04 Fevereiro 2023
"Em cenários como esses de conflitos e regimes repressivos, a mudança climática é um multiplicador de ameaças, que agrava as tensões já presentes, aumenta a insegurança política e corre o risco de reforçar ou tornar mais perigosos os grupos terroristas. As histórias, as vidas, como a de Sharifaden Ali lembram uma verdade muitas vezes não dita ou negligenciada, ou seja, como o suprimento alimentar está exposto ao controle e, portanto, à chantagem de grupos armados. Basta ler os números do Programa de Alimentação Mundial: dos dez países com o maior número absoluto de pessoas em situação de fome, todos exceto o Sri Lanka estão atingidos por conflitos, o que significa que 60% dos 828 milhões de pessoas que vivem sem acesso a uma quantidade de comida suficiente vivem em países devastados pela guerra, países onde a comida se torna outra arma. Isso, na Somália, é tragicamente evidente", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 01-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando entendeu que os milicianos do Al Shabaab não dariam trégua a ele ou a seus filhos, Sharifaden Ali pegou seu carrinho de mão, os filhos e deixou a Somália para Dadaab, no Quênia oriental.
Há três semanas vive numa tenda que não é uma tenda, mas uma cobertura de galhos secos, amarrados entre si pela destreza de quem conhece a terra e sabe manejar seus frutos. Para se proteger das temperaturas tórridas amarrou uns trapos nos galhos, no chão uma bacia com dois centímetros de água onde o menor dos filhos brinca. É a cara da infância, ou melhor seria, se a vida deles não tivesse se tornado agora uma vida de exílio feita de nada. À sua volta o deserto, outros refugiados que constroem outras tendas de trapos, outras crianças que a fuga tornou sujas e famintas.
Sharifaden Ali tem quarenta anos e cinco filhos, o mais velho tem 14 anos, os últimos dez meses, em Sakow, na Somália, tinha uma loja e tinha medo do Al Shabaab, o grupo terrorista ligado à Al Qaeda cuja ascensão transformou a Somália em uma base logística, de treinamento e recrutamento para os membros dos movimentos jihadistas globais.
Também tentaram com ele, primeiro pelas boas depois - diante de sua resistência – pelas ameaças. Então começaram a roubar sua loja, pedir dinheiro, finalmente quando ele disse que preferia morrer a se juntar a eles, passaram a formas mais agressivas, o sequestraram, torturaram, ferindo-o com uma faca no braço e na coxa e deixando-o no meio do descampado próximo a seu campo de treinamento, pensando que estivesse morto.
Mas Sharifaden Ali havia sobrevivido, uma mulher que passava com seu rebanho deu a ele água e leite, ele voltou para casa, pegou os filhos e foi embora. Ele sabia que ficando na Somália seu destino estaria traçado, porque é o que acontece com os jovens em áreas controladas pelo al Shabaab, as mulheres são obrigadas a se casar com os milicianos e os jovens são recrutados.
“Eles os seduzem e quando você percebe já tiraram seus filhos, e uma vez em suas mãos é impossível trazê-los de volta."
Segundo dados das Nações Unidas, 37 milhões de pessoas enfrentam grave insegurança alimentar no Chifre da África. Certamente é culpa da mudança climática que está afetando a África oriental - a seca em curso é o pior desastre climático registrado na região nos últimos quarenta anos - mas a esse fator devem ser adicionados anos de conflitos violentos, crises econômicas na Etiópia, Somália e Sudão do Sul e as ameaças dos grupos jihadistas como o Al Shaabab.
Em cenários como esses de conflitos e regimes repressivos, a mudança climática é um multiplicador de ameaças, que agrava as tensões já presentes, aumenta a insegurança política e corre o risco de reforçar ou tornar mais perigosos os grupos terroristas. As histórias, as vidas, como a de Sharifaden Ali lembram uma verdade muitas vezes não dita ou negligenciada, ou seja, como o suprimento alimentar está exposto ao controle e, portanto, à chantagem de grupos armados. Basta ler os números do Programa de Alimentação Mundial: dos dez países com o maior número absoluto de pessoas em situação de fome, todos exceto o Sri Lanka estão atingidos por conflitos, o que significa que 60% dos 828 milhões de pessoas que vivem sem acesso a uma quantidade de comida suficiente vivem em países devastados pela guerra, países onde a comida se torna outra arma. Isso, na Somália, é tragicamente evidente.
Um dos principais riscos em cenários como esses é que grupos terroristas se apropriem dos estoques de alimentos e das ajudas internacionais, não para ajudar as pessoas, mas para revendê-los e financiar a compra de armas e o recrutamento de novos milicianos. O segundo risco, não menos importante, tem a ver com a segurança de quem presta as ajudas.
Se antes nas áreas controladas pelo Al Shaabab era possível para as agências humanitárias fechar alguns acordos para cruzar a linha do front e distribuir ajudas, hoje, depois que o governo de Mogadíscio declarou guerra aos terroristas e o grupo respondeu com uma nova onda de ataques kamikaze, o acesso às ajudas está bloqueado. Em setembro do ano passado, um atentado do grupo atingiu um comboio de ajudas, matando pelo menos 20 civis, por isso para os agentes humanitários é agora impossível aproximar-se dos territórios controlados pelo grupo jihadista, que são na maioria zonas rurais de pastores e agricultores, ou seja, os que mais sofrem os efeitos da seca.
Impedir a chegada das ajudas corresponde, portanto, a uma sentença de morte para milhares de pessoas.
Nos últimos meses, o exército somali reconquistou muitos distritos anteriormente controlados pelo Al Shabaab, uma boa notícia no papel, mas que está tendo o efeito de tornar mais desesperados e, portanto, mais perigosos, os milicianos que atacam fazendas, plantações e lojas.
Extorsão, destruição das infraestruturas e da economia, bloqueio da produção de alimentos tornam-se, como em cenários semelhantes atravessados pela ação violenta de grupos terroristas, um elo da estratégia: os jihadistas aterrorizam as pessoas, forçando-as a fugir, para desestabilizar o país, criar o vazio que depois tentarão preencher. É assim na Somália, em algumas áreas do Sahel, na parte norte da Nigéria, no Chade.
Foi assim também para Sharifaden Ali, que perdeu tudo e fugiu para o Quênia em seu campo de refugiados de Dadaab que já soma trinta anos de existência.
No campo, a distribuição das ajudas ocorre uma vez por mês, para quem chega no dia seguinte significa um mês sem comida.
Esse também foi o caso de Sharifaden Ali. Há vinte dias vive ajudado pela comunidade somali que chegou antes dele, dividem o pouco que têm aqueles que chegaram a mais tempo para ter um saco de arroz, um de milho e um de feijão. Nunca há água suficiente e nessa seção do campo, IFO2, das torneiras de água higienizadas há uma semana não saia uma gota, então as pessoas as racionaram os poucos estoques que tinham para evitar que os recém-nascidos desidratassem. Não tem nem mesmo leite, então adultos tentam alimentar as crianças com comida dos adultos, mas não podem alimentar os bebês com milho e feijão, então eles adormecem sem comer, porque não tem mais nada e acordam gritando quando a fome aperta mais.
Os números da fome deveriam fazer tremer os países doadores: metade da população do Sudão do Sul, ou seja, seis milhões de pessoas, vivem em condições de insegurança alimentar aguda, o mesmo vale para 5,5 milhões de pessoas na Somália, 4,5 milhões no Quênia, 1 milhão em Uganda, 4 milhões na Etiópia, de acordo com a Integrated Food Security Phase Classification (IPC), uma afiliada da Organização das Nações Unidas que mede a fome. Apesar dos alarmes, dos repetidos pedidos de intervenção, em outubro de 2022 o ACNUR declarou ter recebido menos da metade dos fundos necessários para responder à Crise no Chifre de África. Somália e Etiópia eram e continuam sendo as duas crises humanitárias mais urgentes do mundo e permanecem assim precisamente porque foram subfinanciados há anos. Enquanto a desnutrição disparava em toda a África Oriental, o Programa Alimentar Mundial (PMA) em junho de 2022 teve que cortar as rações em 50% para quase todos os refugiados, afetando especialmente aqueles na Etiópia, Quênia, Sudão do Sul e Uganda.
Desde que chegou, Sharifaden Ali tentou algumas vezes ir ao mercado de Dadaab com seu carrinho de mão, para ganhar algum dinheiro e comprar um litro de leite para seu filho mais novo.
Carrega latas de água ou galhos, em troca de um dólar, ou em troca uma lata de água a cada vinte que ele carrega a pé pelas dezenas de quilômetros de estrada de terra que unem as cinco seções do campo.
Até o filho de catorze anos vai ao mercado, é mais fácil para ele arranjar trabalho porque é mais jovem e, portanto, seu trabalho tem pagamento menor. O resultado, para famílias como a de Sharifaden Ali, é ter levado os filhos para longe de um país em guerra, devastado pela seca e no qual grupos jihadistas recrutam crianças para transformá-las em homens-bomba e ter chegado a um país onde o preço de segurança, de incolumidade física, é um destino marcado pela falta de direitos, educação e pela exploração.
Ninguém em 1991, quando a ACNUR organizou os assentamentos informais para os somalis que fugiam da guerra civil, esperava que Dadaab teria durado por tanto tempo.
Com o tempo, os campos cresceram até se assemelhar a cidades, a guerra ainda em curso na Somália tornou impossível para a maioria dos exilados voltar para casa.
Embora exista uma forma de economia informal no campo, poucos conseguem trabalhar.
Quando as crianças terminam a escola, têm poucas chances de ingressar no ensino superior. Suas vidas tornam-se vidas em pausa, consumidas num vazio que se repete todos os dias igual ao anterior ou expostas a um futuro de exploração.
Em meados de 2022, 15 milhões de crianças no Chifre da África não tinham acesso à educação.
Cortar os fundos das organizações humanitárias neste momento está causando um dano duplo para eles, significa, por exemplo, privá-los da possibilidade de frequentar escolas informais, ou seja, estruturas educacionais que não oferecem um título de estudo reconhecido, mas que pelo menos garantem uma forma de alfabetização primária, muitas vezes oferecem pelo menos uma refeição e protegem milhares de crianças do risco de abuso.
É o caso dos centros educativos administrados pela Save the Children em Dadaab. O objetivo é ajudar 6.000 crianças, atualmente são 4 mil. É preciso protegê-las porque a fome traz violência e nos últimos anos, os abusos sexuais no complexo de Dadaab mais que dobraram.
Njiamal está sentada em um canto de sombra em uma das nove estruturas administradas pela Save the Children.
Ela tem dezesseis anos, corpo esguio e rosto habitado por uma tristeza que parece antiquíssima. Nos meus braços o choro de um recém-nascido, é seu filho. O filho de uma segunda violência que sofreu no acampamento, no ano passado. A primeira data de quatro anos atrás. Njiamal era uma menina de doze anos que havia fugido do Sudão do Sul com sua mãe. Ela arrastava um carrinho de mão para encontrar alguns galhos para revender e conseguir algumas moedas para sua mãe. Entre os arbustos encontrou um homem que violentou a sua infância, tornando-a mãe-criança. Njiamal sonhava em se tornar uma escritora, em inventar histórias ou contar as que ouvia. Para ela, até o sonho é um tempo que já não é mais possível conjugar no futuro. A vida suspensa do campo de refugiados, a vida daqueles que são obrigados a esperar a ajuda dos outros para sobreviver, a vida de quem está exposto à necessidade, à violência, a tornaram uma garota que se sente manchada para sempre. Hoje tem dois filhos da violência que sofreu, o recém-chegado tenta amamentar-se de seu corpo demasiado magro.
Daqueles dias, quatro anos atrás, quando sua infância acabou, ela lembra da vergonha, os olhos que olhavam a barriga pensando que era uma brincadeira, o corpo que se tornava adulto contra sua vontade enquanto, o coração - diz ela - "o coração só dizia que queria continuar criança".
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Quênia, vidas suspensas no campo dos amaldiçoados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU