14 Junho 2022
"Não é ódio contra os ucranianos, nem contra os ortodoxos autocéfalos, e nem mesmo contra os homossexuais: é o ódio da Rússia contra o mundo inteiro, é hora da grande revanche", escreve Stefano Caprio, professor de história e cultura russa no Pontifício Instituto Oriental de Roma desde 2007, em artigo publicado por Asia News, 11-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Max Scheler argumentava que a melhor demonstração da cultura russa do ressentimento são os "heróis humilhados e ofendidos” de Gogol, Dostoiévski e Tolstoi. Hoje os russos pensam que fizeram sua parte depois do fim da Guerra Fria, enquanto "os outros" se aproveitaram disso. Essa raiva explodiu na Ucrânia, mostrando ao mundo inteiro quão pouco se compreendeu de um povo não apenas orgulhoso de suas próprias tradições, mas capaz de desmascarar as hipocrisias e as fraquezas alheias.
Causaram repercussão as recentes declarações do ex-presidente russo Dmitry Medvedev, que confessou odiar os ocidentais porque são "bastardos e degenerados, que querem o fim da Rússia... enquanto viverei, farei de tudo para que desapareçam” . Na Rússia, há bastante tempo as palavras de Medvedev, que luta há anos contra uma forte dependência alcoólica, não recebem muito peso, e até mesmo sua frase sobre os "cavaleiros do A que estão se aproximando" é reinterpretada como os "cavaleiros do Alkoholiss".
No entanto, permanece a perplexidade pela transformação de uma das figuras políticas mais moderadas dos vinte anos de Putin, que expressa um profundo rancor em relação a um Ocidente não bem definido. Medvedev, além disso, foi ridicularizado pelas investigações de Navalnyj, que revelou sua paixão pelo luxo desenfreado de estilo extremamente “ocidental”. A denúncia contra ele tinha dado origem à campanha "dos tênis", devido ao escândalo por seu hábito de correr todos os dias com um novo par de tênis caro, que ele comprava compulsivamente na Amazon no ritmo de uma vintena por mês. Jovens russos saíram às ruas cantando o slogan "Não é o nosso Dimon", um diminutivo infantil que é contrapartida do "Vovan" dirigido ao presidente Putin, seu protetor desde os tempos de universidade.
Nos mesmos dias das confusões de Medvedev, causou espanto a decisão repentina do Patriarca de Moscou Kirill, que substituiu seu primeiro colaborador, o Metropolita Hilarion, exilando-o para filial no exterior de Budapeste e colocando em seu lugar um de seus mais fiéis, o jovem Metropolita Antonij. Até mesmo essas manobras um tanto bruscas de Kirill em relação aos demais membros da hierarquia não surpreendem muito os russos, tendo sido sempre uma característica de seu caráter impulsivo e de sua gestão autoritária da máquina eclesiástica. Neste caso, porém, ressoa novamente o ódio contra o Ocidente, que Hilarion tentava aparar com suas contínuas iniciativas de diálogo e encontros com altos representantes das confissões cristãs ocidentais, como a última visita justamente ao cardeal húngaro Peter Erdo, que também aparece com frequência entre os nomes dos candidatos papáveis em um futuro conclave.
Hilarion tinha evitado de todas as formas a polêmica sobre o apoio patriarcal à guerra de Putin, que caracterizaram o Magistério de Kirill nos últimos três meses, com a martelante acusação de intrusão de ocidentais na vida dos fiéis ortodoxos na Ucrânia e na própria Rússia, buscando impor uma visão degenerada da moral e do próprio cristianismo, reduzida a suporte das "paradas gays". Nesse contexto, a expulsão de Hilarion parece ser mais uma demonstração da capacidade dos "verdadeiros russos" de se defenderem das invasões dos inimigos da fé.
No entanto, o próprio Kirill, como o ex-presidente "apocalíptico", tem um passado de grande familiaridade com o mundo ecumênico fora da Rússia, em particular com a Igreja Católica, tanto que ele mesmo o incutiu em seu fiel servidor Hilarion, agora substituído por um prelado ainda mais fiel, Antonij, que ele mesmo havia instalado aos trinta como bispo em Roma e depois em Paris, elevando-o à dignidade de metropolita russo para toda a Europa Ocidental. A perplexidade é tal que alguns comentadores acreditam que a transferência de Hilarion para um território da União Europeia, ainda que tão pró-putiniano como a Hungria de Viktor Orban, seja na verdade uma manobra astuta para ter um mediador russo de autoridade entre a Rússia e o Ocidente, porque nunca se sabe como tudo vai acabar.
Para além das hipóteses e interpretações, fica a pergunta: de onde vem essa profunda hostilidade dos russos, pelo menos dos que estão hoje no poder, em relação a um Ocidente mitológico por eles mesmos ansiado e acalmado por tantos anos? Não se trata de uma verdadeira "diversidade oriental” ou asiática da Rússia, mesmo no contexto de uma reproposição da ideologia eurasiana que descreve os russos como descendentes dos citas, bicho-papão do mundo civilizado desde os tempos do Império Romano. A Rússia não é a China ou a Índia, nem a Turquia, com suas antigas civilizações e religiões, que realmente fazem delas um outro mundo em relação à Europa ou à América, que se afirma sem necessidade de gritar ódio e ressentimento. Entre o Ocidente "anglo-saxão" e a China "neoconfucionista" de Xi Jinping existe uma competição econômica e geopolítica muito forte, esperando que ela também não degenere em um conflito militar pela reconquista de Taiwan por Pequim, eventualidade para a qual os russos já estão afiando suas armas, sonhando em combater o Ocidente como ocidente. Mas Pequim se mostra superior, reivindica superioridade inclusive moral e cultural, sem a necessidade de se rebaixar às histerias do ódio russo.
Vários intelectuais têm falado da Rússia como o "País do ressentimento", como o filósofo Mikhail Yampolskij, o cientista político Sergej Medvedev, o filólogo Mikhail Edelštein ou o historiador Ivan Kurilla, lembrados pela excelente revista internacional Signal do site de informações Meduza, fortemente censurado dentro da Rússia. De acordo com esses comentários, a Rússia é hoje tomada por um profundo sentimento de ofensa, que é precisamente o significado do francês ressentiment. Søren Kierkegaard o definia como “o rancor dos medíocres para com aqueles que ousam elevar-se acima das massas”, como o próprio filósofo dinamarquês; para Friedrich Nietzsche era "o ódio dos servos aos senhores", em sua opinião inspirado pelo próprio cristianismo. De qualquer forma, é um sentimento de inveja e hostilidade para com aquele que possui algo que você nunca terá.
Outro filósofo alemão, Max Scheler, escreveu em 1913 um texto sobre o ressentimento como emoção política, no qual acreditava que a disparidade social inevitavelmente gera a raiva das "classes inferiores" em relação às mais elevadas. Este sentimento precisa ser satisfeito de vez em quando, argumenta Scheler, pelo menos em nível de discussões políticas ou campanhas na opinião pública, certificando-se de que as "elevadas" deem algo, aumentando os salários dos trabalhadores ou evitando exibir sempre seus colares de diamantes. Se as grandes massas "de baixo" perderem a esperança de poder obter algo, a inveja se transformará em ressentimento, com o risco de revirar tudo. Segundo Scheler, a melhor demonstração da cultura russa do ressentimento são os heróis "humilhados e ofendidos" de Gógol, Dostoiévski e Tolstói.
O ressentimento realmente parece ser hoje a principal característica da Rússia de Putin e Kirill. Um dos argumentos mais utilizados pelo presidente russo para justificar a "necessária operação" na Ucrânia é a ofensa pela expansão da OTAN para o leste: foi prometido que nunca fariam isso, e ao invés disso foi um engano, portanto uma falta de respeito. A partir do famoso "discurso de Munique" em 2007, Putin acusou repetidamente o Ocidente de querer "ensinar aos russos a democracia", acusação que nos últimos tempos evoluiu para a de "querer impor-nos valores que são estranhos para nós".
Do ponto de vista de Putin e seus hierarcas, o "primeiro mundo" não quis reconhecer a Rússia como parte dele. Nenhum presidente estadunidense sonharia em falar sobre a importância da democracia, por exemplo, para seu colega francês ou alemão. "Eles" se sentem "os nossos", enquanto "nós" somos estranhos a eles, segundo a percepção dos russos, e assim permanecemos mesmo após o fim da URSS. Daí a definição hostil de "ocidente coletivo", ou ainda mais pejorativo "o anglosaksy", que "decidiu nos abandonar". É um sentimento que une representantes da elite russa e amplos grupos sociais, incluindo membros oficiais da Ortodoxia, hostis ao ecumenismo que deixa a Igreja russa à margem e exalta o primado Constantinopolitano, também patrocinado pelo Ocidente, e com o qual Moscou agora cortou todos os laços.
Os russos acreditam que fizeram sua parte desde o fim da Guerra Fria, enquanto "os outros" se aproveitaram disso. Lembramos o slogan difundido na Rússia nos anos 1990, quando toda reforma era proposta para "viver como em todos os estados civilizados", até as reestruturações de casas particulares eram chamadas de evroremont. Naquela época entendia-se com isso o bem-estar material, o consumismo capitalista, mas mesmo quando a Rússia atingiu o nível "dos civilizados", continuou a se sentir ofendida e humilhada. Durante vinte anos, os presidentes russos participaram das reuniões do G8, sentindo-se convidados mal tolerados e, em todo caso, pouco considerados.
Essa raiva explodiu na Ucrânia, o lugar ideal para demonstrar a capacidade da Rússia de responder às ofensas, mostrando ao mundo inteiro quão pouco se compreendeu de um povo não apenas orgulhoso de suas tradições, mas capaz de desmascarar as hipocrisias e as fraquezas alheias. Por isso a "desnazificação" anda de mãos dadas com a denúncia da "propaganda gay", o título escolhido para definir a imoralidade dos inimigos. Não é ódio contra os ucranianos, nem contra os ortodoxos autocéfalos, e nem mesmo contra os homossexuais: é o ódio da Rússia contra o mundo inteiro, é hora da grande revanche.
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O País do ressentimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU