais caro. Isso tudo faz com que a gente separe, a gente não se conecta mais com os resíduos e não se conecta mais com quem trabalha. Nós tínhamos muito orgulho aqui.
Eu lembro que o DMLU era muito participativo na cidade. A Secretaria de Meio Ambiente fazia todo aquele trabalho nas praças, limpeza, organização, aquelas atividades nas comunidades, aquelas limpezas coletivas. Tivemos muita coisa na cidade em torno dos resíduos e perdemos ao longo desse tempo. E, aí claro, não é só culpa das empresas, porque eu acho que o papel da empresa é ganhar dinheiro, é lucrar e vai ter as suas estratégias para fazer isso. Por isso que a gente tem que escolher bem os nossos administradores.
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Geramos mais lixo e reciclamos menos porque os lixões são um grande negócio. Entrevista com Alex Cardoso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU