10 Mai 2021
"Biden visa apenas as patentes, ou seja, um único tipo de propriedade intelectual, e visa apenas as vacinas, ou seja, o principal dispositivo de imunopolítica que está sendo construído nas sedes internacionais, ignorando todo o resto", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto, 08-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O efeito da iniciativa do governo Biden sobre as vacinas é tão contundente que a imprensa agora fala em todos os lugares sobre Us Waiver, como se a ideia da suspensão das patentes tivesse nascido naquele lado do Atlântico. Nos circuitos da sociedade civil historicamente comprometida sobre o acesso aos medicamentos essenciais, concorda-se que é um divisor de águas, um ponto sem volta em todos os processos de negociação em curso.
Do ponto de vista simbólico, a suspensão das patentes sobre as vacinas chega do país que dirigiu e orquestrou a inserção de propriedade intelectual na negociação Gatt em 1986, que havia excluído aquele dossiê das tratativas sobre os acordos comerciais. Duas multinacionais americanas, IBM e Pfizer, resolveram nisso com uma operação de lobby que entrou para a história. Agora será difícil dizer que a suspensão de patentes não é uma opção viável, como nos vêm repetindo há meses. Além disso, o tema está na ordem do dia nos mais altos níveis.
Na Europa, o dossiê sobre a renúncia à propriedade intelectual foi finalmente tirado das mãos dos burocratas da Comissão propensos ao lobby farmacêutico, para ser definitivamente transferido para governos e parlamentos. Inevitavelmente, Biden desentocou os líderes europeus com um efeito dominó ambíguo e confuso, nesta União capaz apenas de revelar fissuras e ambiguidades, entre Alemanha e Áustria que tomam distâncias de Biden para não colocar em discussão os acordos da OMC. Enquanto Irlanda, França, Bélgica, Itália e Espanha expressam seu apoio à suspensão das patentes. A posição francesa, entretanto, "é a do presidente Macron", dizem fontes oficiais em Paris, incertas sobre o que fazer. E na Itália, a posição dos ministros Speranza e Di Maio também parece interpretar aquela do Presidente Draghi. Agora os governos europeus precisam mostrar a cara, a partir da cúpula social do Porto, nestas próximas horas.
Mesmo na OMC, a brisa da iniciativa dos EUA deu um leve dinamismo à negociação em impasse há sete meses. O primeiro-ministro australiano a definiu como uma "notícia formidável", e a Rússia de Putin também decidiu emular Washington, comprometendo-se com a moratória sobre as patentes das vacinas russas. Noruega e Suíça permanecem firmes em suas posições, enquanto os embaixadores da Índia e da África do Sul aguardam com interesse a nova versão do waiver que será apresentada pela diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala no final do mês, às vésperas do Conselho dos Trips. Mas parece muito provável que a decisão final sobre o tema só seja tomada na 12ª Conferência Interministerial da OMC (30 de novembro a 3 de dezembro de 2021). Um prazo de tempo preocupante, devido aos impactos da pandemia. Mas uma facilidade que, por sua vez, deixa o flanco aberto à pressão do lobby farmacêutico, que passou imediatamente à ação após o primeiro choque ante as declarações da secretária de Comércio dos Estados Unidos, Katherine Tai.
Por enquanto, parece infundado o temor de que Índia e África do Sul possam aceitar soluções restritivas em relação ao pedido de derrogação apresentado por eles em outubro passado. Mas no jogo geopolítico que está se configurando no segundo ano da pandemia, a posição da Índia e da África do Sul é uma crista potencial de criticidade que requer forte monitoramento e uma ação de acompanhamento por parte da sociedade civil e da opinião pública cada vez mais sensibilizadas sobre o tema, conforme o apartheid da vacinação toma forma em escala mundial - até o momento, a iniciativa Covax enviou 54 milhões de doses de vacinas para 121 países. Apenas 0,3% da população recebeu a primeira dose no sul do globo. Uma mudança de paradigma, mas em qual direção? A multiplicação das propostas de suspensão de patentes cria uma confusão objetiva nesta fase, o que significa que o tempo de otimismo imediatamente dá lugar a uma grande atenção e cautela sobre os próximos passos das forças em campo. É preciso reiterar: existe uma substancial diferença de perspectiva na proposta estadunidense em relação àquela da Índia e da África do Sul, hoje apoiada por 118 países na OMC. Seria um cenário totalmente indesejável se o primeira suplantasse a segunda. Biden visa apenas as patentes, ou seja, um único tipo de propriedade intelectual, e visa apenas as vacinas, ou seja, o principal dispositivo de imunopolítica que está sendo construído nas sedes internacionais, ignorando todo o resto.
A dramática situação da Índia e Brasil, por outro lado, mostra que grande parte do mundo, após 17 meses de pandemia, ainda carece de dispositivos hospitalares indispensáveis. No entanto, não excluo que a suspensão de patentes de vacinas seja uma resposta preocupada de Biden ao diretor-geral da OMS que, na coletiva de imprensa em 3 de maio, havia declarado que a OMS contava mais casos globais de Covid19 nas duas semanas anteriores do que nos primeiros 6 meses da pandemia. Biden amplia as malhas de acesso às vacinas porque entendeu que as variantes são uma ameaça séria, e é impossível dizer que está errado. Por outro lado, a proposta de derrogação made in USA parece interessar mais as vacinas adenovírus da AstraZeneca e Johnson & Johnson, ou aquelas que ainda estão na linha de pesquisa, para as quais as patentes têm uma relevância objetiva.
O caso das vacinas de mRNA é diferente: para estas, a derrogação de propriedade intelectual mais importante diz respeito ao know-how da nova tecnologia e aos dados sobre os processos de elaboração da vacina. Afinal, as vacinas de mRNA têm uma cadeia de frio extremamente exigente e, portanto, menos possibilidades de uso nos contextos dos países do Sul do mundo, onde não existem condições logísticas de sistemas de saúde adequados. As próximas semanas serão decisivas, entre a cúpula do G20 sobre a saúde global, a assembleia da OMS e o G7. O jogo pode ter mudado, mas é sempre o mesmo.
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No interregno, a ofensiva da Big Pharma. Artigo de Nicoletta Dentico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU