06 Março 2023
Bento XVI, com base em sua experiência como prefeito e como papa, apontou em 2019 que a causa do fenômeno da pedofilia clerical, com um tom marcadamente homossexual, foi o colapso da moral cristã após “maio de 1968”.
O comentário é de Jordi Bertomeu Farnós, padre espanhol, publicado por Vida Nueva, 04-03-2023.
Um ano antes, durante o Encontro Mundial das Famílias na Irlanda, Francisco havia declarado diante de um grupo de jesuítas: “Eu entendi uma coisa muito claramente. Este drama de abusos, sobretudo quando é de grandes proporções e produz grande escândalo, está por detrás de situações eclesiais marcadas pelo elitismo e pelo clericalismo; o abuso sexual não é o primeiro, mas o de poder e de consciência” (25 de agosto de 2018).
Sem ceder a um contraste interessado e estéril, os dois diagnósticos permitem que nos perguntemos sobre a origem e o estado atual da crise dos abusos.
O fenômeno da crise dos abusos eclodiu em 2002, e até 2012 será um fenômeno anglo-saxão e centro-europeu. Em vez disso, Francisco viu-a espalhar-se por Espanha, Itália, Portugal, França, América Latina e alguns países africanos ou asiáticos.
Acontece que na “era digital” sua influência vai além da liquidez das relações (Zygmunt Bauman), pois as tecnologias de informação e comunicação favorecem novos paradigmas políticos. Entre eles, o surgimento de potências antiliberais como a China ou a Rússia e o populismo autoritário que, por meio da engenharia social, se infiltra nas democracias ocidentais. Tais correções ao profetizado “fim da história” ou imposição da democracia liberal (Francis Fukuyama) levantam novamente a questão do exercício do poder e seu abuso.
Neste novo contexto histórico, o Papa, de origem jesuíta, não só administrou os novos casos de abuso como fizeram seus dois predecessores imediatos. Ele deu um passo além: quando descobriu o "encobrimento" dos mesmos em uma Igreja às vezes surda ou contaminada pelo mundanismo e pela corrupção, em sua idade avançada ele reagiu.
Como ele mesmo afirmou recentemente, “foi lá que me converti, na viagem ao Chile”: “Tive que intervir, que foi a minha conversão para isso e foi lá que me converti, na viagem ao Chile. Eu não podia acreditar. Foi você quem me disse no avião: 'Não, não é assim, pai'. Você foi. Eu disse: 'Que corajosa é a menina, não é?' Eu lembro. Eu a tinha na minha frente. E eu continuei e disse: 'O que eu faço?' Cabeça assim (faz gesto de explosão). Foi quando a bomba explodiu, quando vi a corrupção de muitos bispos nisso. Bem, para começar, ore. Convoquei todos os bispos aqui e começamos um trabalho lá que ainda não terminou. Mas aí você testemunhou que eu mesmo tive que acordar para casos que estavam todos encobertos, Não? Você tem que descobrir mais a cada dia” (24 de janeiro de 2023).
Fazer parte de uma cultura abusiva fundada em ideologias que destroem a dignidade das pessoas não é desculpa para o mundanismo e os abusos eclesiásticos. Sem ser sistêmica, sendo a Igreja a comunidade dos pecadores tocados pela graça do Ressuscitado, a passividade perante as vítimas evidencia graves deficiências estruturais que atrofiam a proposta evangélica.
Um deles é a tendência ao corporativismo: seriam casos pontuais, anedóticos, até imprudências ou simples condutas inadequadas. No entanto, um único caso pode destruir o tecido da confiança eclesial e as iniciativas pastorais mais consolidadas.
Em vez de ter no horizonte uma “cultura do cuidado”, procurando não expor o Povo de Deus ao perigo dos abusos e do escândalo, alguns se acomodam de modo autorreferencial na paralisia por medo do escândalo e se tornam insensíveis às vítimas. Com dissimulações, eufemismos e até uma certa paranóia, explicam o fenômeno como uma perseguição ideológica. Em outras ocasiões, certos pedidos de perdão ou anúncios altissonantes de medidas legais ou preventivas vigorosas são percebidos como egoístas, oportunistas e insinceros.
Como Francisco expressa em suas fundamentais 'Cartas da Tribulação' (2018), a mediocridade espiritual impede a conversão pessoal e, portanto, resolve os problemas causados pelo nosso pecado. Sem sério discernimento espiritual, compaixão ou misericórdia, as vítimas continuam a ser rotuladas como inimigas eclesiais e seus agressores como imprudentes que devem ser tolerados por suas transgressões do celibato.
Onde está o amor e a obediência a Jesus Cristo, o único que pode nos indicar o caminho certo? A falta de medida moral de nosso mundo hedonista e relativista é um sintoma inequívoco da ausência de Deus. É uma sociedade de adultos que querem viver a eterna juventude, o novo 'Peter Pan' que desiste de criar e acompanhar novas vidas porque só quer viver sem preocupações (Armando Matteo).
Entre muitas outras desorientações sexuais, existem alguns indivíduos pedófilos que são eroticamente atraídos por menores. Um fenômeno diverso é o dos pedófilos, que cometem abusos criminosos mesmo sem sentir atração sexual por suas vítimas.
A crise causada por alguns clérigos pedófilos não é simplesmente disciplinadora. Por um lado, manifestam a mesma doença de uma civilização que não reage ao suicídio demográfico, que promove o aborto como técnica contraceptiva ou que justifica as relações sexuais com menores, por definição vulneráveis. Por outro, como intuiu na época o cardeal Joseph Ratzinger, é uma crise de fé.
Muitas vezes lamentamos a falta de fole da proposta cristã e nos tornamos cada vez mais irrelevantes em um mundo carente de sentido. Perdemos a credibilidade, às vezes aos trancos e barrancos, sem querer reconhecer que a crise dos abusos sexuais tem muito a ver com isso.
Por que um mundo que promove tolamente o sexo livre desde a adolescência age com tanta violência contra a pedofilia clerical? É por hipocrisia? Se "evangelizar é penetrar na cultura do homem" (Paulo VI), não podemos ignorar que o intolerável hoje, para muitos, não é o sexo com menores ainda imaturos que precisam descobrir o verdadeiro potencial da modéstia e do amor oblativo. A intransponível "linha vermelha" é ameaçar sua liberdade presente e futura de fazer o que quiserem com o sexo. Ainda mais se o agressor for um clérigo, “estereótipo moralizador onipresente” (Marco Marzano).
Enfrentar a crise dos abusos do rico patrimônio doutrinal e moral da Igreja não enfraquece a instituição. Pelo contrário, é a ocasião providencial para trazer à luz aqueles defeitos estruturais que impedem o anúncio alegre do Evangelho num mundo abusivo: dinâmicas autoritárias inconciliáveis com a sensibilidade atual, vulnerabilidades ocultas, tomadas de decisão sem transparência ou coerência com o que é anunciado em nome de Cristo. (…)
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Chaves para a luta de Francisco contra o abuso após 10 anos de pontificado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU