08 Dezembro 2021
“Embora as tensões entre a Igreja e o Estado / Partido / Governo cubano durante o ano de 2021 sejam notáveis, considero que a decisão do governo de mudar a sede do Gabinete de Assuntos Religiosos na esfera do Partido Comunista de Cuba pode abrir um novo cenário para o aprimoramento dessas relações. Apesar dos lamentáveis acontecimentos descritos neste texto, creio que existe um contexto diferente entre o ambiente católico e o governo de Havana do ano de 1961, por isso considero que ainda não estamos diante de uma nova etapa de confronto radical definida por alguns autores, como o cenário para uma Igreja do Silêncio”, escreve Julio Pernús, doutor em filosofia pela Universidad de La Habana, comunicador da Companhia de Jesus em Cuba e redator da revista Amor y Vida, em artigo publicado por Religión Digital e Jesuítas da América Latina, 02-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 1961, há seis décadas, foram expulsos do país 136 padres no barco Covadonga. Segundo o historiador cubano Manuel Maza Miquel, padre jesuíta, “esse ano a Igreja Católica foi despojada do seu mais importante instrumento de influência social na sociedade cubana: o sistema de colégios católicos. Também perdeu 80% do seu corpo eclesiástico e a possibilidade de se dirigir à generalidade da cidadania cubana de maneira livre e direta usando os meios de comunicação”. Sem dúvidas, esse contexto abriu um dos momentos mais álgidos das relações Igreja-Estado em Cuba pós-1959.
Mapa de Cuba, na América Central (Foto: Reprodução | Google Maps)
Sessenta anos depois estamos na presença de outra etapa, onde o catolicismo cubano e o governo estão em meio a uma tangível tensão refletida nos sucessos concretos dentro da sociedade. Há algum tempo os bispos cubanos vem evidenciando a necessidade de buscar uma via pacífica para integrar o dissenso como parte de uma sociedade mais justa. Se nos remontarmos a outro dos anos de palpáveis tensões dentro do conflito, com 1993, podemos ler a mensagem pastoral “O Amor tudo Espera”, um discurso didático: “rejeitar o diálogo é perder o direito a expressar a própria opinião e aceitar o diálogo é uma possibilidade de contribuir à compreensão entre todos os cubanos para construir um futuro digno e pacífico”.
As instituições católicas do país foram também afetadas pela pandemia da covid-19, que obrigou a fechar os templos como medida sanitária durante grande parte de 2021. Não obstante, a agir caritativo da Igreja não deixou de se esforçar por seguir dando ajudar aos setores mais vulneráveis da população. Apesar de as instituições católicas, como a Cáritas Cuba, terem um reconhecimento demonstrável em seus milhares de beneficiários ao longo do país, seu agir passa de forma invisível para os meios de comunicação oficial. Alguém se pergunta: quem ganha com este tipo de ações onde se promove com ousadia o mínimo que alguma ONG reconhecida como aliada do governo e se anula do discurso midiático dos serviços de outros atores que não reproduzem 100% sua ideologia?
Além disso, para enfrentar as tensões é necessário reconhecer que o mundo católico é muito heterogêneo e que é uma riqueza espiritual, a fim de capacitar a Igreja como um mediador válido para ajudar na necessária reconciliação nacional. É incrível que, no fim de semana antes de segunda-feira, 15 de novembro, houvesse católicos como organizadores da manifestação dos lenços vermelhos (pañuelos rojos) no Parque da Fraternidade e também houvesse um grande número de pessoas defendendo o direito constitucional de uma manifestação pacífica. Pessoalmente, sou amigo de um desses jovens católicos que é quadro de jovens em Havana e de outro que foi moderador do Arquipélago. Sei que ambos tendem a compartilhar os espaços eclesiais e o critério da não exclusão.
Em 11 de julho, vários católicos – leigos, padres, religiosos – saíram às ruas como parte da aprovação das reivindicações feitas pelos manifestantes. Alguns leigos ainda estão presos por sua participação. Entre as memórias mais tristes desse dia está a do jovem historiador católico Leonardo Manuel Fernández Otaño, orando ajoelhado em frente ao ICRT, enquanto um grupo de pessoas com mais de 60 anos o agredia verbalmente em um ato “espontâneo” de repúdio.
Depois desses dias, a Conferência Cubana de Religiosos e Religiosas (CONCUR) criou uma comissão para acompanhar os detidos e suas famílias após os protestos do 11J. Dessa equipe saíram vários chamados de atenção sobre irregularidades que estão sendo cometidas com os presos, com propostas específicas de pedidos governamentais para ajudar a sanar o tecido social da nação. Até o momento, suas reivindicações foram totalmente ignoradas pelo governo de Havana.
Cidade de Havana, capital de Cuba (Foto: Reprodução | Google Maps)
No dia 15 de novembro, uma multidão de pessoas orientadas pelo poder se reuniu em frente ao Arcebispado de Camagüey para realizar um ato de repúdio a alguns dos padres que manifestaram o desejo de participar da marcha cívica convocada para aquele dia. Um dos cartões-postais que ficará na memória virtual dos cubanos é a foto do padre Alberto Reyes rezando na cobertura do prédio pela alma daqueles manifestantes eufóricos que gritavam todo tipo de palavrões contra ele. Se algo nos lembra 1961 hoje, são esses eventos macabros de massas alienadas tentando de forma descontrolada desqualificar o trabalho social da Igreja.
Sou testemunha em primeira pessoa das ações de intimidação da Segurança do Estado contra leigos para que não participassem da marcha. Esses exercícios de violência psicológica ainda precisam ser avaliados, pois sei por outros depoimentos recolhidos que eles romperam irreparavelmente – até mesmo – os laços com o mundo afetivo de alguns dos afetados. No dia 15 mesmo, alguns dos católicos que manifestaram interesse em sair para protestar – incluindo padres, religiosos e leigos aqui – foram impedidos de sair de casa pelas forças policiais.
Mas talvez um dos acontecimentos mais tristes do dia 15 de novembro seja o relatado pela irmã Nadieska Almeida, superiora das Filhas da Caridade em Cuba. Ela foi abordada naquele dia por um grupo de “civis” e uma representação do Partido Comunista para ameaçá-la sem explicação por sua intenção de sair do convento. Esta ação denota claramente o fraco componente que sustenta as relações Igreja-Estado em Cuba, já que somente alguém com enorme desconhecimento do trabalho prestativo que as Filhas da Caridade têm prestado aos setores mais desprotegidos da sociedade civil desde a sua chegada à Ilha, pode ser capaz de tal infâmia contra aquelas freiras.
O paradoxo da questão é que depois de alguns dias dessas ações odiosas, um dos participantes delas tristemente apelou por meio de um parente para pedir remédios a um dos padres renegados, já que ele não conseguiu pegá-los na farmácia para sua mãe doente e procurava por ela regularmente. Naquele mesmo dia o pároco disse à pessoa: “Diga ao seu irmão que ele pode continuar vindo buscar os remédios para a mãe dele na paróquia, porque o mais bonito da Igreja é que até quem a agride e denigre sabe que eles sempre poderão vir a ela como uma mãe, e serão tratados como filhos. E eu não repudio”, pontuou.
O Papa Francisco está muito ciente da situação no país desde sua nomeação. Isso se denota porque fomos visitados por ele em duas ocasiões e suas referências a Cuba em várias mensagens. Neste último ano, a imagem do sucessor de Pedro tem estado no centro de inúmeros debates nas esferas que articulam o pensamento político dos cubanos dentro e fora da ilha.
Inclusive se instala em alguns setores do catolicismo cubano uma matriz de opinião que impulsiona o pontífice argentino como ator internacional favorável ao regime governante do país. Esse critério ganhou mais peso quando o influenciador cubano-americano Alexander Otaola planejou uma espécie de protesto na mídia durante uma oração noturna na Praça São Pedro, poucos dias antes de 15 de novembro. Essa ação foi impedida, em alguns casos, de forma excessiva pela guarda suíça do complexo e alimentou ainda mais nas redes essa discussão sobre o apoio do papa aos sistemas comunistas.
É oportuno destacar que essa história também foi construída a partir da posição oficial, uma vez que a mídia nacional o posiciona como sujeito político indissociável da esquerda mundial. Um jovem leigo de Cienfuegos, que estava entre os convictos de ir marchar no dia 15N, relatou em seu perfil no Facebook que a Segurança do Estado, em um dos interrogatórios, o questionou como ele se autodenominava católico, se queria derrubar um sistema comunista que teve a aprovação do Papa Francisco.
Esse tipo de impulso ideológico está longe do espírito de amizade social que o Papa Francisco pediu aos jovens cubanos para encarnarem no tecido social da nação. Acredito que ninguém em seu perfeito juízo ousaria rotular o pontífice argentino de comunista, assim como é impensável que o Santo Padre violasse o princípio de subsidiariedade da Igreja ao emitir uma declaração frontal contra o governo, passando por cima do questões locais no modo de proceder da Conferência Episcopal de Cuba.
O sucessor de Pedro sempre esteve e sempre estará do lado da justiça social e sua opção preferencial pelas causas defendidas pelos pobres, como sujeitos políticos, evidente. Aqueles de nós que lemos seus pensamentos sabem que para ele a verdadeira unidade não é uniformidade, mas unidade na diferença. Por isso, dirigiu aos católicos o cuidado de se tornarem “guardiões da verdade”, pessoas que escolhem a parte, não o todo, para pertencer a isso ou a isto e não à Igreja. Uma chave para o catolicismo cubano hoje é tentar não se tornar partidário (seguidores) em vez de irmãos e irmãs, no mesmo espírito; não ser cristãos de direita ou esquerda lutando entre si antes de serem discípulos de Jesus e de sua encarnação junto daqueles que são reprimidos para defender a justiça.
O presidente Miguel Díaz-Canel Bermúdez se reuniu com diversos setores da sociedade civil, porém, até hoje, não fez esse intercâmbio com a Conferência Episcopal de Cuba. Isso, de alguma forma, mostra a tensão nas relações Igreja-Estado hoje. E, se dado, pode ser visto como um passo positivo em direção a um futuro de maior diálogo. Embora difícil de avaliar, o presidente em setembro deste ano se encontrou com o cardeal estadunidense Sean Patrick O'Malley, que pediu ao presidente, segundo sua crônica da viagem, um encontro com os bispos cubanos. E liberdade para presos políticos após os protestos do 11J.
O interlocutor imediato entre a Igreja e o governo é o Gabinete de Assuntos Religiosos, que tem mantido intercâmbios com atores católicos nacionais, mas com resultados que não têm sido suficientes para recuperar o diálogo necessário. Bem, por exemplo, a partir do site para-oficial Razones de Cuba, o trabalho dos atores da Igreja foi atacado com artigos dolorosos, incluindo a Conferência Episcopal, por sua denúncia pública da realidade nacional. Além disso, perfis nas redes sociais atribuídos à ideologia do Partido caluniaram padres e leigos por seu trabalho profético.
A Conferência Episcopal Cubana em sua última mensagem, três dias antes do 15 de novembro, exortou as autoridades da nação a buscar caminhos que sirvam para a compreensão, a reconciliação e a paz. E defenderam a conquista de espaços onde se possa estabelecer um diálogo harmonioso e civilizado entre os diferentes atores da sociedade civil para encontrar as melhores soluções para os problemas que nos oprimem.
Essa mensagem ganhou ampla cobertura da mídia por meio das redes sociais e da mídia independente. No entanto, não parece ter exercido a mesma força nos tomadores de decisão, que nem sequer cederam à seguinte reflexão dos bispos cubanos: “Quanto apreciariam tantas famílias cubanas e a própria Igreja, e quanto diminuiria a tensão social, se houvesse um gesto de indulgência para com aqueles que ainda estão detidos pelos acontecimentos do verão passado!”.
Embora as tensões entre a Igreja e o Estado / Partido / Governo cubano durante o ano de 2021 sejam notáveis, considero que a decisão do governo de mudar a sede do Gabinete de Assuntos Religiosos na esfera do Partido Comunista de Cuba pode abrir um novo cenário para o aprimoramento dessas relações. Apesar dos lamentáveis acontecimentos descritos neste texto, creio que existe um contexto diferente entre o ambiente católico e o governo de Havana do ano de 1961, por isso considero que ainda não estamos diante de uma nova etapa de confronto radical definida por alguns autores, como o cenário para uma Igreja do Silêncio.
Se este artigo for lido por um tomador de decisão do partido, seria oportuno que se criasse as condições para um intercâmbio entre as lideranças da nação e um setor representativo do catolicismo cubano, onde também deveriam ser convidados, além dos bispos, representantes da Conferência Cubana de Religiosos, alguns padres e leigos que, pelo seu prestígio social, são considerados interlocutores válidos da população. Associo-me ao pedido da Igreja de confiar à Padroeira de Cuba, Nossa Senhora da Caridade do Cobre, a resolução através do diálogo e da reconciliação de um futuro de esperança para a nossa pátria.
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Cuba. Para entender as tensões entre a Igreja Católica e o Estado/Partido/Governo na ilha em 2021 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU