15 Agosto 2017
Para alguns, a religião é quem nos salva nos momentos trágicos. Para outros, é um poder perigoso. A religião pode resolver conflitos? Um debate entre a pastora protestante alemã Antje Vollmer, ex-vice-presidente do Bundestag alemão, o cientista político alemão-egípcio Hamed Abdel-Samad e o jesuíta alemão Klaus Mertes, diretor do colégio St. Blasien e ex-reitor do colégio Canisius.
A reportagem é de Britta Baas, publicada na revista Publik-Forum, n. 14, 21-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sra. Vollmer, Sr. Abdel-Samad, Sr. Mertes, quase todas as semanas, vemos imagens de bairros incendiados, de pessoas chorando, de hospitais transbordando, de mortes em tantas partes do mundo. Muitas vezes, diz-se que o Estado Islâmico reivindicou certos ataques. Em outros lugares, outros grupos religiosos estão envolvidos em guerras e terrorismo. A violência está nos genes da religião?
Hamed Abdel-Samad – Pelo menos está nos genes do Islã político. Se levarmos os muçulmanos de volta ao exemplo do profeta e à palavra do Alcorão, teremos o salafismo ou o Estado islâmico. Por isso, eu não acredito na frase “voltar ao verdadeiro Islã” ou “voltar à essência do Alcorão”. Eu acho que precisamos nos libertar do poder dos textos e do exemplo de Maomé.
A religião em tempos de terrorismo: uma parte da solução? Ou uma parte do problema?
Klaus Mertes – A tarefa que se apresenta a todos, também às pessoas religiosas, é uma reflexão sobre o próprio papel. Não fazemos parte da solução de um problema se não reconhecemos que fazemos parte do problema. Sempre podemos ceder ao perigo da violência. Não é uma especificidade do Islã ou dos muçulmanos. É problemático lidar com pessoas que afirmam que elas absolutamente não fazem parte do problema...
Antje Vollmer – E também não é uma solução simplesmente abrir mão da história da própria religião. Muitas vezes, eu encontro a expressão: “A religião é boa se for individual e, possivelmente, humanista”. Mas, assim, ignoramos o fato de que estamos inseridos em sociedades, em histórias, em relações familiares. Eu vivo da tradição do protestantismo e vejo que Martinho Lutero não é alheio à história do cristianismo. Ele leu os textos fundamentais e se confrontou com a práxis daquele tempo da sua Igreja. Ele viu que as coisas não iam bem, que havia um vínculo negativo entre religião e poder. Era esse vínculo que ele queria desfazer. Apesar da separação – que inicialmente parecia que funcionava –, depois ele fez a experiência de que a violência voltava. No desejo de reformar a sua Igreja, ele jogou um continente inteiro em uma história de violência de 100 anos, na qual, em essência, tratava-se sempre de “ter razão”. Por isso, a separação entre religião e poder simplesmente não é a solução. É preciso também refletir sobre a história da própria instituição. Quem diz que não tem nada a ver com a religião dos seus ancestrais é vítima de uma ilusão.
Abdel-Samad – Mas também é verdade que as religiões e as suas instituições nunca se transformaram voluntariamente. Elas tiveram que ser violentamente criticadas e pressionadas por parte daqueles que saíram delas para poderem ser reformadas. E nunca fizeram isso no ápice do seu poder, mas em fases de fraqueza. Também foi assim em 2010, quando se descobriu o escândalo da pedofilia na Igreja Católica. Isso também foi mantido às escondidas por anos, até que a opinião pública disse “chega”, e se seguiu uma onda de desistências da Igreja. Só então é que as pessoas de dentro da Igreja aceitaram ter que enfrentar o problema. E a mesma coisa acontece com o Islã. Não podemos esperar que a Universidade de Al-Azhar, ou os muftis sauditas, ou as organizações xiitas no Irã reformem o Islã. É preciso esperar que os próprios fiéis mudem a sua atitude mental em relação aos textos e à sua religião.
Mertes – Não há dúvida de que sempre deve haver também uma pressão de fora. Mas, quanto à questão dos abusos, pode-se ver que também deve haver uma mudança a partir de dentro. Os primeiros a falar foram as vítimas. Que fazem parte do sistema! Só depois é que a opinião pública se apropriou do assunto. Eu conheço pessoas que deixaram a Igreja em um período doloroso. Com boas razões. Mas, apesar disso, elas sempre têm a ver com esse “dentro”. Elas não podem fazer com que essa parte da sua biografia desapareça. Então, se eu considero a palavra religiosa que existe dentro apenas como objeto de crítica, se eu a pressiono, a avalio, a critico, então eu reforço o problema da violência.
Abdel-Samad – Por quê?
Mertes – Eu a reforço porque, naquele momento, eu não me comunico com aqueles que estão dentro do sistema, mas apenas falo deles. Por isso, também é necessária a discussão com quem está dentro para evitar que se criem espirais de violência.
Abdel-Samad – Você descreve como é doloroso se distanciar das estruturas religiosas e depois voltar a olhar para a religião a partir de fora. Eu conheço bem esse caminho. Eu me pergunto: por que é assim? Porque fomos infectados pela religião quando crianças. Antes de sermos capazes de manter distância e de reconhecer como verdadeiro ou falso aquilo que é transmitido. A religião, assim, torna-se uma parte da identidade, uma couraça de identidade da qual não é nada fácil sair.
Mertes – Mas nem toda a marca que é deixada pelos pais é um ato de violência. Se os pais rezam à noite com o seu filho, isso é violência? Se uma criança me pergunta em que eu acredito, a resposta já é violência? Não podemos considerar qualquer ato educativo como um ato de violência! Como as grandes perguntas da religião também são as grandes perguntas das crianças, uma educação sem deixar marcas não é possível. Os pais não dizem aos seus filhos: “Vou responder às suas perguntas somente quando você tiver aprendido a avaliar todos os prós e os contras”. Não é bom um individualismo que requeira uma total ausência de marcas. Além disso, o individualismo só é uma libertação quando eu o entendo como algo que pode me libertar de uma situação vinculante inevitável, e se eu a quiser. Mas, caro Abdel-Samad, eu também gostaria de ser, como crente, um sujeito no debate sobre a religião e quero poder dizer que sou uma parte da sociedade. Não devem me livrar do jugo da minha marca religiosa. Posso lhe dizer de bom grado como eu me vejo.
Abdel-Samad – Estou plenamente de acordo. Mas eu também tive a experiência de como a religião pode agarrar com os seus tentáculos de polvo. E como nos sentimos culpados ao ir embora.
Sra. Vollmer, na sua biografia, a religião e a política tiveram um papel importante. Você é teóloga evangélica e pastora, mas, por muitos anos, também esteve envolvida na política. Foi importante para você separar o papel político do religioso. Por quê?
Vollmer – Porque eu entendi que, se a pessoa política e a pastora se tornam uma mesma coisa, há uma sobreposição equivocada. Fazer política envolve sempre uma ponderação entre possibilidades diferentes de solução de problemas práticos. Nunca deve faltar uma alternativa. Muitas vezes é preciso também aceitar compromissos. Se dermos uma importância excessiva à nossa própria opinião, acreditando que somos uma figura moral importante que não pode ser contradita, arrogamo-nos mais poder do que nos cabe. A religião tem em si a sedução para essa presunção. É preciso se dotar de defesas contra isso. É perigoso quando uma pessoa que trabalha no campo político não o faz.
Abdel-Samad – E quanto mais a religião é poderosa como entidade política, mais ela se empobrece espiritualmente. As Igrejas alemãs são ricas, influenciam a política, os conselhos diretivos de rádios e televisões – e as suas igrejas estão vazias. Ao contrário, na China, o cristianismo está vivendo um renascimento. Onde as pessoas não aguentam mais uma religião política como o comunismo, onde tudo é decidido de cima, onde cresce o materialismo, as pessoas buscam justamente aquele acesso à religião que, na Europa, parece estar perdido.
Vollmer – Nós aprendemos no século XX, como a excessiva importância da política no religioso pode levar ao engano, pode se tornar uma loucura coletiva. O nazismo e o stalinismo eram sistemas de poder mascarados de religião. Não tendo textos de origem para poderem fazer referência, para poderem se deparar, não tendo uma história em relação à qual pudessem aprender a renúncia, tiveram aquela louca pretensão de onipotência.
Houve muito poucos cristãos que, na época, se opuseram àquela excessiva importância da política no religioso. Aqueles que fizeram isso tiveram que fazer as contas com a perseguição, às vezes até por parte dos seus correligionários. No cristianismo, continua havendo muitos conflitos não resolvidos, não elaborados. Tanto política quanto teologicamente.
Vollmer – Eu acho que nós, cristãos europeus, não estamos em uma boa posição para o diálogo com as outras religiões. Não só por causa do consumismo sem alma – que constrange espiritualmente as nossas igrejas e que, politicamente, não nos deixa nos colocarmos do lado dos pobres –, mas também porque ainda não chegamos ao fim da superação da nossa violência. Vemos isso ao observarmos a história contemporânea. E sentimos isso na falta de um sinal no presente, até mesmo com atraso: nem mesmo neste ano de Lutero, 500 anos depois da divisão da Igreja, conseguimos dar um sinal, um símbolo de superação da violência. Esse sinal seria a Ceia do Senhor juntos, a hospitalidade eucarística. Eu sempre sofro muito com isso, pelo fato de que as hierarquias eclesiásticas ainda impedirem isso. Se nem mesmo entre nós, cristãos, encontramos um sinal de mudança real, não estamos prontos para um diálogo com as outras religiões, que têm os seus próprios problemas históricos.
Sr. Abdel-Samad, você acredita na força espiritual que pode nascer da “autodesautorização” da religião. Sra. Vollmer, você está convencida de que a paz deve começar a partir das diferentes confissões, para que possam ser credíveis no diálogo inter-religioso, afirmando estarem livres da violência. A pessoa religiosa, então, é um pacificador em tempos de terrorismo, Sr. Mertes?
Mertes – Não faz sentido agir como se não tivéssemos nenhum poder para combater os abusos de poder. Precisamos de emancipação para enfrentar os conflitos internos das nossas religiões e instituições, para torná-los públicos, para curá-los. Se estivermos dispostos a isso, poderemos também falar com os outros, sem violência. Mas isso não significa resolver todos os problemas internos antes de enfrentar qualquer coisa a mais.
Abdel-Samad – Se deve haver menos violência, uma coisa deve ficar clara: “Antes de tudo, seja um ser humano! Depois, escolha a sua religião!”. Esse é um princípio humanístico em que eu acredito. Infelizmente, o que acontece na maioria dos casos é algo diferente. As poderosas Igrejas alemãs se tornam sustentadoras do Islã político. Elas se preocupam que ele tem cada vez mais privilégios. O Islã quer estar na mesma posição que as Igrejas. Se o Islã político conseguir isso, será uma catástrofe!
Mas há também um Islã diferente, liberal, democrático, um movimento que se baseia na busca livre na religião. Você não o vê?
Abdel-Samad – Você tem uma visão de futuro que ainda não existe. Há reformadores individuais, mas não há um movimento de reforma.
Mas justamente você acaba de publicar um livro com Mouhanad Khorchide sobre a reforma do Islã! Khorchide é um dos inúmeros muçulmanos de primeiro plano, na Alemanha, que não ensinam um Islã inimigo da democracia.
Abdel-Samad – Mouhanad Khorchide, a quem eu estimo muito, quer libertar o Islã da violência, fala de um “Islã da misericórdia”. Ele diz que os trechos de violência que existem no Alcorão não dizem respeito ao nosso tempo. As associações islâmicas dizem que ele segue uma doutrina equivocada e pedem que lhe seja removida a permissão de ensinar. Algo que vimos na Igreja Católica com Hans Küng. Isso significa que o Islã não quer nenhuma reforma e nenhum movimento de reforma. Ele os sufoca na raiz. As associações islâmicas na Alemanha são círculos étnico-nacionais, que levam em frente a política dos seus países de origem, em primeiro lugar a política turca. Essas instituições se fortalecem e tiram credibilidade de pessoas como Khorchide.
Vollmer – Devemos levar muito a sério a sua advertência, caro Abdel-Samad. Mas eu digo que, mesmo que tirássemos da religião tudo o que ela tem de institucional e deixássemos o indivíduo sozinho com a sua orientação religiosa, veríamos que a violência está no homem, não na instituição. Os homens devem se exercitar para dominar as próprias paixões e as próprias fantasias de poder para viverem em harmonia com a criação.
Mertes – A resposta do cristianismo à pergunta sobre a violência é pôr no centro da própria religiosidade uma vítima da violência: Jesus. A resposta ao problema da violência é o Crucificado. Essa é uma mensagem radical! Se nós nos identificamos com uma vítima não violenta da violência e da arbitrariedade, o que isso significa? Não estaria, talvez, na essência profunda da religião a força para a superação de qualquer tipo de violência?
Vollmer – Se olharmos para a história do cristianismo, a mensagem da não violência logo se perdeu. O cristianismo se tornou a religião de um império...
Abdel-Samad – E na história do Islã, infelizmente, não se encontra nenhum princípio de não violência. Exceto na fase inicial, quando Maomé ainda não tinha nenhum exército, quando ele pregava a não violência. Mas, quando chegou ao poder, ele usou violência. Se, para o cristianismo, a solução da questão da violência está no Crucificado, então, para o Islã, devo dizer que, de acordo com o ensinamento do Alcorão, Deus é superior e espera que os homens se sacrifiquem por ele. Mas, sobre isso, não podemos construir nenhum princípio de não violência, embora eu conheça muitas pessoas que vivem o Islã de maneira pacífica.
Uma pessoa religiosa, portanto, não pode mudar o seu papel? Não pode aprender a ver as coisas de uma maneira nova e ser, ela mesma, vista de uma maneira nova?
Mertes – Certamente sim! No cristianismo, há exemplos desse tipo. Pensemos em Paulo. Nas origens do cristianismo, está a escolha desse homem que, inicialmente, pensava que devia matar pessoas por ordem de Deus, fazendo, assim, uma obra que agradasse a Deus. Ver o processo da sua transformação é importante. Ver como os parentes daqueles que anteriormente tinham sido mortos por ele começam a aceitá-lo no seu novo papel, como pregador da não violência. Essa é a resposta do cristianismo ao terrorismo no mundo. É possível se converter. Mudar tudo. A qualquer momento.
Vollmer – Quem é cristão e faz política deve refletir sobre o pacifismo política. Isto é, deve refletir se o seu tipo de reação aumenta ou diminui a violência. Se aumenta ou reduz sentimentos de impotência. É um problema fundamental.
Abdel-Samad – Desde o 11 de setembro de 2001, procuramos respostas: de onde vem o terrorismo? Certamente, as estruturas socioeconômicas têm o seu peso, assim como as experiências de discriminação. Mas tudo isso não estaria unido sem uma ideologia que justifique o ódio. Vem de uma determinada forma de ler o Alcorão. Por isso, para mim, é difícil imaginar como possa vir do Islã institucionalizado um contra-modelo que seja contra a violência. Porque não temos esse ensinamento da não violência. Não temos o convite a amar os nossos inimigos! Temos um modelo de sucesso do Islã que, quase desde o início, foi político. E é um modelo para os islamistas hoje. Naturalmente, existem trechos do Alcorão que falam da paz. Mas não podemos avançar com esses trechos de paz contra os trechos de violência no Alcorão. Senão, transformamos esse livro em um manual político, em um instrumento político, e isso não deve acontecer. O que podemos fazer é combater a ideologia. Chamemos as coisas pelo nome. E critiquemos aqueles que cortejam o Islã político. Quando a chanceler [alemã] faz negócios bilionários com a Arábia Saudita vendendo armas, quando Trump faz a mesma coisa, e ambos dizem que estão combatendo o terrorismo e as causas da emigração, estão brincando conosco.
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Religião em tempos de terrorismo: a violência está nos genes da religião? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU