"Assim como as sanções não podem levar Cuba ao colapso ou isolá-la do mundo, o “bloqueio” não tem nada a ver com a supressão das liberdades públicas em Cuba: o novo estado cubano foi projetado para uma guerra apocalíptica e de uma perspectiva militarista dos líderes que governam e as massas que obedecem e se sacrificam. Esta emergência do totalitarismo em um país com fortes tradições democráticas é um fenômeno interno da política e da história cubana: nem os Estados Unidos a causaram – nem a URSS a causaram – e essa virada totalitária não tem a ver com Embargo", escreve Jeudiel Martinez, professor da universidade de Caracas, em artigo publicado UniNômade Brasil, 16-07-2021.
O “bloqueio” é uma metáfora: não há uma frota americana isolando fisicamente a ilha do mundo. Depois da crise dos mísseis, os Estados Unidos desistiram de cercar Cuba e, após o fim da guerra fria, o que fizeram foi radicalizar as sanções, não isolar a ilha: Bloqueio é um cerco naval, um espaço que corta as comunicações de um país, isso nunca aconteceu desde a crise dos mísseis.
Por 28 anos no século 20 e pelo menos 13 no século 21, Cuba esteve vacinada contra o bloqueio: a URSS deu-lhe um subsídio extraordinariamente generoso – como pagamento pelo acesso à sua posição estratégica – análogo aos que os Estados Unidos davam aos países como Taiwan e Coreia do Sul. Em outras palavras, Cuba foi recompensada economicamente por sua posição estratégica e, em geral, por sua utilidade na guerra fria. Além disso, ele sempre teve a liberdade de comercializar e interagir não apenas com o bloco oriental, mas com muitos países da Europa e do terceiro mundo. No entanto, manteve-se um dos países menos industrializados e tecnológicos do bloco socialista e com uma das infraestruturas mais fracas. Os fracassos econômicos de Fidel Castro (como a Safra de 10 milhões [1]) são lendários.
Durante o século 21, Cuba basicamente estabeleceu uma simbiose com a Venezuela – ou parasitismo? – e se beneficiou de todos os tipos de subsídios financeiros e energéticos. Além disso, aliou-se e se relacionou livremente com todas as nações sul-americanas, incluindo Brasil e Argentina, além de ter, como sempre, as portas abertas para fazer negócios com a Europa e a China. Foram 13 anos de condições econômicas e geopolíticas ótimas para decolar economicamente, mesmo as sanções terminaram por um tempo: mesmo assim, não houve grandes mudanças e o governo preferiu perseguir os donos de bares e restaurantes a aplicar uma reforma ao estilo vietnamita ou chinês.
Mesmo na década posterior à Lei Helms Burton[2] –concebida para acelerar o colapso do país – Cuba sobreviveu recebendo turistas, remessas, fazendo negócios com países europeus e latino-americanos, demonstrando duas coisas: 1) Que as sanções são ineficazes; 2) Que Cuba sempre tem a chance de receber divisas, comercializar e receber investimentos de diferentes países, simplesmente não recebe o suficiente porque não produz valor agregado suficiente e, de fato, não possui mais ativos do que suas paisagens e cultura.
As sanções são uma expressão do aspecto IDEALÍSTICO da política americana, que é o mais perigoso e apocalíptico: os Estados Unidos são um juiz que não pode ser julgado por ninguém e, portanto, pode apoiar a ditadura de Pinochet – ou o genocídio na Guatemala – ao mesmo tempo que prega contra Fidel: a geopolítica americana, seus interesses, estão tão envolvidos com regimes genocidas e iliberais (como Israel ou Arábia Saudita, que são quase suas extensões) que na verdade não tem legitimidade de qualquer tipo para falar de democracia. O direito de sancionar é uma petição de princípio (“é porque é”) que afirma o poder dos Estados Unidos de julgar outros países e, ao mesmo tempo, é uma variável na política interna americana (a questão do voto na Flórida) que não tem nada a ver com Cuba.
Assim, os Estados Unidos, moralmente superiores, teriam o direito de destruir um país e depois refazê-lo à sua imagem. Essa política, adotada depois da Segunda Guerra, logo se transformou no paradigma da contra-insurgência e no Iraque foi catastrófica. Na verdade, as intervenções americanas não são apenas ilegítimas: são indesejáveis. Na verdade, NÃO HÁ UM ÚNICO CASO de mudança política provocada por sanções, mas permanecem porque expressam, ao mesmo tempo, um princípio moral e a autoridade dos EUA de estar dentro e fora do sistema jurídico internacional.
Na verdade, os Estados Unidos são, em certo nível, uma condição de existência do Castrismo: o apoio de Eisenhower à supressão de toda uma geração de regimes democráticos e reformistas (como o de Arbenz [3]) foi o que tornou o Castrismo possível, a inviabilidade essencial do Sistema Político interamericano deriva não apenas da desproporção entre os Estados Unidos e a América Latina, mas também do fato de que a OEA foi desenhada como um teste de novas formas de poder global e para servir aos interesses americanos. Mesmo quando a OEA, na década de 1980, deixou de ser uma extensão da política externa dos Estados Unidos, ela permaneceu uma instituição ineficaz que não foi capaz de resolver nenhuma crise (mas o fracasso da UNASUL e da CELAG, por outro lado, demonstra a ineficácia geopolítica da esquerda, da Onda Rosa na criação de uma nova ordem). Mas o fato de os Estados Unidos serem uma condição para a existência do castrismo não significa que ele o tenha causado: as causas efetivas são cubanas e apenas cubanas.
Assim como as sanções não podem levar Cuba ao colapso ou isolá-la do mundo, o “bloqueio” não tem nada a ver com a supressão das liberdades públicas em Cuba: o novo estado cubano foi projetado para uma guerra apocalíptica e de uma perspectiva militarista dos líderes que governam e as massas que obedecem e se sacrificam. Esta emergência do totalitarismo em um país com fortes tradições democráticas é um fenômeno interno da política e da história cubana: nem os Estados Unidos a causaram – nem a URSS a causaram – e essa virada totalitária não tem a ver com Embargo. Não há relação entre os EUA que proíbem o comércio com Cuba e a falta de liberdades públicas na ilha (aliás, sua repressão antecede o Embargo e continuou quando Obama o interrompeu). De fato, se alguma reforma política tivesse sido feita em Cuba, teria sido ainda mais difícil justificar as sanções.
Nesse sentido, as sanções não podem ser o ponto de partida nem a base material para qualquer análise: dos 59 anos desde o início do embargo, durante 41 Cuba foi protegida contra a maior parte de seus efeitos, pela URSS, pela Venezuela e outros governos da Onda Rosa. Também é ridículo dizer que as sanções impedem Cuba de fazer negócios com gigantes como a China ou a União Europeia, capazes de mobilizar bilhões de dólares em investimentos (lembre-se como a Europa reagiu quando os EUA tentaram proibi-la de negociar com a Rússia), o mesmo paradigma de livre comércio beneficiou Cuba e enfraqueceu as sanções que, enfim, contradizem o axioma do livre mercado: o problema é que a economia cubana nunca se adaptou, como fizeram as do Vietnã e da China, ela gera pouco valor agregado e é muito burocrática. A liderança tem pavor de autonomia e iniciativa pessoal (pilares das reformas chinesa e vietnamita) e as infraestruturas são terríveis. Enquanto a China aprendeu a conviver com uma casta de milionários como Jack Ma, e no Vietnã os parques tecnológicos florescem, em Cuba, há apagões o tempo todo e a liderança ainda vê os donos de bares e as pessoas que compram muitos ovos como ameaças.
O fracasso de Cuba não está, então, nas sanções, mas no passado Castrista materializado nas péssimas infraestruturas, no declínio das cidades e na baixa produtividade, mas também na mentalidade da direção que tem muito medo de perder o controle. O regime cubano não está ferrado porque está cercado (na verdade nunca foi, sempre teve sócios, aliados, financiadores e cúmplices, sempre comprou, vendeu, alugou seus médicos e recebeu remessas, turistas e investimentos) está destruído porque não tem capacidade de se reformar, porque está fixada no passado e, até mesmo, fez dessa incapacidade de se transmutar uma fonte de orgulho, uma bandeira: a glorificação da pobreza sagrada, o suposto comunitarismo romântico, a poética decadência das cidades, a estetização da miséria, a retórica da boa pobreza é uma forma de reverter, na narrativa, aquele fracasso civilizacional que não nasceu em Washington, mas em Havana, e é tão cubano quanto Rum, o Tabaco e o Son [4].
[1] Fracasso da meta de 10 milhões de toneladas na Safra açucareira de 1970.
[2] A Lei Helms-Burton restringiu ainda mais os cidadãos dos Estados Unidos de fazer negócios em ou com Cuba, e determinou restrições ao fornecimento de assistência pública ou privada a qualquer governo sucessor em Havana.
[3] Jacobo Arbenz Guzmán foi um político, militar e presidente da Guatemala de 1951 a 1954. Encabeçou uma revolução democrática na Guatemala, e logo virou protetor do governo contra a ala autoritária do exército e, quando presidente iniciou uma reforma agrária. Recusou virar “homem forte” da Guatemala, como exigia o embaixador americano o que levou a que fosse aprovada pelo Eisenhower a Operação PB Success, que causou o derrocamento do Arbenz e uma onda de autoritarismo que liquidou vários governos democráticos e reformistas na America latina.
[4] O Son cubano é um gênero de música e dança que se originou nas terras altas do leste de Cuba durante o final do século XIX. É um gênero sincrético que combina elementos melódicos e instrumentos musicais de origem espanhola e ritmos e instrumentos africanos. Ao longo do século XX a música cubana inseminou todo o caribe dando origem ao movimento musical conhecido como Salsa enquanto que formas, mas tradicionais permaneceram na ilha.