29 Novembro 2021
"A segurança sanitária, sabe-se bem, deve ser posta em campo para se defender dos pobres", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto, 28-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há um zombeteiro significado simbólico na capacidade que o coronavírus mantém intacta, após dois anos, de produzir novos estados de exceção. Desta vez foi a vez da 12ª Conferência Interministerial (CM12) da Organização Mundial do Comércio (OMC) suspensa às pressas devido à variante Omicron B.11.529 identificada na África do Sul nos últimos dias.
Às vésperas do encontro interministerial, uma das etapas destinadas a marcar o próprio futuro da OMC, o patógeno bloqueou tudo, adiando o encontro para uma data a ser definida. Neste cabo de guerra entre a natureza e os assuntos humanos, existe uma grande pedagogia. A natureza sempre vence porque é mais forte.
Mas os humanos ainda não internalizaram essa evidência. Omicron é um nome com o qual teremos de aprender a lidar. A variante carrega "uma constelação incomum de mutações", declarou o ministério da saúde da África do Sul: mais de 30 na proteína spike, diz o Prof. Tulio de Oliveira, diretor do Centro de Resposta a Epidemias e Inovação.
A descoberta é fruto de um excelente trabalho de pesquisa e sequenciamento genômico feito em 22 casos positivos no país, fruto de colaboração com o Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e alguns laboratórios privados. Trata-se de uma variante bem diferente das anteriores, segundo De Oliveira.
“O perfil das mutações sugere uma capacidade significativa de escapar da imunidade da vacina e de aumentar a transmissibilidade”. Na África do Sul, começaram imediatamente a trabalhar para entender as implicações. Várias pessoas tiveram resultados positivos no voo de Joanesburgo para Amsterdã.
Casos foram rastreados na Bélgica, em Israel. O vírus encontra facilidade na incompetência do apartheid vacinal que marca este nosso tempo. A África do Sul é um dos poucos países africanos com um sistema de saúde, embora flanqueado pelo papel um tanto agressivo da indústria privada. Tem uma capacidade científica significativa, desenvolvida a partir de epidemias paralelas que há décadas assolam o país, o vírus HIV / AIDS e a tuberculose, que aqui se manifesta nas mais obstinadas formas de resistência às terapias existentes.
Mas o país já percorreu um longo caminho desde que, 20 anos atrás, 35% da população era soro positiva. A história sul-africana do HIV / AIDS - com passagens escabrosas como o processo de 39 empresas farmacêuticas contra a Lei dos Medicamentos de Nelson Mandela – jogou pelo ar a velha narrativa institucional e hierárquica sobre a saúde. Politizou-a em nível global, entregando protagonismo aos pacientes com HIV / AIDS: seu ativismo para reivindicar o acesso às curas revelou o poder desumano dos acordos comerciais da OMC, a começar pelos monopólios das patentes.
Desde então, a África do Sul se consolidou no cenário internacional com uma visão da sanidade que a tornou uma das campeãs do direito à saúde.
Foi com ciência e consciência que Joanesburgo imediatamente compartilhou a sequência genômica da variante Omicron. Um gesto de responsabilidade epidemiológica, mas também de rara coerência política.
A África do Sul - recorde-se - é o país que, juntamente com a Índia, propôs à OMC, em outubro de 2020, a aplicação de uma cláusula do direito comercial internacional que prevê a suspensão dos monopólios de propriedade intelectual (IP Waiver): o pedido, agora bastante forte pelo consenso internacional, visa favorecer o acesso ao conhecimento na área médica e no uso da ciência, muitas vezes desenvolvida com fundos públicos, para expandir e fortalecer a capacidade produtiva da área farmacêutica para o enfrentamento da pandemia. Não apenas para as vacinas. Trata-se de um dos dossiês mais discutidos da atual negociação comercial, junto com o clima e a reforma da OMC.
A África do Sul também é um dos poucos países do Sul global que acolheu com entusiasmo a proposta do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, de começar a negociação para um tratado pandêmico dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma proposta surpreendentemente apoiada pela indústria farmacêutica e por Bill Gates. Graças à pressão europeia, uma sessão especial da Assembleia Mundial da Saúde começa na próxima segunda-feira. O tratado pandêmico para a preparação e resposta a futuras pandemias ocupa uma posição de destaque nas sedes internacionais de saúde em Genebra, não sem descontentamento. Para vários governos do Sul global, é inoportuna - muitos estão empenhados em combater a infecção com poucos meios e sem vacinas - e para outros trata-se de uma distração do bloco obstinado que a Comissão Europeia opõe à moratória sobre a propriedade intelectual na OMC.
A opinião é compartilhada por competentes analistas no assunto. Além disso, a Europa sempre se opôs aos regimes sanitários vinculantes dentro da OMS. A ideia motriz desse tratado é o empenho por um compartilhamento rápido das informações sobre patógenos, mais cooperação na vigilância e regimes de segurança sanitária mais fortes.
Exatamente o que Joanesburgo fez. Uma pena que a Europa, junto com a Suíça e os Estados Unidos, tenha respondido à transparência sul-africana bloqueando imediatamente todos seus voos. Um sinal preocupante sobre o nem tão imperceptível viés colonialista que subjaz aos esforços de construção da imunopolítica do Ocidente, pós Covid-19.
A segurança sanitária, sabe-se bem, deve ser posta em campo para se defender dos pobres.
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A facilidade do vírus no apartheid vacinal. Artigo de Nicoletta Dentico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU