19 Setembro 2022
"A morte de Gorbachev e da rainha Elizabeth, o papa na Ásia Central, a guerra no Cáucaso e a contraofensiva ucraniana, a viagem de Xi Jinping: todos eventos que evocam o fim de uma temporada, para deixar espaço para um mundo ainda a ser descrito".
O artigo é de Stefano Caprio, professor de história e cultura russa no Pontifício Instituto Oriental de Roma desde 2007, em artigo publicado por Asia News, 17-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A morte de Gorbachev e da rainha Elizabeth, o papa na Ásia Central, a guerra no Cáucaso e a contraofensiva ucraniana, a viagem de Xi Jinping: todos eventos que evocam o fim de uma temporada, para deixar espaço para um mundo ainda a ser descrito.
Nos últimos dias tem ocorrido uma série de eventos, alguns de grande ressonância internacional, outros mais locais ou secundários, mas todos atravessados por um fio condutor muito relevante, pois contribuem para formar a impressão de que uma era histórica está realmente terminando, por deixar espaço para um mundo ainda a ser descrito. Agora é difícil aplicar definições exaustivas e compartilhadas sobre a passagem que estamos vivendo, afinal, os historiadores sabem bem que toda definição é puramente formal e didática, e raramente corresponde à realidade dos fatos: a Idade Média, o Renascimento, o Iluminismo, o Século Breve e assim por diante, são todos títulos de livros didáticos do ensino médio. O mundo dos seres humanos é muito mais complexo e variegado.
Em uma semana, faleceram dois dos chefes de Estado mais simbólicos do século XX, que representaram os dois impérios do Oriente e do Ocidente, aquele eurasiano-coletivista e aquele atlântico-liberal, resumindo em si esperanças e contradições de ambos os lados que orientaram as consciências das gerações até as de hoje em um esquema binário. Direita e esquerda, comunismo e capitalismo, cristianismo e ateísmo, ditadura e democracia, reformas e imobilismo e tantas outras categorias simplistas tornaram possível viver de forma compreensível, fazendo escolhas de campo consequentes e pré-definidas, sem a angústia de não ter uma própria identidade específica e uma comunidade de pertença, como é o caso dos nascidos no século XXI.
A rainha Elizabeth se viu administrando uma delicada situação familiar, a do casamento de seu filho, o atual rei Charles III, com a "princesa do povo" Diana Spencer, que durou de 1981 a 1996, com a clamorosa morte do ano seguinte da mulher que de alguma forma havia marcado o fim da natureza sagrada da monarquia britânica. Certamente não faltaram escândalos de família e de corte no passado real, mas eles diziam respeito ao equilíbrio interno da sagrada casta do poder. A história de Charles e Diana inaugurou a apropriação pública dos acontecimentos da casa de Windsor, eliminando o abismo entre o trono e o povo, a agora habitual "desintermediação" na vida de qualquer pessoa, que permite com um clique sentir-se no mesmo plano que qualquer monarca ou estrela do firmamento.
Elisabeth conseguiu de alguma forma administrar essa passagem, engajando sua figura icônica para manter viva a memória de um mundo já dissolvido, e que depois de amanhã será definitivamente enterrado. Gorbachev chegou ao poder em 1985, juntando-se no imaginário coletivo a Diana e ao outro grande intérprete do fim daquele mundo, o santo Papa João Paulo II. A abertura informativa da glasnost, que levantava a cortina de ferro para o mundo soviético, foi sua única reforma real, dado o total fracasso político-econômico da perestroika. Mesmo o papa polonês derrubou muitas barreiras que ainda mantinham a figura do pontífice romano em um empíreo inalcançável, tornando-se o primeiro verdadeiro "papa midiático", recolhendo a inspiração de João XXIII e do Concílio Vaticano II, a abertura ao mundo da Igreja Católico, hoje irreversivelmente exaltada por seu sucessor argentino.
Se Wojtyla veio "de um país distante", Bergoglio veio ao Vaticano "do fim do mundo", o primeiro papa não europeu e não mediterrâneo, a grande revolução do catolicismo contemporâneo. E a atual década do pontificado de Francisco está cada vez mais orientando uma Igreja "em saída" para as periferias do mundo, libertando-se do peso do compromisso terreno e levando às extremas consequências o fim de seu poder temporal, que formalmente ocorreu apenas um século e meio atrás. Um momento importante, mas ainda não decisivo para a história universal. A viagem ao Cazaquistão foi, sem dúvida, uma das mais simbólicas dessa transição de época, refletindo e redefinindo a fase final do triunfante papado Wojtylian, que havia visitado os países ex-soviéticos mais próximos da Rússia para demonstrar a vitória da fé sobre o ateísmo, depois de ter tido que desistir de pisar nas cidadelas de Moscou e Minsk.
Entre 2000 e 2001, João Paulo II foi à Geórgia, Ucrânia, Armênia e Cazaquistão, as mesmas terras reivindicadas hoje pelo neoimperialismo putiniano para se defender da "invasão do Ocidente", da qual o papa polonês era o carismático guia. O papa Bergoglio pareceu tudo menos um "invasor", arrastando-se pelos palácios ultramodernos de Astana, como o próprio Wojtyla havia feito vinte anos atrás, ambos fatigados pela idade e pelos problemas físicos da fase final de seus respectivos pontificados, acentuando assim o efeito "desvanecimento" dessas passagens históricas. Não mais domínio da religião, mas diálogo com povos e culturas, na Ásia onde os cristãos nunca ditaram lei. Não mais guerra do Ocidente contra os demônios ateus e depois aqueles fundamentalistas, como no 2001 de João Paulo, mas invocação de paz para a Ucrânia e o mundo inteiro na nova guerra mundial "em pedaços já agora soldadas" do 2022 de Francisco.
Entre triunfalismos e pedidos de perdão, relançamento da missão e aberturas ecumênicas, da oração de Assis em 1986 ao Congresso de Nur-Sultan em 2022, as figuras dos dois papas mais mediáticos da história parecem se unir muito mais do que conta uma visão superficial "novecentista", que contrasta o tradicionalista com o progressista. No entanto, outro fator se cruza nessa dupla profecia eurasiana: o papa polonês viveu então o sofrimento do fechamento ao diálogo da Igreja mais importante e influente depois de Roma, o patriarcado de Moscou, e o argentino, que havia restabelecido a relação com ela, teve que constatar com consternação o ressurgimento da "ortodoxia militante" com tons dignos das Cruzadas, ele também decepcionado com a impossibilidade de ir a Moscou e abraçar novamente seu "hermano" Kirill, como nos dias da ilusão cubana.
O Congresso de Líderes Religiosos do Cazaquistão apresentou mais um paradoxo: ao gelo e à hostilidade dos representantes de Moscou, com a ausência do patriarca e a ritualidade soviética da delegação chefiada pelo Metropolita Antonij, serviu de contrapeso a grande amabilidade e espírito fraterno dos representantes de Islã, com quem Francisco está conseguindo grandes resultados no diálogo inter-religioso. A grande guerra contra o terrorismo islâmico parece, portanto, ter terminado, dando lugar àquela do imperialismo ortodoxo. Uma anedota que sublinha a dimensão grotesca da situação que se criou, foi a pergunta do chanceler cazaque, durante os encontros preparatórios da viagem de Francisco: “o papa celebrará a missa na praça em rito cristão ou muçulmano?”.
Nos dias da presença papal no Cazaquistão, dois eventos bélicos provocaram reações confusas e emoções conflitantes. O eterno conflito entre ezeris e armênios pela área montanhosa de Nagorno Karabakh foi retomado violentamente, justamente quando um acordo de paz definitivo parecia estar próximo. Ao mesmo tempo, o exército ucraniano surpreendentemente enganou o invasor russo, atacando-o onde não esperava e, em poucos dias, reconquistando a maior parte das terras ocupadas em seis meses.
O Cáucaso é uma terra de fronteira simbólica entre a Europa e a Ásia, assim como as partes da Ucrânia disputadas em torno do Mar Negro. Além disso, os azeris e os armênios representam o conflito entre cristãos e muçulmanos desde séculos antigos, mas hoje também representam partes contrapostas inversas: Yerevan é pró-Rússia, enquanto Baku é a principal alternativa ao fornecimento de gás russo para a Europa. Assim como é difícil avaliar a revanche ucraniana, que parecia impossível e inadequada, enquanto a maioria estava apenas esperando a rendição de Kiev para poder celebrar novamente a paz mundial, e agora há temores pelo futuro da Rússia, pois a queda e o desaparecimento Putin abriria cenários imprevisíveis e talvez ainda mais catastróficos do que os atuais.
Nesse contexto, o presidente chinês fez sua primeira viagem ao exterior após o período de dois anos de Covid, pisando em Nur-Sultan justamente no momento em que o papa celebrava (em latim) a missa dos católicos da Ásia Central. XI Jinping se deslocou depois triunfalmente para Samarcanda, dando grande ênfase ao encontro da Cooperação de Xangai, uma das tantas siglas asiáticas que até agora produziram bem pouco efeito na geopolítica e na economia mundial. Agora, a China parece querer assumir o legado imperial a que os EUA estão desistindo, especialmente após a retirada do Afeganistão há um ano, e que a Rússia não consegue reafirmar, como ficou evidente na triste expressão de Putin nas fotos protocolares com o grande irmão chinês.
A China dominará o mundo na próxima era? Poderá a Europa reafirmar a sua centralidade histórica, enquanto os partidos conservadores parecem ascender ao poder da Escandinávia ao Mediterrâneo? Muitas outras questões surgem, e justamente enquanto a capital cazaque parecia ser o centro do mundo, em Bruxelas a presidente Ursula von der Leyen voltou a condenar a guerra na Ucrânia, "uma guerra contra a nossa energia, as nossas economias, os nossos valores". Uma guerra a ser travada com as armas da fé, como prega o Papa Francisco, para nos tornarmos “mensageiros da paz”.
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O fim de uma era. Artigo de Stefano Caprio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU