20 Junho 2022
"Somente no primado, Francisco, por sua vez, luta com a contradição. Ele decide os cardeais a quem vai delegar decisões, desencadeia processos que deve controlar, nega espaços de poder que deve exercer, olha para longe ao adotar medidas emergenciais, salva homens da tentação de certos cargos e de certas sedes e, ao mesmo tempo, os priva do impulso que certos ofícios e certas sedes sabem provocar", escreve Marco Ventura, professor de Direito canônico e eclesiástico da Universidade de Siena, em artigo publicado por La Lettura, 19-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quanto a Igreja está mudando. Há cem anos, 65% da população católica mundial vivia na Europa. Hoje, a participação caiu abaixo de 25%. A África Subsaariana aproxima-se dos 20%. Os católicos latino-americanos são quase 40%. O último papa italiano está morto há quase meio século.
Desde 2015, reina pela primeira vez um Papa latino-americano, o primeiro não europeu depois do sírio Gregório III no século VIII. Os 21 homens que serão nomeados cardeais no próximo dia 27 de agosto fotografam a mudança no espaço. Sempre acontece assim, toda vez que o grupo dos promovidos de plantão se torna público. A partir dos nomes anunciados pelo Pontífice, único responsável pela escolha, o público imagina o mapa. Como o vermelho vivo que vestem, símbolo de força até o derramamento do sangue, os cardeais se destacam. Eles auxiliam o Papa no governo central da Igreja, juntos formam o colégio dos cardeais, alguns deles dirigem articulações cruciais na Cúria Romana e outros estão à frente de dioceses. Acima de tudo, se tiverem menos de 80 anos, elegem o novo Papa.
Sua escolha levanta relevos no mapa do mundo católico. Em 2020, foi nomeado o primeiro cardeal negro americano, Wilton Daniel Gregory. Em 27 de agosto, se tornará cardeal o indiano Anthony Poola, o primeiro dalit, intocável sem casta, da história. Paraguai, Cingapura, Mongólia e Timor Leste terão os primeiros cardeais de todos os tempos.
As vinte e uma promoções anunciadas em 29 de maio também dizem respeito à Itália. Apesar do peso demográfico em declínio do país, os cardeais italianos continuam sendo o maior grupo nacional, mas seu mapa é caracterizado por depressões mais que por relevos. Cresce a porcentagem de cardeais com mais de oitenta anos, os chamados não-eleitores. São italianos 3 dos novos 5; sobretudo desapareceram neste momento os cardeais à frente de dioceses de grandes dimensões e grande tradição. Génova, Turim e Veneza, Nápoles e Palermo já não são mais lideradas por cardeais arcebispos. Nem Milão e sua arquidiocese ambrosiana, uma das mais ricas da história e uma das mais populosas do mundo em número de batizados. Apenas Florença e Bolonha, entre as grandes sedes historicamente presididas por cardeais, continuam a tradição. Para as demais, a presença de cardeais eméritos, arcebispos de ontem, ressalta a ausência de hoje. É o caso de Palermo, com os dois ex-arcebispos Salvatore De Giorgi e Paolo Romeo no colégio cardinalício, e de Milão, com Angelo Scola.
Entre relevos e depressões, o mapa se sacode: na Itália e no mundo as grandes mudanças da Igreja abalam a paisagem. A própria maneira de fazer o mapa muda, se transformam as coordenadas, as dimensões, os planos, surgem múltiplas geografias, fundadas em fenômenos, percepções, saberes em devir. O espaço se contrai e se expande, muda de natureza. Desde sua exortação apostólica Evangelii gaudium de 2013, apenas um ano após sua eleição, o Papa Francisco respondeu com o princípio de que "o tempo é maior que o espaço".
Num mundo que tende a "privilegiar espaços de poder em vez de tempos dos processos", o Papa argentino convida ao oposto: trata-se de "iniciar processos em vez de possuir espaços". O tempo, para Francisco, é "o horizonte maior" que ajuda "a suportar com paciência as situações difíceis e adversas", mas também "as mudanças nos planos que o dinamismo da realidade impõe". Com os “processos possíveis”, com o “longo caminho”, o tempo “ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de uma cadeia em constante crescimento, sem marcha a ré”.
Várias vezes, no decorrer de seu pontificado, o Papa voltou ao assunto, com palavras e atos. Escolheu assim os seus espaços, começando pelas ilhas dos migrantes, de Lampedusa a Lesbos, e das rotas para Moscou, o aeroporto de Havana, para o encontro com o Patriarca Kirill, a embaixada russa na via della Conciliazione após a eclosão da guerra na Ucrânia. Escolheu assim a sua Santa Marta, dentro da Cidade do Vaticano, e a Praça de São Pedro, deserta da oração pelo fim da pandemia em março de 2020. Em busca de espaços não possuídos, mas ordenados e iluminados pelo Evangelho, pertencem as periferias, lugar e metáfora, os destinos perdidos, o último Juba, capital do Sudão do Sul, e os deslocamentos, o Fiat 500, os passeios por Roma, agora até a cadeira de rodas, com aquela artrose que resume o desgaste do percurso.
Da mesma forma, devem ser entendidos os cardeais de Francisco, homens no espaço além do espaço, nascidos com a geografia bidimensional dos mapas antigos e à vontade com as múltiplas geografias da era digital. O mais jovem depois do consistório de agosto será o bispo missionário Giorgio Marengo, de 48 anos, de Cuneo, prefeito apostólico da capital mongol Ulaanbaatar. O novo presidente da Conferência Episcopal Italiana, Matteo Zuppi, nomeado cardeal em 2019, passou pelo Trastevere e pela mediação em Moçambique, foi pároco em Torre Angela, na periferia oriental de Roma, antes de se tornar arcebispo de Bolonha.
Se o tempo é maior que o espaço, afinal, a perspectiva muda. O alto cargo dos cardeais e o prestígio da Sé são estáticos. São espaços possuídos. A precedência deve ir para as trajetórias dos homens que encarnam o ofício e para aquelas das terras a serem evangelizadas. O dinamismo das tarefas na Igreja universal reinventa o ofício e a sede. Nada é dado como certo. Os cardeais não estão necessariamente à frente de uma diocese, muito menos à frente de uma diocese importante. Nenhuma diocese e nenhum ofício deve necessariamente ser presidido por um cardeal. Não pode haver ambições, rendas de posições, automatismos. As chamadas sedes cardinalícias não têm mais razão de existir. Se os cardeais são renovados no topo das dioceses de Washington, Brasília e Marselha, pela primeira vez um cardeal lidera as dioceses de Manaus e Hyderabad. Um cardeal, Oscar Cantoni, retorna a Como depois de mais de três séculos. Milão, sede cardinalícia por excelência, não tem cardeal desde 2017 e não acontecia desde 1894.
The Secular City, o livro mais influente da teologia cristã do final do século XX, foi publicado em 1965. Paulo VI, cardeal arcebispo de Milão até dois anos antes, estava prestes a concluir o Concílio Vaticano II. No livro Harvey Cox nos convidava a olhar com confiança para o processo de urbanização que havia mudado a face do cristianismo. As novas metrópoles eram o teatro e o espelho de uma sociedade secularizada onde o espaço de Deus ia se reduzindo, mas para Cox eram também a grande oportunidade para os cristãos. Acabados os monopólios e as certezas do passado, mais frágeis as tradições, a "cidade secular" era a prova de um testemunho mais livre e autêntico.
Mais de meio século depois, sabemos o quanto Cox estava certo, como a cidade se tornou crucial para as geografias dos católicos.
Milão, novamente aqui, é exemplar. Laboratório de multirreligiosidade e secularização, tradição e experimentação, maioria histórica e minoria praticante ao mesmo tempo, a diocese ambrosiana resumiu à sua maneira o percurso dessas décadas. A extensão territorial e os números da arquidiocese permitiram um diálogo singular, nas terras da velha Europa católica, entre metrópole e província. Em osmose com a sociedade civil, a comunidade católica reinventou as paróquias e lançou movimentos, repensou o ser leigos e padres, homens e mulheres de fé, inovou caridade e educação, desenvolveu relações com cristãos não católicos, não cristãos, não crentes. A vitalidade do povo foi ecoada pela autoridade do episcopado, até os quase papas Carlo Maria Martini e Angelo Scola. Depois o laboratório da "cidade secular" milanesa também foi religioso pós-moderno, dos rosários de Matteo Salvini ao olho de Chiara Ferragni, do dom influencer Alberto Ravagnani aos sacramentos de Mahmood, ou seja, o deus do consumo, do capital.
Não é uma piada fácil que apenas aos torcedores do Milan tenha sobrado um cardeal. Em seu sobrenome, o novo dono do time campeão italiano, Gerry Cardinale, traz a memória de seus avós italianos e de um esporte estadunidense, o beisebol, onde os Cardinals de St. Louis recebem o nome pelo vermelho cardinal que vestem, código pantone PMS 200 C.
Da mesma forma, para grande parte de Milão, a fé é um depósito inerte, fósseis sem história e sem sentido, multinacionais que sugam o sangue da identidade. No laboratório milanês, como naquele das antigas e novas cidades cardinalícias, afirmam-se novos arranjos de poder e, portanto, o poder na Igreja também está em questão. Há ali quem privilegia "espaços de poder" e quem, pelo contrário, renuncia a "possuir espaços", quem faz carreira e quem serve, quem enterra os talentos e quem os investe.
Sob o pontificado de Francisco, as reformas institucionais e a luta contra a corrupção foram duas faces da mesma moeda. A renúncia aos direitos ligados ao cardinalato por Angelo Becciu (devido a um escândalo financeiro) amadureceu dentro da Cúria Romana, mas outros casos se entrelaçaram com os acontecimentos de grandes cidades. No caso mais marcante, de 2019, o cardeal de Washington, Theodore McCarrick foi demitido do estado clerical (por um escândalo sexual). Os escândalos também atingiram os cardeais de Colônia, na Alemanha, e Lyon, na França.
As crises nas cidades cardinalícias, e em outros lugares, encontraram assim as tensões estruturais dessa Igreja em mudança e as geografias católicas foram redesenhadas de acordo. Os cardeais encontram-se espremidos entre duas forças opostas. Por um lado, querem que sejam mais evangélicos e mais evangelizadores, mais homens de fé. Por outro lado, querem que sejam mais eficientes e mais eficazes, mais homens de organização. A teologia e o direito canônico distinguem entre o poder de ordem e o poder de jurisdição, entre o sacramento que funda o poder dos ordenados – diáconos, presbíteros, bispos – e os ofícios em que se distribui o governo da Igreja. O Concílio Vaticano II queria que as duas dimensões fossem alinhadas, de modo que a plenitude da ordem sagrada no episcopado correspondesse às mais altas responsabilidades do governo. Se permanecia excepcionalmente possível que o cardeal não fosse bispo, tornava-se norma que o fosse.
Nada, hoje, sugere que se esteja voltando aos cardeais não-bispos do passado, mas a recente reforma da Cúria Romana confirmou a tendência já no ar da promoção do laicato também a cargos de topo na Cúria Romana. Se as mulheres não podem ser ordenadas e, no entanto, é justo e necessário que elas governem, só resta promover o laicato. Se se promove o governo do laicato, reduz-se o dos ministros ordenados e enfraquece-se a continuidade entre ordenação episcopal e cargos no topo, entre sacramento e autoridade. A nova liquidez do poder expõe ainda mais os cardeais ao vento da transformação: emancipa-os, empurra-os e, ao mesmo tempo os desorienta, os sobrecarrega e os esvazia. Na medida em que eles se relativizam, Milão pode, portanto, prescindir deles e o colégio cardinalício e o conclave podem prescindir de Milão. Na medida em que são fortalecidas, porém, Milão é menor sem um arcebispo que ali represente o laboratório eclesial universal e a Igreja é mais pobre sem um cardeal que represente o laboratório milanês.
Somente no primado, Francisco, por sua vez, luta com a contradição. Ele decide os cardeais a quem vai delegar decisões, desencadeia processos que deve controlar, nega espaços de poder que deve exercer, olha para longe ao adotar medidas emergenciais, salva homens da tentação de certos cargos e de certas sedes e, ao mesmo tempo, os priva do impulso que certos ofícios e certas sedes sabem provocar. Muda assim, o mapa da Igreja, enquanto se adapta para refletir as novas geografias dos territórios, das pessoas, das comunidades e dos poderes. O tempo é superior ao espaço, ensina Francisco, que quer libertar os espaços do domínio e entregá-los às testemunhas. É o seu desafio final.
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A nova geografia da igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU