23 Setembro 2021
"O que está acontecendo ainda hoje com a Covid-19: os ricos têm vacinas enquanto aos pobres deixam as migalhas. Estamos enfrentando um verdadeiro apartheid vacinal", escreve Alex Zanotelli, padre e missionário comboniano no Sudão e no Quênia, jornalista, foi diretor da importante revista Nigrizia, em artigo publicado por Avvenire, 21-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os ministros da saúde do G20 se reuniram em Roma de 5 a 6 de setembro para estudar a possibilidade de estender a vacinação a todos os seres humanos. Muitas esperanças, parcos resultados. O mais grave é que o G20 Saúde rejeitou a proposta da África do Sul e da Índia, apoiada por mais de 100 países, de suspender temporariamente os direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas. Na “Declaração de Roma”, na conclusão do G20 Saúde, encontramos apenas um genérico empenho de enviar vacinas a países pobres e a promessa de apoio financeiro para a campanha da Covax, apoiada pela Organização Mundial de Saúde, Unicef e vários fundações privadas. (Covax prometeu distribuir um bilhão de doses até 2021, mas estas mal serão suficientes para as pessoas em maior risco e o pessoal da saúde). Estamos de volta à caridade, que não funciona neste campo, serve apenas ao jogo das poderosas multinacionais farmacêuticas, justamente a Big Pharma.
Como missionário e como cristão, fico enojado com o egoísmo pago a alto preço pelos empobrecidos do planeta. Isso é o que eu já havia observado em meus doze anos de vivência na favela de Korogocho (Nairóbi) durante a pandemia de AIDS. Na década de 1990, os medicamentos antivirais eram produzidos nos Estados Unidos a um preço proibitivo para os doentes do Sul do mundo, destinados a morrer em poucos anos. Acompanhei na doença e depois na morte, centenas de excelentes jovens, especialmente fantásticas garotinhas. Cada morte foi um tormento para mim porque eu sabia que eles eram vítimas de injustiças. Os abastados se salvavam porque podiam pagar dez mil dólares por dose para viver; em vez disso, os pobres eram marcados para a morte. O nosso é um mundo absurdo, onde o egoísmo é erigido como sistema.
É o que está acontecendo ainda hoje com a Covid-19: os ricos têm vacinas enquanto aos pobres deixam as migalhas. Estamos enfrentando um verdadeiro apartheid vacinal.
Na África, apenas 2% da população foi vacinada.
No Chade apenas 0,2%, no Madagascar 0,7%.
Para os mais de 80 milhões de habitantes do Congo, chegaram apenas 98 mil vacinas.
De uma população africana de 1,3 bilhão, apenas 9,5 milhões foram vacinados.
A lacuna de vacinação entre os dois mundos é assustadora: os países ricos acumularam 90% das doses e nos países empobrecidos nem 1% está vacinado. O Canadá comprou tantas doses que poderia vacinar seus cidadãos cinco vezes. A UE assinou um novo contrato com a Pfizer e a Biontech para mais 1,8 bilhões de doses.
"Isso é um insulto - disse Nick Dearden da Global Justice Now - a todos aqueles que morrem todos os dias de Covid". Estamos testemunhando o triunfo do mercado, o triunfo do lucro. As grandes empresas farmacêuticas (Pfizer, Johnson & Johnson e Astrazeneca), que receberam grande financiamento público para produzir as vacinas, no ano passado distribuíram US $ 26 bilhões a seus acionistas.
Um montante que é suficiente para vacinar 1,3 bilhão de pessoas, ou seja, toda a população da África. “A fome de lucros - advertiu o conhecido economista estadunidense J. Stiglitz - poderia prolongar a pandemia”. De fato, se as vacinações não forem realizadas em todo o mundo, corremos o risco de, em algum canto do planeta, se desenvolverem outras mutações do vírus que podem tornar ineficazes as vacinas disponíveis. “É indispensável - afirma Stiglitz - que as patentes sejam suspensas. Se ficarmos nas mãos de um punhado de empresas que têm capacidade limitada para expandir a produção, nunca conseguiremos ter 10-15 bilhões de doses que são necessárias para vacinar toda a humanidade”. Também precisamos compartilhar tecnologia e know-how com países pobres. Infelizmente, não será fácil para o Congresso dos Estados Unidos ou para o Parlamento Europeu tomar tal decisão, isto é, suspender "pelo menos" temporariamente as patentes.
Isso também ocorre porque a Big Pharma financia legiões de lobistas tanto no Congresso dos EUA quanto no Parlamento Europeu para bloquear tais tentativas. No ano passado, a Big Pharma disponibilizou 36 milhões de euros para pressionar os parlamentares em Bruxelas, onde atuam 290 lobistas. Não podemos aceitar tudo isso porque será pago por milhões de mortes no Sul do mundo.
Mas, no final, nós também seremos atingidos porque o vírus poderia sofrer mutações mais virulentas do que antes. Isso é loucura. “Infelizmente, a saúde tem se tornado cada vez mais um bem de mercado à disposição de quem paga mais - assim nos lembrou nosso amigo Gino Strada em sua última mensagem - Só sairemos desta crise com vacinas para todos. Devemos continuar a lutar para que a saúde continue a ser um direito humano. Ser cuidados é um direito universal e um bem comum, e é conveniente para a sociedade que seja protegido no interesse de todos: é uma responsabilidade pública que não pode ser delegada à iniciativa privada nem ao mercado”.
É um testamento que cabe a nós colocar em prática, se quisermos nos salvar, porque como diz o Papa Francisco: “Estamos todos no mesmo barco”.
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Apartheid vacinal, o egoísmo dos países ricos erigido como sistema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU