Diálogo sobre a verdade entre um ateu impenitente e o papa emérito

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21 Mai 2022

 

Ao longo de nove anos, de 2013 até hoje, o Papa Emérito Bento XVI e um matemático ateu se encontraram várias vezes pessoalmente no Vaticano e mantiveram uma intensa e profunda correspondência, apesar de suas posições diametralmente opostas.

 

O relato é do matemático e lógico italiano Piergiorgio Odifreddi, ex-professor da Universidade de Turim e da Cornell University, em artigo publicado no jornal La Stampa, 15-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O livro “In cammino alla ricerca della verità” [A caminho em busca da verdade] reúne os relatos dos encontros que, a partir de 2013, eu tive com o Papa Emérito Bento XVI e as muitas cartas que trocamos desde então até hoje.

Falamos sobre os assuntos mais variados, dependendo de como o Espírito ditava: alguns livros lidos ou escritos por nós, a sua relação com o teólogo dissidente Hans Küng, os seus encontros com Fidel Castro e Francesco Cossiga, os problemas da Igreja e as soluções de Bergoglio.

Nas cartas, por outro lado, dialogamos sobre os máximos sistemas: os problemas da fé e da razão, da vida e da morte, do monoteísmo e do inferno.

O título do livro é uma expressão que Ratzinger gosta muito e que ele me repetiu e escreveu várias vezes. Em particular, uma em que ele dizia: “De diferentes modos buscamos o caminho da verdade que nunca é simplesmente encontrada, permanecendo a verdade sempre maior do que nós”.

A pergunta sobre o que é a verdade obviamente tem uma longa história: Pilatos já a fez diretamente a Jesus, indo embora logo depois, sem esperar a resposta. Dadas as devidas proporções, nós também tentamos responder a essa mesma pergunta, a partir dos nossos respectivos pontos de vista, mas sem ir embora e continuando a dialogar.

A esse propósito, em um dos encontros, eu indiquei ao papa emérito algo singular: a expressão “a verdade” [la verità] pode gerar anagramas [em italiano] de dois modos contrapostos, que refletem as nossas respectivas posições.

O primeiro anagrama, “revelada” [rivelata], é o modo como um religioso entende a verdade. O segundo anagrama, “relativa” [relativa], reflete, por sua vez, o modo de pensar de um matemático.

Ratzinger, que adora os anagramas, comentou: “É extraordinário que um jogo de palavras possa esconder algo surpreendentemente profundo”. E o jogo poderia continuar ainda, já que outros dois anagramas da mesma expressão são “evitá-la” [evitarla] e “vetá-la” [vietarla].

No início, em 2013, a nossa correspondência havia iniciado com uma resposta dele ao meu livro Caro papa ti scrivo (2011), no qual havia comentado, capítulo por capítulo, a sua obra-primaIntrodução ao cristianismo (1968).

Em uma longa carta, que agora abre a seção da correspondência do novo livro, Bento XVI havia puxado as minhas orelhas com palavras “duras e francas”, convidando-me “decididamente a me tornar um pouco mais competente de um ponto de vista histórico”, para remediar “um falar precipitado que eu não deveria repetir”.

Os objetos da contenda eram a historicidade de Jesus, por um lado, e a veracidade dos milagres, por outro. Era, portanto, natural que a nossa correspondência continuasse com uma réplica minha sobre esses assuntos.

Em uma longa carta de 2014, então, fiz a minha lição de casa, depois de me informar lendo a “História da pesquisa sobre a vida de Jesus”, de Albert Schweitzer, e “A pesquisa do Jesus histórico” (Ed. Loyola), de Giuseppe Segalla.

Obviamente, deixo ao leitor a decisão final sobre quem tinha razão, entre o papa e o ateu, limitando-me aqui a observar que descobri, para a minha surpresa, que os teólogos protestantes, que certamente são “competentes do ponto de vista histórico” tanto quanto os católicos, também tendem a “falar precipitadamente” como o ateu, mais do que como o papa.

Em 2016, por ocasião do 10º aniversário do famoso discurso de Regensburg de Bento XVI, o assunto das nossas cartas voltou-se para um aspecto particular que o papa havia tocado na sua fala: o problema da violência da religião, que ele introduziu com uma já famosa citação do imperador Manuel II Paleólogo, segundo a qual Maomé trouxera apenas coisas “más e desumanas” e pregara usando a espada.

No meu exame do seu discurso, levantei o problema da violência intrínseca do monoteísmo, e, na sua resposta, o papa emérito me apresentou as teses análogas de Jan Assmann. Em um encontro posterior, ele me falou de um artigo recente, intitulado “Moisés contra Hitler”, no qual o egiptólogo alemão observava que Thomas Mann havia retratado o líder judeu, durante a Segunda Guerra Mundial, como um protonazista.

Depois de voltar para casa, fiz uma pesquisa e descobri que, nas conversas com o poeta Dietrich Eckhart, publicadas sob o título “O bolchevismo, de Moisés a Lênin”, o próprio Hitler havia comparado o líder judeu a um protobolchevique.

Graças a Bento XVI, portanto, descobri que aquilo que um chama de Moisés, outro chama de Hitler, e outro ainda chama de Lenin: um ensinamento que pode ser útil para interpretar muitas contraposições, especialmente as políticas ou religiosas, ainda nestes dias de guerra da Ucrânia à Palestina.

Um dos assuntos que mais discuti com Ratzinger é a prova ontológica da existência de Deus, na versão moderna proposta pelo lógico matemático Kurt Gödel. Um recente resultado de Harvey Friedman, em cuja gênese eu mesmo tive um pequeno papel, é que o argumento de Gödel pode ser levado às suas últimas consequências demonstrando que, “se Deus existe, então a matemática não é contraditória”.

Surpreendentemente, é exatamente isso que Bento XVI repetiu várias vezes nas suas homilias, obviamente argumentando a afirmação de uma maneira completamente diferente. Ele pareceu muito interessado quando lhe contei essas coisas em uma audiência e, no fim, exclamou meio brincando: “Você vai acabar se tornando um grande teólogo!”.

Ainda em 2015, eu escrevi uma longa carta ao Papa Emérito sobre como um ateu vê a morte, mas em 2020 as palavras abstratas se tornaram dor concreta, quando ele perdeu seu irmão, e eu, a minha mãe. O livro, portanto, conclui com as nove cartas que trocamos naquele annus horribilis, na tentativa de elaborar os nossos respectivos lutos.

E, em 2021, decidimos tornar públicos os nossos encontros e a nossa correspondência, que para mim representam a demonstração de como até duas pessoas com ideias antitéticas, como um papa e um ateu, podem debater respeitosamente e concordar mesmo assim, com todo o respeito aos fundamentalistas e aos belicistas.

 

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