23 Mai 2023
A freira alemã Sophia Weixler (28) foi abusada espiritual e sexualmente. Agora ela está tentando elaborar o seu trauma com a ajuda de Salmos escritos por ela mesma. Podem ser lidos em seu livro Respiro speranza, do qual foi retirado este salmo:
Tu és minha ajuda, todos estão contra mim, não sei o que fazer. / As vozes no meu corpo me dizem / que o amor eterno não existe. / Meu coração sabe que em ti estou segura. / Posso aprender a amar, até a mim mesma. / Posso ficar em pé. / Eu gritei e ele me respondeu. / Vejo o que superei. / Não aguentava mais / e me deitei na terra dura e fria. / Os meus olhos se fecharam, / só com a força do Consolador consegui me levantar. / Ainda que todos estejam contra mim, continuo de pé. / Tu, meu apoio, faz com que eu te sinta, me ajude. / Eu já senti teu terno sopro, / nada pôde me destruir. / És minha única ajuda. / Tua palavra amável me permeia.
Ich atme Hoffnung. Psalmen jenseits von Gewalt und Missbrauch
A entrevista é de Wolfgang Holz, publicada por Settimana News, 21-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Irmã Sophia, esse salmo foi retirado do seu livro. Qual é a motivação que o inspirou?
Nunca quis escrever um livro. Meus Salmos nasceram na oração. Durante a formação religiosa, foi-nos sugerido formular com as nossas próprias palavras um salmo que nos agradasse. Não paramos em um salmo. Aqueles que rezavam tornaram-se minhas amigas.
Conheci pessoas capazes de expressar toda a gama de emoções humanas. Diante de Deus há espaço para agradecimento, ódio, alegria, sofrimento etc., porque Deus para mim é um Deus compassivo, um Deus que não endireita tudo nem anula o que aconteceu. Não! É uma contraparte do indizível. Posso perguntar qualquer coisa a ele.
E quanto ao livro?
Em última análise, nasceu dos encontros com pessoas que derivaram textos compartilhados das minhas orações pessoais. Pessoas que me incentivaram e transformaram uma ideia em realidade.
Durante a sua realização senti o desejo de transmitir a experiência de Deus a pessoas que não têm palavras para fazer isso; que elas mesmas já sofreram. Pessoas que estão ao lado dos outros no sofrimento ou que se tornaram culpadas em relação a outros.
Você já teve alguns ecos a respeito do livro?
O livro foi lançado em 6 de fevereiro. Recebi uma grande variedade de feedback de coirmãs, amigas, conhecidos e outras pessoas.
Você sofreu violência espirituais e sexuais. Qual foi o tamanho do choque que sentiu?
Não fiquei chocada pelo fato de ter acontecido comigo. Porque eu também estava envolvida nisso. A dificuldade reside antes em admitir essa verdade dentro de si mesmo.
Caso se sobreviva, será preciso se desapegar e se dissociar das situações dolorosas. Em outras palavras: é preciso separar as experiências tão estranhas à própria identidade para poder sobreviver.
Em vez disso, é chocante que na Alemanha tão poucos crimes sejam processados além da fase das investigações preliminares, principalmente devido à falta de provas. E, em segundo lugar, como a Igreja lida com essas duas formas de violência.
O que você quer dizer?
O que quero dizer é que somos chamados a repetir várias vezes as mesmas declarações, ainda que tudo já tenha sido posto por escrito. Diante de padres, talvez, mesmo que as pessoas em questão tenham experimentado muitas vezes o sofrimento causado por um deles. Os procedimentos também se arrastam até por anos. Isso impede que as pessoas envolvidas possam relaxar enquanto o processo estiver em andamento.
O livro ajudou você a elaborar do ponto de vista psicológico as suas experiências de abuso?
Uma vez que, como mencionei acima, nunca pretendi escrever um livro, o livro também não pôde me ajudar. O que foi, foi.
Em primeiro lugar, é preciso avaliar a experiência de sofrimento vivida naquela situação. Depois, analisando as consequências e refazendo os vários procedimentos, colocar fim ao silêncio, já que a injustiça já foi consumada.
Durante a elaboração, trata-se principalmente de perguntar o que faltou naquelas situações e como se deveria se comportar no futuro em situações semelhantes. E, naturalmente, aprender a reconhecer e administrar as sensações.
As orações dos Salmos lhe ajudaram?
A oração, na época em que escrevia meus textos, foi para mim um desafio e um apoio. Quando a espiritualidade se torna um instrumento de poder, a alma fica indescritivelmente ferida e experimenta fortes inquietações no encontro com Deus. É preciso aprender de novo que a própria alma tem uma dignidade e que ninguém mais deve ter acesso a ela. Se o ódio e a raiva não forem projetados apenas contra si mesmos, é inevitável que sejam direcionados para Deus.
Portanto, devemos primeiro redescobrir que não foi Deus que "abusou" da alma, mas um ser humano. Os Salmos foram uma forma de me manter em relação com Deus, de sentir a sua ressonância e de viver a minha dignidade, sentindo-me amada e chamada por Ele.
Ficou muito desapontada com a suspensão da investigação sobre o seu caso, como escreve no posfácio de seu livro? Por que é tão difícil confiar em uma vítima?
Muitas vezes ouvi repetir: a justiça de Deus é maior. Não podemos conhecer a plenitude de sua justiça aqui na terra. Concordo e posso tomar essa frase como um consolo. No entanto, uma vítima deseja que seu sofrimento seja reconhecido. O código penal tem várias funções: proteger as pessoas ou os interesses legais e punir os autores de crimes para que possam melhorar a si mesmos.
Falo expressamente de autores, pois cerca de 85% dos condenados são homens. Na Alemanha, está sendo estudada neste momento uma revisão ou uma ampliação do parágrafo 174c do código penal para que os abusos perpetrados nas instituições religiosas e leigas também possam ser punidos. Só posso endossar esses esforços de reforma.
Os abusos são um grave problema na Igreja Católica. Na sua opinião, o que deveria ser feito para detê-los?
O tema dos abusos não é conhecido apenas a partir de 2010. Já 100 anos atrás os comitês diretivos da Igreja discutiam como lidar com os autores e as vítimas. Uma nova abordagem certamente vem da mudança de algumas partes do código penal. Também é preciso um regulamento segundo o qual – como acontece na Espanha – em relação a todos os crimes sexuais, “sim significa sim”. E, além disso, as instituições eclesiásticas ou pessoal eclesiástico não devem mais ter tratamento preferencial em processos celebrados em foros civis.
Também não deve mais acontecer que o ministério público receba os documentos só mediante requerimento. Tal como acontece com as grandes empresas, os confiscos devem ser possíveis. Além disso, todos os níveis de gestão deveriam ser substituídos…
Algo inaudito…
Uma correção de rota com os mesmos capitães e com o mesmo material cartográfico é impensável para mim. Não deveria mais ser possível que um julgamento canônico diocesano fosse simplesmente anulado pelos dicastérios de Roma. Os dicastérios não deveriam ser autorizados a agir como uma Suprema Corte, mas apenas examinar eventuais erros processuais.
Outro aspecto certamente diz respeito à identidade e compreensão do papel dos padres. Muitas vezes me pergunto se a verdadeira prevenção seria possível se as inovações introduzidas não forem aplicadas de forma coerente. Mas o que cada um e cada uma pode fazer é tomar consciência de que Jesus é o Salvador, não eu! As pessoas buscam a Deus, não a mim.
Por que decidiu entrar para um convento?
“Entrar” é uma palavra muito dura para os meus ouvidos. Na minha opinião, tem a ver com o amor e também com a experiência de outras pessoas que foram tocadas por esse amor e tentam viver o que as tocou.
E também é preciso sentir a atração pessoalmente. Não se trata de um chamado que se percebe com os ouvidos, mas de uma voz interior que se torna cada vez mais forte, enfrentando ao mesmo tempo dúvidas e contrariedades. É como se apaixonar: não se sabe por que está acontecendo justamente agora.
A sua decisão também tem a ver com a convivência com outras freiras na África?
Durante o ano passado no exterior, na Tanzânia, as irmãs transmitiram-me o seu entusiasmo e senti na vida cotidiana que querem vivê-lo e partilhá-lo com outras pessoas. Por exemplo, comigo. Uma situação-chave foi a pergunta de uma irmã: o que impede você? E senti que não tinha uma resposta para essa pergunta.
E assim comecei a pensar no meu caminho: quero tentar. Nos últimos quatro anos, esse lema tornou-se a consciência de “ser chamada”, não porque eu seja particularmente hábil em algo, mas porque Deus me pensa, pensa em mim pessoalmente.
O que lhe fascina na vida de clausura e numa vida doada a Deus?
Sou Vicentina ou Irmã da Misericórdia do Untermarchtal da espiritualidade de Santa Luísa de Marillac e São Vicente de Paulo. Essa espiritualidade me fascina porque é, ao mesmo tempo, vivenciável e incompreensível. É uma espiritualidade que segue a lógica da encarnação de Deus. Cada um de nós a vive à sua maneira. Para mim significa encontrar de bom grado as pessoas, sentir pessoalmente a presença de Deus, tanto na ação concreta como na união serena com Jesus. Estar atenta ao hoje, assistir às pessoas, escutá-las, partilhar o seu sofrimento.
Quero mostrar com a minha vida que Deus tem uma notícia libertadora e alegre para todos, mesmo que isso ainda não seja perceptível em muitas situações. Deus não está sentado em um trono no céu, mas sofre conosco. Ele vê a mim e a você. E também permite a injustiça.
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Irmã Sophia Weixler nasceu em 1995 e pertence à comunidade das Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo no Untermarchtal no Danúbio. É enfermeira e estuda direito na Universidade de Tübingen. Seu livro "Respiro speranza, salmi oltre la violenza e l’abuso" foi publicado pela Patmos Verlag.
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Salmos de uma freira abusada espiritual e sexualmente. Entrevista com Sophia Weixler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU