08 Fevereiro 2021
O resultado da guerra pela reserva das doses é "o apartheid das vacinas”, alertam cientistas e ativistas de todo o mundo. As nações de renda média e baixa, como Gana e África Subsaariana, não poderão ser vacinadas até 2024. A Uganda pagará pela vacina Astrazeneca três vezes mais que o preço que a Europa paga. E se a estratégia não mudar, além da questão ética, as consequências econômicas e de saúde da reserva serão desastrosas até para os próprios países ricos.
A reportagem é de Madlen Davies, Rosa Furneaux e Laura Margottini, do The Bureau of Investigative Journalism, uma iniciativa sem-fins-lucrativos criados por jornalistas do Reino Unido, publicada por Il Fatto Quotidiano, 07-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O custo da falta de cobertura global de vacinação é estimado por um think tank estadunidense, a Rand corporation, em US $ 1,2 trilhão por ano. As nações de alta renda perderiam 119 bilhões por ano. “Os países ricos têm vínculos comerciais globais - explica Marco Hafner, um dos autores do estudo -, a desaceleração econômica dos países mais pobres causada pela pandemia terá um efeito cascata em todo o mundo”. Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo: este é o mantra que cientistas e ativistas de todo o mundo vêm repetindo há meses. “O maior perigo que a humanidade enfrenta passa despercebido: apenas 25 pessoas foram vacinadas na África”, declarou Alberto Mantovani, diretor científico do Instituto Clínico Humanitas de Milão, em entrevista ao Avvenire. “Excluir os países pobres é escandaloso: o vírus não se detém nas fronteiras e as duas variantes mais temidas hoje vêm da África do Sul e da selva brasileira”. Isso equivale a dizer que se o vírus não for combatido globalmente continuará a circular desenvolvendo novas variantes, talvez mais letais e resistentes às vacinas, que retornarão aos países ricos como um bumerangue.
A AstraZeneca venderá sua vacina a preço de custo para o hemisfério Sul. Na Índia, o Serum Institute of India está gerindo as maiores remessas das vacinas da AstraZeneca e Novavax. O Serum Institute exporta sua versão da vacina AstraZeneca - chamada Covishield - para 92 dos países mais pobres do mundo, mas pelo preço que quer: na Índia a vende a US $ 3 a dose, US $ 5 para a África do Sul e Brasil, US $ 7 para a Uganda. A UE pagou US $ 2 pela vacina AstraZeneca. Incluindo o transporte, vacinar uma pessoa custará a Uganda $ 17. Nem a AstraZeneca nem o Serum Institute responderam aos nossos pedidos de comentários sobre o assunto. As vacinas Pfizer e Moderna são muito mais caras. A UE pagou por elas mais de $ 14. Os países de baixa renda nunca poderão pagar por isso. “Reservamos doses de fornecimento a países de baixa e média renda a um preço sem fins lucrativos”, respondeu a Pfizer. Um estudo da Northwestern University (EUA) calculou os efeitos sanitários dessa desigualdade: se os primeiros 2 bilhões de doses de vacinas Covid fossem distribuídas proporcionalmente com base no tamanho da população de cada nação, as mortes no mundo diminuiriam em 61%. Mas se as doses forem monopolizadas pelos 47 dos países mais ricos, as mortes serão reduzidas em apenas 33%.
Até agora, 12,7 bilhões de doses de vacinas foram compradas, o suficiente para 6,6 bilhões de pessoas. Destas, 4,2 bilhões são destinadas aos países mais ricos - que têm, no total, uma população de apenas 1,2 bilhão de cidadãos - com opção de compra de outros 2,5 bilhões: portanto, mais da metade do valor total das doses disponíveis. O Canadá comprou doses para vacinar cada canadense 5 vezes. EUA, Reino Unido, Europa, Austrália, Nova Zelândia e Chile têm desses para vacinar seus cidadãos pelo menos duas vezes (incluindo as vacinas ainda não aprovadas).
Em Israel, mais de um terço da população recebeu a primeira dose e mais de um quinto as duas. Os territórios palestinos, por outro lado, ainda aguardam a chegada das vacinas da Covax, iniciativa da Gavi Vaccine Alliance (organização para o acesso a vacinas para nações pobres) para garantir a vacina a quem está sob maior risco de Covid no mundo. Israel anunciou recentemente que vai transferir 5.000 doses para imunizar os profissionais de saúde palestinos.
A iniciativa Covax visa distribuir 2 bilhões de doses, das quais 1,3 bilhão para 92 países de baixa e média renda até o final de 2021, o suficiente para inocular 20% da população de cada país: profissionais de saúde e idosos. O objetivo foi julgado inadequado pelos especialistas, mas nem mesmo se sabe se poderá ser respeitado. Devido a atrasos no fornecimento, países como Canadá e Nova Zelândia também pediram para receber as vacinas da Covax.
Muitas nações de baixa e média renda, entretanto, buscaram acordos com as grandes farmacêuticas, até agora obtendo apenas 32% do fornecimento global para cobrir o que é uma área do mundo onde vive 84% da população.
As empresas farmacêuticas agora precisam modificar sua vacina para que possa ser produzida em escala industrial. A AstraZeneca licenciou a produção para dez empresas no Reino Unido, Índia, Brasil, Japão, Coreia do Sul, China, Austrália, Espanha, México e Argentina, bem como para suas próprias fábricas na Europa. Quase todos estão autorizados a produzir apenas para uma determinada área geográfica, mas ainda é uma tentativa de produzir em escala global. Outros, porém, só produzem para o mercado ocidental.
Public Citizen, um think tank dos EUA, descobriu que apenas 2% do fornecimento global da Pfizer / Biontech foi concedido à Covax e acredita-se que a Moderna vai priorizar as nações de alta renda. Assim, a América Latina, Ásia e Oriente Médio se voltaram para as vacinas russas e chinesas. Mais de 50 países se inscreveram para a vacina russa Sputnik V. A China já tem 30 milhões de doses de suas vacinas para seus cidadãos, mas também para a Indonésia e a Turquia. Prometeu aos países africanos que estariam entre os primeiros a se beneficiar, mas não está claro se elas chegaram.
Com o fornecimento inadequado devido tanto a atrasos e como desigualdade, as empresas estão sendo solicitadas a abrir mão das patentes. Mas os EUA, Canadá, Austrália, Europa e Reino Unido são todos contra a liberação das patentes. Funcionários da indústria farmacêutica disseram ao Bureau of Investigative Journalism que não há capacidade de produção sobressalente, nem técnicos treinados suficientes, portanto a suspensão não aumentaria a produção. Dois meses após o início da pandemia, a OMS havia estabelecido um mecanismo para compartilhar a propriedade intelectual e os dados, de forma voluntária. Nenhuma empresa de vacinas participou. A OMS então tentou novamente, pedindo aos produtores que priorizassem a Covax e insistindo com os países que pedem doses além de suas necessidades a doá-las para a Covax. Mas quanto mais atrasos ocorrem, mais essa solução evapora. Apenas a Noruega, que registrou menos de 600 mortes de Covid, até agora doou doses para a Covax. Em muitas áreas do hemisfério Sul, "a situação é muito tensa", disse Ireen Mutombwa, coordenador de gestão nacional de desastres na África do Sul da Cruz Vermelha. “A vida de todos está em risco, especialmente se você estiver envolvido no trabalho comunitário”, como os profissionais de saúde. Além disso, "quanto mais circulação, mais oportunidades existem para o vírus sofrer mutação", disse ao Bureau Marie-Paule Kieny, diretora de pesquisa do Inserm, o instituto de saúde pública francês. As cepas mutantes podem causar mais mortes diretas em países que não conseguem se vacinar. E podem tornar as vacinas menos eficazes com o tempo. Um efeito bumerangue potencialmente desastroso que nenhuma carteira, por mais rica que seja, poderia evitar facilmente.
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O apartheid das vacinas: 52% das doses para os países ricos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU