14 Junho 2022
"Essa é uma ideia de governo da Igreja que na época da globalização comercial que fracassa, pode explicar ao mundo como cuidar de si mesmo em uma pluralidade reconciliada, e não na homologação com a societas perfecta. Esta é provavelmente a preocupação daqueles que estão espalhando os rumores da renúncia de Francisco".
O artigo é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 13-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Do dia em que entrou em vigor a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium abriu-se um novo capítulo midiático - e não apenas midiático - de grande importância: a disseminação de rumores e inferências sobre a iminente renúncia do Papa Francisco.
Existe um nexo? Poderia haver um nexo entre a promulgação dessa Constituição Apostólica e a disseminação de rumores de uma conclusão iminente do pontificado de Francisco, esperada e quase anunciada para os dias do final de agosto, quando acontecerá o próximo Consistório?
O Papa anunciou o novo Consistório com estas palavras: "Na segunda e terça-feira, 29 e 30 de agosto, será realizada uma reunião de todos os Cardeais para refletir sobre a nova Constituição Apostólica Praedicate Evangelium e no sábado, 27 de agosto, realizarei um Consistório para a nomeação de novos Cardeais". Entre os dois dias citados haverá o 28 de agosto: nesse dia Francisco irá a Aquila onde, primeiro papa da história, presidirá a festa de Perdão.
Francisco visitará primeiro a Catedral, ainda fechada devido ao terremoto, saudará as famílias das vítimas do terremoto e depois celebrará na Basílica de Santa Maria em Collemaggio, abrindo a porta sagrada construída em 1279 por Pietro da Morrone, o futuro Celestino V, proclamado papa ali mesmo, o único papa que não foi proclamado em Roma. Celestino V também é conhecido como o papa da "grande recusa". Por isso, muitos deram origem à seguinte ideia: Francisco vai renunciar na Basílica de Celestino V.
Então, bem em meio do programado encontro mundial sobre a reforma da cúria, aguardada há anos, o papa pensaria em renunciar de Aquila, da Basílica de Celestino V? Mas Celestino não pode ser conhecido apenas por sua renúncia. Durante os quatro meses de seu pontificado, em 29 de setembro de 1294, promulgou a bula pontifícia Inter Sanctorum Solemnia com a qual concedia a indulgência plenária a toda a humanidade, sem qualquer distinção.
Isso lembra a indulgência plenária concedida por Francisco da Basílica de São Pedro em 27 de março de 2020, quando ocorreu a inesquecível cerimônia do início da pandemia. A bula de Celestino introduziu os conceitos de paz, solidariedade e reconciliação. O perdão era para todos, para qualquer um que entrasse na Basílica, desde as vésperas que antecederam a memória do martírio de São João Batista até as sucessivas, portanto, de 28 a 29 de agosto de cada ano, com a única condição de ser verdadeiramente penitente e confessado. O martírio de São João Batista é lembrado em 29 de agosto.
Há muito de sugestivo em tudo isso. Claro que não sei o que Francisco irá dizer, mas realmente não acho que ele irá falar em renúncia. A Constituição Apostólica estará no centro dos trabalhos de todo o Colégio cardinalício sobre a Cúria Romana e seu serviço à Igreja no mundo. Há e ainda haverá muito provavelmente uma guerra em curso que já está desagregando o mundo, cuja unidade parece novamente estar literalmente minada na raiz em sua vocação à fraternidade universal, na qual Francisco acredita por fé profundamente cristã.
Há e haverá um sínodo sobre a natureza sinodal da Igreja que deseja indicar ao mundo a beleza, além da necessidade, de caminhar juntos. E há e haverá uma Igreja cheia de problemas. Francisco falará então de demissão naquele exato momento? Ou falará de paz, solidariedade, reconciliação, lembrando a bula de Celestino V? O perdão e a misericórdia são, de fato, os temas que sabemos serem centrais no magistério de Francisco.
Por que então espalhar o boato das demissões? Pelo fato - objetivo - de que nenhum papa antes dele foi a Aquila pelo Perdão? Mas um papa também nunca tinha ido a Lampedusa antes dele, um papa nunca tinha ido ao Iraque, um papa nunca tinha participado das celebrações de Lutero; e antes dele o rito do lava-pés nunca tinha acontecido fora da Basílica de São Pedro, nem o Jubileu havia sido aberto na África.
Celestino constitui a exceção que confirma a regra da impossibilidade de renúncia de um papa até Bento. Então, por que essa discussão generalizada sobre as possíveis demissões nos próprios círculos do Vaticano? Por que ele está doente? Ele é talvez o primeiro papa doente da história? Certamente, a doença pode afetar seu exercício no ministério petrino.
Mas ao usar a cadeira de rodas em vez da cadeira gestacional, Francisco já mudou o significado de sua deficiência, transformando-a em um símbolo mais condizente com o governo da Igreja: desde já. Mas isso não foi absolutamente notado.
Francisco, há poucos dias, falou-nos sobre o risco de o ódio prevalecer no mundo. Ele despendeu palavras que estão em relação com a realidade, com os fatos. Essas palavras também foram pouco comentadas. Ele talvez tenha tido a intenção de dizer que o que acontece no mundo pode acontecer porque o ódio também se insinua no pensamento religioso, na forma de manifestar a fé e as fés no mundo?
Não muito tempo atrás, La Civiltà Cattolica publicou um ensaio muito importante sobre um tema candente. Foi comunicado da seguinte forma: o ecumenismo do ódio. O título autêntico, na verdade, é outro: “Fundamentalismo evangélico e integralismo católico. Um surpreendente ecumenismo”. Assinaram o artigo o diretor de La Civiltà Cattolica, padre Antonio Spadaro, e o pastor Marcelo Figueroa, diretor da edição argentina de L'Osservatore Romano.
Começa assim: “In God We Trust: esta é a frase impressa nas notas de dólar dos Estados Unidos da América, que é também o atual lema nacional. Apareceu pela primeira vez em uma moeda em 1864, mas não se tornou oficial até a aprovação de uma resolução conjunta do Congresso em 1956. Significa: ‘Em Deus nós confiamos’. E é um lema importante para uma nação que na raiz de sua fundação também tem motivações de caráter religioso. Para muitos trata-se de uma simples declaração de fé, para outros é a síntese de uma problemática fusão entre religião e Estado, entre fé e política, entre valores religiosos e economia”.
O ensaio, como é evidente, fala dos Estados Unidos e das visões - católicas e evangélicas - que se unem em nome de um culto apocalíptico que se espalha à sombra do maniqueísmo político. Esse ensaio parece lançar as bases para outro ensaio que deveria ser escrito hoje por algum cristão ortodoxo sobre o que está acontecendo na Rússia. A ideologia do mundo russo pratica um maniqueísmo político que faz da ortodoxia russa o fundamentalismo de Estado que substitui o antigo ateísmo de Estado no Russkij mir que se opõe de forma maniqueísta ao Ocidente corrupto. Não foi isso que o Patriarca Kirill disse ao falar da guerra metafísica em relação à guerra na Ucrânia? Assim, há pelo menos três fundamentalismos cristãos muito semelhantes ao fundamentalismo islâmico que defende um maniqueísmo político islâmico contra um Ocidente corrupto e prevaricador.
Se há um ramo desse lago fundado no ódio no mundo católico, esse ramo só pode olhar para Francisco com primária hostilidade. Ele é o papa que mais do que qualquer outro tirou de um determinado catolicismo a ilusão de ser societas perfecta de que o papa deve necessariamente encarnar a realeza divina universal, imutável e absoluta na terra, superior a qualquer outra autoridade e societas decorrente.
É estranho: esse mundo católico que olha apenas para o passado parece-me necessitar de unicidades imutáveis - a partir da liturgia tridentina -, visto que pede uma celebração como "sempre foi", quase como se Jesus tivesse nascido em Trento. Como podem aceitar a ideia de que no concílio apostólico de Jerusalém - onde nasceu a Igreja - o compromisso proposto por Paulo foi aceito? Há, portanto, coerência entre o que esses católicos agora pedem como Igreja imutável e eterna e o que foi, desde sempre, uma Igreja da diakonia antes que dos ministérios e dos cultos ordenados.
A reforma da Cúria Romana pretendida por Francisco parece resgatar o paradigma romano medieval com aquele paulino quando afirma: "A Cúria Romana está a serviço do Papa, que, como sucessor de Pedro, é o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade, tanto dos Bispos como da multidão dos fiéis. Em virtude desse vínculo, o trabalho da Cúria Romana está também em relação orgânica com o Colégio dos Bispos e com cada Bispo, e também com as Conferências Episcopais e suas Uniões regionais e continentais e as estruturas hierárquicas orientais, que são de grande utilidade pastoral e exprimem a comunhão afetiva e efetiva entre os Bispos. A Cúria Romana não se coloca entre o Papa e os Bispos, mas coloca-se ao serviço de ambos segundo modalidades que são próprias da natureza de cada um”.
Essa é uma ideia de governo da Igreja que na época da globalização comercial que fracassa, pode explicar ao mundo como cuidar de si mesmo em uma pluralidade reconciliada, e não na homologação com a societas perfecta. Esta é provavelmente a preocupação daqueles que estão espalhando os rumores da renúncia de Francisco.
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O governo da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU