27 Outubro 2021
"Depois de nove meses do governo Biden, o Vaticano agora está se perguntando que tipo de promessas o segundo presidente católico estaria apto a manter sobre mudança climática, imigração e (especialmente depois de se retirar do Afeganistão) multilateralismo nas relações internacionais. Não está claro se, e em que medida, a administração Biden estará interessada ou será capaz de recuperar a posição de centralidade moral e política dos Estados Unidos aos olhos do novo Vaticano global. O papado de Francisco abandonou conspicuamente uma relação privilegiada com o mundo ocidental, da qual, no entanto, não pode prescindir (na questão ambiental e outras)", escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, professor na Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Huffington Post, 26-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dia 29, encontro no Vaticano. Estão em jogo os futuros equilíbrios de poder na Igreja em nível global.
Em 29 de outubro, Papa Francisco recebe, em audiência no Vaticano, o presidente Joe Biden e a primeira-dama, Jill Biden. O encontro do Papa Francisco com o segundo presidente católico dos Estados Unidos ocorre em um momento complicado para ambos. Em particular, a popularidade de Biden é afetada negativamente pela lentidão e dificuldade das reformas em relação com as enormes expectativas criadas pela eleição.
São dois líderes muito diferentes de seus antecessores, que deram vida ao primeiro encontro na história entre um presidente católico dos Estados Unidos e o bispo de Roma. Em 2 de julho de 1963, quando John F. Kennedy (JFK) foi recebido no Vaticano, o presidente de 46 anos olhava com confiança para campanha eleitoral de 1964 para a reeleição. Mas a presidência de Kennedy seria interrompida pelo assassinato em Dallas alguns meses depois, em 22 de novembro de 1963. Paulo VI havia sido eleito papa poucos dias antes, em junho de 1963; a Igreja Católica estava vivendo com a opinião pública estadunidense e mundial aquela extraordinária lua de mel que foi o Concílio Vaticano II (1962-1965), iniciado por seu predecessor, João XXIII, em outubro de 1962.
O encontro entre Paulo VI e JFK aconteceu no contexto de uma nova era de diálogo entre a Igreja Católica e o mundo global, e de uma nova proximidade entre a Santa Sé e os EUA de um ponto de vista, inclusive, teológico: em 1965, o Vaticano II aprovou a nova doutrina sobre a liberdade religiosa, especialmente graças à contribuição direta do teólogo jesuíta estadunidense John Courtney Murray (que só uma década antes havia sido condenado ao silêncio pela Cúria Romana).
Essa proximidade transatlântica entre o Vaticano e os Estados Unidos está agora sendo redefinida, senão questionada, na Pangeia, a possível deriva dos continentes, que é o catolicismo global contemporâneo. A partir de sua eleição em 2013, Francisco, o primeiro papa que não vem da área mediterrânea ou da área euro-atlântica setentrional, reorientou as relações entre o papado e a ordem política internacional: o acordo de 2018 sobre a nomeação de bispos com o governo da República Popular da China; o esforço para desvincular o catolicismo do Ocidente e mediar novas relações dentro do Islã entre sunitas e xiitas (especialmente com a viagem ao Iraque em março de 2021); o apoio a movimentos populares radicais na América Latina. É um balanço complexo, não isento de críticas, se olharmos para a situação da América Latina, por exemplo. Mas não há dúvida de que a nova orientação geopolítica da Santa Sé, especialmente sobre a China, deixa os círculos diplomáticos estadunidenses perplexos e preocupados.
O fato mais extraordinário do contexto da audiência de 29 de outubro entre Biden e Francisco no Vaticano é a mistura explosiva entre política partidária e lutas internas dentro da Igreja Católica nos Estados Unidos, nesta nova fase das "guerras culturais" entre liberais e conservadores. Essa audiência no Vaticano ocorre apenas duas semanas antes da assembleia de outono da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, em Baltimore, que discutirá um documento sobre a Eucaristia que alguns bispos gostariam de aprovar a fim de excluir políticos católicos a favor do aborto legal, e em particular o presidente Joe Biden e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, de receberem a comunhão na missa.
Deve-se notar que o Papa Francisco e o Vaticano, embora mantendo o ensinamento católico tradicional sobre o aborto, estão tentando proteger, por meio de mensagens inequívocas, o acesso do católico Joe Biden aos sacramentos do ataque dos bispos estadunidenses. No início de maio de 2021, foi divulgada uma carta do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Luís Francisco Ladaria, para o presidente da USCCB, José Gomez, na qual o cardeal escrevia que "seria enganoso dar a impressão de que o aborto e a eutanásia por si só são as únicas questões graves da doutrina moral e social católica”.
O próprio Papa Francisco, respondendo a uma pergunta durante a coletiva de imprensa no avião que voltava da Eslováquia em 15 de setembro de 2021, disse que nunca negou a comunhão a ninguém. No dia 9 de outubro, o Papa Francisco recebeu Nancy Pelosi no Vaticano, no contexto das iniciativas para a preparação da Conferência COP26 sobre a luta contra as mudanças climáticas.
Essas intervenções não mudaram, pelo menos até agora, a atitude dos bispos estadunidenses mais ativos nessa campanha contra a presidência de Biden. A maioria pró-republicana e anti-Francisco dos bispos dos EUA está tentando não apenas criar embaraços para o presidente Biden, mas também intimidá-lo. Aconteça o que acontecer com o documento que os bispos discutirão em Baltimore em meados de novembro, a própria discussão já criou algumas áreas do país (por exemplo, São Francisco e Denver) onde o presidente católico dos Estados Unidos correria o risco de um acidente com a igreja local caso se apresentasse para comunhão na missa, visto a posição pessoal expressa em público através da mídia pelos bispos daquelas dioceses.
Mas também existe o risco de padres em várias dioceses tomarem iniciativas pessoais contra parte de seus fiéis que votam nos democratas, sentindo-se moralmente legitimados pela campanha em curso contra Biden e Pelosi. O paradoxo é o de um Vaticano que, para salvar a Igreja Católica dos Estados Unidos da involução sectária em curso, deve proteger do ataque dos bispos dos Estados Unidos o acesso aos sacramentos de um presidente católico eleito por um Partido Democrata que nos últimos anos radicalizou-se em uma direção libertária sobre a questão do aborto. A política do Vaticano em relação a Biden é uma questão de proteger a catolicidade da Igreja Católica nos Estados Unidos, não um endosso às políticas desse governo.
Mas também faz parte de uma história, que começa logo após o conclave de 2013, de hostilidade com a maioria dos bispos estadunidenses. Um elemento-chave a lembrar sobre a maioria pró-republicana dos bispos dos Estados Unidos é que um bom número deles apreciou, ou não respondeu, às afirmações extraordinariamente graves feitas na imprensa pelo ex-núncio pontifício nos Estados Unidos entre 2011 e 2016 (e apoiador de Trump, mesmo após a recusa do 45º presidente em aceitar o resultado das eleições de novembro de 2020), Carlo Maria Viganò, que, em agosto de 2018, tentou destituir o Papa Francisco com acusações não comprovadas e teorias de conspiração (desde 2020, Viganò está tentando direcionar aquelas teorias da conspiração para a causa no-vax). Entre os membros do episcopado estadunidense que agora estão tentando excluir Joe Biden da Eucaristia estão os mesmos que olharam favoravelmente não só para a presidência de Trump, mas também para o que foi efetivamente uma fracassada tentativa de golpe de estado contra o Papa Francisco naquele agosto de 2018.
Essa complexa triangulação entre papado, bispos dos Estados Unidos e presidência Biden vê outras forças no campo. A Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja maioria conservadora é dominada por católicos nomeados por presidentes republicanos, estaria pronta a se pronunciar nos próximos meses sobre casos de aborto a fim de revogar a sentença “Roe v. Wade” de 1973 e desencadear o que o presidente Biden chamou de “um caos constitucional”. Semelhante à maioria dos bispos dos EUA, os juízes católicos conservadores da Suprema Corte expressam uma cultura teológica que está em forte contraste, de maneiras diferentes, tanto do presidente Biden quanto do Papa Francisco. A Conferência episcopal católica e a Suprema Corte de maioria republicana compartilham a mesma sorte: julgados por boa parte dos estadunidenses não mais acima dos partidos, mas como forças complementares em relação ao Partido Republicano conquistado por Donald Trump.
A eleição do presidente Biden em novembro de 2020 foi saudada no Vaticano com um perceptível suspiro de alívio, após os quatro anos muito difíceis do governo Trump, caracterizado por tensões sem precedentes entre a Casa Branca e o papado. Mas, depois de nove meses do governo Biden, o Vaticano agora está se perguntando que tipo de promessas o segundo presidente católico estaria apto a manter sobre mudança climática, imigração e (especialmente depois de se retirar do Afeganistão) multilateralismo nas relações internacionais. Não está claro se, e em que medida, a administração Biden estará interessada ou será capaz de recuperar a posição de centralidade moral e política dos Estados Unidos aos olhos do novo Vaticano global. O papado de Francisco abandonou conspicuamente uma relação privilegiada com o mundo ocidental, da qual, no entanto, não pode prescindir (na questão ambiental e outras).
Do lado eclesial, resta saber se o Papa Francisco representa o início de uma nova era na relação entre o papado e a modernidade global - uma atitude mais dialógica e menos ideológica -, ou se é apenas um interlúdio antes de um possível retorno, com a eleição do sucessor, ao status quo de uma abordagem mais conflituosa a partir de “valores não negociáveis”. Após a cirurgia no abdômen de Francisco em julho passado, recomeçaram rumores sobre manobras de preparação do próximo conclave e o próprio papa admitiu em uma entrevista publicada pela mídia do Vaticano que alguns cardeais não veem a hora de substituí-lo.
A forte oposição ao papado de Francisco, que tem sua capital política, midiática e financeira nos Estados Unidos, poderia influenciar o futuro equilíbrio de poder na Igreja em nível global, mesmo antes do próximo conclave. O conflito em curso nos corredores do poder do catolicismo estadunidense e a resistência das forças anti-Francisco - a conferência episcopal, a Suprema Corte, a rede dos think tank conservadores, os grandes doadores da filantropia católica - poderiam dizer muito sobre o próximo futuro do catolicismo. Um fracasso do pontificado de Francisco e da tentativa de libertar o catolicismo das garras do fundamentalismo teológico e do autoritarismo político poderia ser um sinal perturbador para aqueles que pensavam que a presidência de Trump e o catolicismo trumpiano fossem apenas um parêntese.
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Biden e o Papa – a lista negra da Igreja nos Estados Unidos e o futuro do catolicismo. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU