26 Mai 2022
"Assim como a eleição de Bergoglio determinou a liderança da ala profética e progressista na Igreja Católica, a nomeação de Zuppi fortemente desejada por Bergoglio está destinada a introduzir também na Igreja italiana o primado da profecia e daquelas evoluções que genericamente chamamos de progresso", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 25-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Acredito que a melhor maneira de comentar a nomeação do Cardeal Matteo Zuppi como presidente da Conferência Episcopal Italiana - CEI seja estabelecer um confronto entre ele e aqueles que o precederam no cargo. Assumindo o governo do Cardeal Bassetti como um período que eu definiria de transição, penso que o verdadeiro confronto deva ser estabelecido com a dupla Ruini-Bagnasco que durante 26 anos, precisamente de 1991 a 2017, dirigiram a CEI em estreita continuidade entre si.
Pois bem, se colocarmos em paralelo as personalidades Ruini-Bagnasco e a do novo presidente Zuppi, o resultado que emerge, a meu ver, é o seguinte: de um lado a instituição, do outro, o movimento; de um lado, a política, muitas vezes explicitada como "partido-política", do outro, a sociedade; de um lado a forma e às vezes a formalidade, do outro a espontaneidade e a fantasia; de um lado a tradição, do outro a inovação; de um lado a segurança, do outro a vontade de infundir coragem (que é diferente de dar segurança, porque quem dá segurança tira a liberdade, enquanto quem infunde coragem tira o medo mantendo a liberdade).
Em suma, de um lado o poder da Igreja hierárquica, do outro o serviço da Igreja comunidade. De um lado a Igreja de João Paulo II e Bento XVI, do outro a de Francisco.
Bem sei que no âmbito eclesial essas contraposições não são apreciadas e tende-se a sublinhar em toda parte o desenvolvimento linear e harmonioso da única tradição e do único carisma, mas há dois mil anos de história eclesiástica a mostrar da maneira mais evidentes que as diferenças existem e que muitas vezes se explicitam justamente nas contraposições destacadas acima. E assim como a eleição de Bergoglio determinou a liderança da ala profética e progressista na Igreja Católica, a nomeação de Zuppi fortemente desejada por Bergoglio está destinada a introduzir também na Igreja italiana o primado da profecia e daquelas evoluções que genericamente chamamos de progresso.
A tarefa da Igreja italiana hoje não é fácil, assim como geralmente não é fácil a tarefa de ser cristãos no Ocidente. Não o é porque nossas sociedades apreciam a anti-institucionalidade, a rebeldia, o não mais do que o sim, premiam as alternativas e os alternativos e, portanto, instintivamente não gostam de instituições portadoras de longa e pesada tradição, entre as quais prima a Igreja Católica.
O Papa Francisco resulta tão popular exatamente por sua carga alternativa, um Papa não papal, quase leigo com aqueles seus sapatos pretos completamente normais, e o Cardeal Zuppi hoje à frente da Igreja italiana tem um estilo pessoal completamente semelhante, sem fingir ser "bergogliano" porque ele é justamente assim por sua própria conta e, aliás, no geral, é mais doce e suave que Bergoglio, que, como antigo jesuíta, sabe às vezes ser duro e diretivo.
Mas o verdadeiro ponto diz respeito ao mundo, não à Igreja, porque a Igreja existe para o mundo, não para si mesma e, aliás, quando é função de si mesma e não do mundo, trai a missão para a qual foi fundada. E dentro de um mundo como o atual, ressentido com o passado e ainda mais assustado com o futuro, um mundo desprovido de certezas se não aquelas do dinheiro e do prazer que nada têm a ver com a ética e, portanto, não sabem infundir o bem mais precioso que é a paz interior, um mundo em que há cada vez mais pessoas completamente analfabetas em matéria religiosa, neste mundo das pandemias e das guerras, da emergência climática e das migrações, neste mundo que mais parece pertencer ao diabo do que a Deus, qual é a contribuição que a Igreja pode dar?
Pergunto-me pensando em Matteo Zuppi, que conheço pessoalmente há anos e com quem ocasionalmente ia à trattoria perto do arcebispado de Bolonha, observando como naquela meia dúzia de passos na rua tinha tantas pessoas que paravam e o cumprimentavam, e como ele tinha um olhar e uma palavra para todos. Mas aqui está a primeira contribuição da Igreja: humanidade, fraternidade, superação das solidões, senso de comunidade, gentileza, calor humano, acolhimento genuíno.
A evangelização passa por aqui, sem humanidade e comunidade hoje não há Evangelho que segure.
É exatamente isso que o Papa Francisco quer de bispos e padres: que tenham o “cheiro de ovelhas”, uma metáfora evangélica para expressar a capacidade de proximidade dos sacerdotes com as pessoas.
Mas também há necessidade de outro cheiro, o de incenso. Refiro-me à necessidade de recuperar o sentido do sagrado e da liturgia porque muitas vezes as missas são celebrações formalistas e ruidosas onde se perde o sentido do mistério, onde não se reza, onde se ouve sermões previsíveis, não há recolhimento, não há meditação, há bem poucos vestígios de espiritualidade. Aqui passa, na minha opinião, uma das frentes mais urgentes da missão da Igreja italiana e seria um erro fatal desconsiderá-la, ou pior ainda, fazer da liturgia o domínio dos tradicionalistas anticonciliares, gente não desprovida de fortes acentuações fascistas e antissemitas.
A Igreja italiana deve trabalhar para reencontrar a sacralidade e a beleza antiga da liturgia, e fazer com que seu mistério seja novamente saboreado não apesar do mundo contemporâneo, mas doando a este mundo, agora desprovido de ritos dignos desse nome, o que ele perdeu: o sagrado, o mistério, a solenidade.
Também espero isso do Cardeal Zuppi presidente da CEI e sei que ele tem condições de trabalhar nisso. Há menos de uma semana estávamos sentados juntos na Sala Vermelha do Lingotto conversando sobre o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer diante do público da Feira do Livro de Turim. O tema era: "Encontrar Deus no que conhecemos", uma frase que Bonhoeffer escreveu em uma carta de 30 de maio de 1944. Pois bem, espero que o novo presidente dos bispos ajude o nosso país a encontrar Deus.
Tenho certeza que até os leigos se beneficiariam com isso, porque não se trata de voltar todos à Igreja em procissão numa fila dois a dois, como talvez teriam desejado os presidentes anteriores da CEI. Trata-se, sim, de "colocar ordem na própria vida", para retomar a expressão de Inácio de Loyola que o Cardeal Martini costumava citar com muita frequência, o que só pode acontecer na presença de um princípio ordenador - que depois possa chamado de Deus, justiça, beleza, verdade, amor, enfim, é uma questão secundária.
Da ordem introduzida na vida nasce a coragem, aquilo de que o nosso tempo necessita urgentemente, como do ar que se respira. Trata-se de dar coragem a este nosso tempo assustado, assustadíssimo.
Certa vez que estávamos juntos na trattoria, propus a ele uma grande assembleia sobre o medo: três, quatro, cinco dias em que convocar as personalidades italianas mais interessantes, crentes e não crentes, para falar sobre os seus medos. Ele me ouviu com interesse, depois não fez nada, imagino que não encontrou tempo.
Agora, porém, ele tem à sua disposição as alavancas de comando da Igreja italiana, obviamente não tanto para realizar a assembleia, mas para infundir coragem. Etimologicamente, coragem significa ação do coração, com o termo formado a partir do latim "cor-cordis" e do sufixo -agem que expressa a ação específica do substantivo (como espião-espionagem, vagabundo-vagabundagem e assim por diante).
Zuppi tem um grande coração, eu sei, portanto, tem o que é preciso para a missão mais importante que o espera.
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Em nome do Senhor. Artigo Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU