São cerca de 11 horas da manhã na remota vila de Kisoso, no condado de Kajiado, no sul do Quênia, cerca de 100 quilômetros ao sul da capital Nairóbi. O sol escaldante acaba de começar a causar estragos, pois os ventos secos sopram violentamente sem vestígios de chuva à vista.
Noor Lenku, um criador de gado, senta-se perto dos ossos de uma de suas vacas mortas do lado de fora de sua cabana, falando consigo mesmo enquanto observa montes de esqueletos de outros animais que sucumbiram às condições mortais da seca há alguns meses.
Com uma mão na bochecha esquerda, Lenku, 58 anos, parece solitário e deprimido. Ele sobreviveu três dias sem comida. Eventualmente, ele olha para o céu e diz: “Estes são os últimos tempos. Nenhuma vida sobreviverá neste mundo, todos nós pereceremos como nosso gado. A natureza não tem rosto humano”.
A reportagem é de Shadrack Omuka, publicada por Earth Beat, caderno do National Catholic Reporter, 10-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Lenku é um dos cerca de 4,2 milhões de quenianos cujas vidas foram devastadas por uma seca implacável e punitiva que durou quase dois anos e provocou insegurança alimentar, mortes de gado e conflitos entre as comunidades.
A seca, a pior em quatro décadas no Chifre da África, está ligada às mudanças climáticas, já que o aumento das temperaturas se juntou às chuvas recorde em toda a região. Outros fatores, como a pandemia de covid-19, exacerbaram a crise da fome e os conflitos. Na região leste do Quênia, pastores somalis conduzindo centenas de camelos e cabras brigaram com fazendeiros no condado de Kitui por permitir que seus animais se alimentassem de plantações enquanto procuravam água e pasto.
Mapa da África com destaque para o Quênia; mapa político do Quênia.
Fonte: Wikicommons e Nations Online
São essas condições – consequências das mudanças climáticas – que enfrentam o Quênia e outras nações africanas, enquanto os líderes mundiais se reúnem em Sharm el-Sheikh, no Egito, para a COP27, a mais recente conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas.
Organizações, incluindo Igrejas católicas, agências humanitárias, indivíduos e o governo queniano, tomaram medidas para fornecer alimentos e roupas a milhares de famílias atingidas pela seca, como a de Lenku. Pai de oito filhos, ele foi deixado em casa com sua esposa e três filhos mais novos, enquanto outros se mudaram com o gado restante em busca de comida, água e pasto.
Em maio, a Conferência dos Bispos Católicos do Quênia lançou uma iniciativa de apelo à seca para ajudar as famílias afetadas pela fome em 14 dioceses católicas da África Oriental. A iniciativa visava arrecadar cerca de 2,5 milhões de dólares. Em setembro, a Igreja distribuiu alimentos em várias partes do país para pessoas que enfrentam fome, desnutrição e perda de meios de subsistência.
“A Igreja Católica começou a distribuir alimentos para as vítimas da fome”, disse o dom Philip Anyolo, arcebispo de Nairóbi, ao Earth Beat. “E também quero apelar a indivíduos e organizações para que respondam o mais rápido possível à crise da fome, fornecendo alimentos de socorro às famílias afetadas”.
Anyolo mencionou Marsabit, Kitui, Garissa, Wajir e Lodwar como as áreas mais atingidas onde a Igreja começou a doar alimentos. Famílias em algumas dessas áreas se voltaram para frutas silvestres, grama e raízes para sobreviver. Anyolo pediu aos quenianos que se apoiem como puderem.
“Abracemos o espírito de compartilhar o pouco que temos em termos de alimentos para salvar nossos irmãos e irmãs que passam fome em várias partes do país”, disse o arcebispo.
Economicamente, os criadores de gado estão entre os mais afetados pela calamidade, pois milhares de seus animais já sucumbiram à seca, causando enormes perdas para os pecuaristas.
No condado de Kajiado, por exemplo, uma vaca madura e magra que normalmente era vendida por 500 dólares, ou mais quando saudável, agora está sendo vendida por 15 dólares, tornando o empreendimento não lucrativo para muitos.
Antes da seca, Lenku tinha mais de cem cabeças de gado, mas a maioria já morreu. Outros ele teve que vender a preços abaixo do mercado para conseguir dinheiro para comprar comida para sua família. Quanto ao rebanho restante, Lenku diz que eles morrerão em breve se a chuva não começar a cair.
O cientista Chris Shitote examina um açude seco em Kilifi, no Quênia, em 16 de fevereiro.
Foto: Baz Ratner | CNS
“Vendi a maioria dos meus animais a preços descartáveis e outros sucumbiram à seca desde o início do ano”, disse Lenku. “Há muitos anos que não experimentamos uma seca semelhante. Isso nos custou muito”.
“Toda a minha riqueza se foi, não tenho nada”, acrescentou. “Minha família passou uma semana sem comida e água. Meus filhos agora estão desnutridos. Todos nós vamos morrer se continuar assim”.
Como Lenku, muitos criadores de gado no país enfrentaram os caprichos trazidos pelas mudanças climáticas.
Joseph Kapejo, diretor da Autoridade Nacional de Gestão Ambiental no condado de Kajiado, disse que uma das poucas maneiras pelas quais os moradores podem evitar grandes perdas de gado à medida que a seca persiste é minimizar o número de animais que eles mantêm. Grandes rebanhos de gado podem levar a outros problemas ambientais, disse ele, como a pecuária intensiva que deixa o solo vulnerável à erosão e contribui para a mudança climática através da liberação de gases metano.
Uma enorme parcela de terra da qual a comunidade de Lenku depende para alimentar seu gado agora está marrom e empoeirada, muito longe do pasto verde puro com tanques cheios de água que já foi. Os ventos secos que partem do solo sopram quase constantemente, com seus vendavais empoeirados levando roupas, plásticos, papéis e outros materiais leves para o céu. Os pastores devem apertar sua shuka (roupa tradicional do povo Masai) ou correm o risco de ficarem desnudos. Os arvoredos também secaram, tornando a área vulnerável a incêndios florestais.
“É ruim”, resume Lenku.
“Eu nunca experimentei uma seca como esta. O chão é muito quente, nem mesmo um inseto pode sobreviver no solo”, disse ele, acrescentando que andar descalço “é como pisar em um metal quente”.
De acordo com a Cruz Vermelha do Quênia, 23 dos 47 condados do Quênia estão enfrentando fome, com 13 em grave risco e com extrema necessidade de ajuda e alimentos.
A busca por comida, água e pasto levou milhares de estudantes a deixar as escolas, mais um golpe para um sistema educacional que ainda tenta se recuperar da pandemia de covid-19. Nos municípios de Samburu e Marsabit, mais de 13 mil alunos estão lutando para permanecer na escola, enquanto outros 2 mil já abandonaram, assim como mil em Kajiado .
Peter Bita, diretor de educação do condado de Kajiado, disse que a seca interrompeu o aprendizado de milhares de alunos quenianos, enquanto o governo continua trabalhando para normalizar o calendário acadêmico que foi interrompido pela pandemia.
Em julho, a Cruz Vermelha do Quênia informou que cerca de 800 mil crianças, a maioria com menos de 5 anos, sofrem de desnutrição. A organização alertou que esse número pode aumentar à medida que a situação continua se deteriorando.
E de acordo com um relatório de 28 de setembro sobre insegurança alimentar, 884 mil crianças de 6 a 59 meses sofrem de desnutrição aguda e quase 116 mil mulheres grávidas ou lactantes sofrem de desnutrição aguda. Ambos os números são pequenos declínios desde um relatório de junho.
Mais de 4,35 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar e precisam de assistência humanitária, de acordo com um relatório de outubro da Autoridade Nacional de Gerenciamento de Secas do Quênia, um aumento de quase 1 milhão desde fevereiro. Acrescentou que a situação da seca continua a piorar em 20 dos 23 municípios áridos e semiáridos.
Em todo o Chifre da África, mais de 22 milhões de pessoas enfrentam escassez de alimentos.
Em junho, a agência de monitoramento da seca expressou “graves preocupações” com riscos elevados de uma quinta estação chuvosa abaixo da média nos últimos três meses do ano, após quatro estações chuvosas consecutivas fracassadas.
A crise da seca e da fome já forçou quase 1 milhão de pessoas no Quênia e na Somália a migrar em busca de sustento, segundo a Cruz Vermelha Internacional.
Uma mulher segura seu filho gravemente desnutrido em um hospital em Lodwar, no Quênia, em 26 de setembro.
Foto: Thomas Mukoya | CNS
Hussein Alio, diretor do Condado de Kajiado para a Autoridade Nacional de Gestão da Seca, lamentou que a maioria das famílias em Kajiado tenha caído na pobreza extrema, deixando algumas implorando por ajuda nas ruas.
Na opinião de Lenku, os países que mais produziram gases de efeito estufa devem compensar as graves perdas sofridas no Quênia. Ele disse que a COP27 deveria convidar pessoas como eles que vivem em regiões mais impactadas pelas mudanças climáticas para virem e dar testemunhos, em vez de receber os ricos que nunca estiveram cara a cara com os estragos de um mundo em aquecimento acelerado.
“Pessoas como nós deveriam participar dessa cúpula... Perdemos nossos meios de subsistência e agora somos pobres”, disse ele.