22 Janeiro 2021
Em 1960, acompanhando a ascensão à presidência do primeiro católico, John Kennedy, suspeito em grandes setores da opinião pública protestante porque a Igreja Católica parecia limitar sua autonomia, o padre jesuíta John Courtney Murray publicou We Hold These Truths - Catholic Reflections on the American Proposition, uma coleção de seus próprios escritos.
Noi crediamo in queste verità
(Brescia, Morcelliana 2021, p. 324, euro 28)
Nele, a partir do direito constitucional estadunidense, propunha assumir plenamente a liberdade religiosa como princípio a ser valorizado e não como um mal a ser tolerado. Kennedy também se inspirou em Murray para um famoso discurso em Houston naquele mesmo ano, que teve particular ressonância política e eclesial, mesmo anos depois. A primeira publicação italiana do texto (Morcelliana, 1965) pretendia acompanhar os trabalhos do Concílio Vaticano II e, de fato, teve uma influência decisiva na Declaração conciliar Dignitatis humanae, também graças às relações de longa data do autor com Paulo VI.
Hoje, em conjunto com a ascensão à presidência de Joe Biden, o segundo católico depois de Kennedy, uma nova edição está sendo publicada (Brescia, Morcelliana 2021, p. 324, euro 28), com uma premissa e uma nota biográfica e bibliográfica de Stefano Ceccanti, na certeza de que algumas intuições básicas do texto e da Declaração ainda possam ter um significado. Na primeira parte da introdução, Ceccanti analisa o desenvolvimento do pensamento jesuíta, sempre ancorado em sólidas raízes teológicas. Em seguida, na segunda parte, da qual publicamos um excerto aqui, ele ilustra as influências do direito constitucional dos Estados Unidos sobre a Dignitatis humanae.
O texto de Stefano Ceccanti, deputado do Partido Democrata e constitucionalista, é publicado por L'Osservatore Romano, 20-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O prefácio de Dignitatis humanae, embora com linguagem eclesial, tematiza em chave constitucionalista o tema da imunidade à coerção, o papel limitado do Estado e a extensão do livre exercício da liberdade religiosa com um léxico evidentemente emprestado da Primeira Emenda da Constituição dos EUA e admite explicitamente de maneira não usual um certo grau de descontinuidade em relação à doutrina anterior, "da qual tira novos elementos em constante harmonia com os já possuídos". Essas afirmações na relação com o Estado equilibram-se no plano da relação entre a pessoa, a verdade e a Igreja “com o dever moral dos indivíduos e das sociedades para com a verdadeira religião e com a única Igreja de Cristo”.
A questão dos limites que os poderes públicos podem impor ao exercício da liberdade religiosa também é definida no ponto 7 de uma forma que está em sintonia com a orientação estadunidense: o Estado não tem o monopólio do bem comum, os limites que ele pode estabelecer baseiam-se apenas na 'ordem pública ', uma noção muito mais restritiva, de acordo com cânones de necessidade e de proporcionalidade. Além disso, nem a política nem o Estado são vistos pelo documento específico sobre as relações Igreja-mundo, a Constituição pastoral Gaudium et spes, especificamente nos capítulos finais da Primeira Parte e, portanto, nos parágrafos 74 e 75, como detentores de um monopólio do bem comum. No entanto, é o número 6 que consegue pontualmente a reviravolta da tese leoniana.
Enquanto o citado trecho da Immortale Dei rezava: "Se a Igreja julga não ser lícito conceder aos diversos cultos religiosos a mesma condição jurídica que compete à verdadeira religião, também não condena aqueles governos que, por alguma situação grave, visando obter um bem ou prevenir um mal, possam de fato tolerar vários cultos em seu Estado”, ora n. 6 de Dignitatis humanae afirma: “Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa”.
A segunda parte da Declaração passa então a um perfil mais puramente teológico, utilizando também o já citado argumento das ervas daninhas, tanto tomado como citação bíblica quanto em relação à Alocução de Pio XII de 1953.
O tema constitucional reaparece na Conclusão, elogiando genericamente alguns textos constitucionais e referindo-se à Declaração da ONU de 1948 por meio de uma citação da Pacem in terris de João XXIII de 1963 (parágrafo 75). No mais, aquela encíclica já havia marcado várias aberturas na direção que depois foi percorrida pela Dignitatis humanae. Não só pelo tom mais aberto sobre o tema específico da liberdade religiosa, mas porque, de forma mais geral, como é bem sabido, entre os princípios da doutrina social cristã coloca não só os clássicos verdade, justiça e amor, mas também liberdade (ver em particular o parágrafo 18).
Obviamente, há uma ligação lógica entre as duas partes do documento: qual visão eclesiológica permite mover-se de forma tão aberta sobre o plano jurídico, dando relevância de forma indutiva a uma experiência histórica, aquela estadunidense, na qual os católicos eram minoria? Por que é possível tirar de uma experiência daquele tipo, de diálogo entre várias minorias religiosas, "novos elementos", como diz a introdução, capazes de enriquecer a doutrina? Não é por acaso que o próprio proêmio aqui repropõe a fórmula já presente na Constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium (n. 8), a saber, que "a verdadeira religião ... subsiste na Igreja católica e apostólica". Consideráveis debates ocorreram sobre a utilização do termo "subsiste" no lugar de outros mais imediatos sobre a coincidência da verdade com aquela proposta pela Igreja Católica, ora acentuando ora reduzindo o impacto da novidade da fórmula. Afora essas diversidades interpretativas, permanece o fato de que o verbo subsistir pretende expressar uma visão não exclusivista da verdade. É possível, portanto, discutir se as fórmulas da primeira parte da Declaração, mais deslocada para o conceito constitucional de imunidade à coerção, se combinem mais ou menos acertadamente com aquelas teológicas da segunda, mas o proêmio nos convida a ler juntos a valorização da liberdade no Estado com uma certa valorização do pluralismo religioso e civil.
A possível tensão entre as duas partes existe porque objetivamente era mais fácil construir um amplo consenso sobre a ideia constitucional de imunidade à coerção do que sobre uma abordagem teológica relativa à positividade da liberdade religiosa em si, visto que, para além da liberdade, a Igreja Católica tem a convicção de ser portadora da verdade, de ter, em todo o caso, a percepção mais adequada da verdade em comparação com outras experiências religiosas.
Como se sabe, o consenso sobre a primeira parte, superando a tese do Estado católico, foi relativamente simples porque a abordagem constitucional estadunidense de Murray e Maritain, que permitia reportar-se também à primeira experiência de um presidente estadunidense católico, era acompanhada pela experiência histórica das democracias cristãs dos principais países europeus, que haviam demonstrado a fecundidade concreta do encontro entre o cristianismo e a democracia, e aquela dos pais da Europa de Leste, a começar pela Polônia, para quem era vital defender a força social da Igreja da invasão dos estados socialistas.
Por outro lado, era mais difícil encontrar fórmulas claras e compartilhadas sobre a segunda parte, porque a recusa do exclusivismo na posse da verdade devia ser conciliada com a afirmação de um papel significativo da Igreja. Isso é demonstrado precisamente pelas tensões conhecidas no debate interpretativo subsequente sobre o verbo "subsistir" em comparação com a aceitação pacífica da imunidade à coerção. Ninguém, a não ser pequenas franjas tradicionalistas, voltou a repropor modalidades confessionalistas na relação entre Estado e igrejas, mas, no entanto, em nome do livre exercício da liberdade religiosa pela Igreja Católica, a retórica anti-relativista muitas vezes foi proposta em nome de abstratos princípios não negociáveis, aos quais conformar a legislação civil, retórica que mais do que anti-relativista era, na realidade, anti-pluralista. De fato, são raras as posições relativistas no debate público, aquelas pelas quais as posições na substância se equivalem e o ordenamento deve, portanto, assumir a mais clara e mais específica neutralidade. A maioria dos conflitos está ligada ao pluralismo, à presença de várias linhas de fratura a respeito das quais os decisores políticos podem e devem encontrar formas de síntese.
Então, em poucas palavras, quais foram as consequências práticas dessa abordagem no plano da evolução constitucional comparada nas democracias consolidadas e naquelas que se afirmaram após 1989?
Realizou-se uma abertura dupla e recíproca.
Por um lado, o impulso direto da Declaração levou ao desmantelamento das normativas inspiradas em resíduos confessionalistas (Concordata italiana de 1929 e espanhola de 1953 in primis); por outro lado, o efeito indireto foi o de minar, a partir da Conferência de Helsinque de 1975, as normativas então socialistas inspiradas na lógica de uma separação hostil.
Por outro lado, uma lógica confessionalista substancial persiste no mundo islâmico, onde continua a ser concebível no máximo apenas uma limitada tolerância religiosa.
Além dessa persistência, algumas abordagens internas da Igreja Católica têm tentado neutralizar o significado inovador da Declaração, considerando-a substancialmente datada porque teria servido sim, no momento, a limitar as reivindicações antirreligiosas dos países socialistas e para liquidar antigos confessionalismos, mas mais tarde teria se revelado fraca em comparação com as novas formas de liberalismo e relativismo nos países ocidentais, a respeito das quais agora seria uma questão de contrapor a objetividade da verdade de acordo com o entendimento de Igreja Católica, conforme proposto por exemplo por Bruno Dufour em um importante ensaio na conceituada revista "Communio" de novembro-dezembro de 1995, relendo o pontificado de João Paulo II em tal chave.
Ora, cada documento é também filho do seu tempo e é óbvio que uma Declaração desse tipo, se fosse reescrita hoje, poderia provavelmente ter solicitações diferentes e maiores em alguns pontos e também é evidente que a Igreja Católica não pode aceitar passivamente qualquer evolução cultural. No entanto, cabe se questionar: a valorização do pluralismo que levou Murray a intitular seu livro usando a palavra verdade no plural, na esteira da Declaração da Independência e do otimismo teológico que permeia o início de Dignitatis humanae têm um valor historicamente contingente ou, em vez disso, mantêm firme seu valor de estrela fixa para a sociedade e para a Igreja? A releitura de Murray ajuda a se convencer dessa segunda opção.
Sem Murray teria sido impossível superar o duplo padrão a que conduzia a tese do Estado cristão (confessionalismo onde havia maioria e pedido de liberdade onde havia minoria), explicitamente reivindicado pelo cardeal Ottaviani no discurso de 1953 acima mencionado ("Ouvimos a objeção: vocês sustentam dois critérios ou normas de ação diferentes, de acordo com o que lhes convêm ... Pois bem, justamente dois pesos e duas medidas devem ser usados: um para a verdade, o outro para o erro") e que expôs Kennedy à acusação de querer uma hegemonia católica em caso de vitória e, portanto, teria sido impossível escrever com clareza na encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti: “Como cristãos pedimos que, nos países onde somos minoria, nos seja garantida a liberdade, assim como nós a favorecemos para aqueles que não são cristãos onde são minoria” (n. 279).
Quem sabe se as ideias de Murray, no momento em que o católico Joe Biden assume a presidência da mais importante democracia consolidada do mundo, não sejam mais uma vez inspiração para acompanhar a evolução da Igreja Católica, da sociedade e da política, nos EUA e em outros lugares, depois de tantos mal-entendidos e enrijecimentos do período anterior.
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Nós acreditamos nessas verdades. O pensamento de John Courtney Murray. Artigo de Stefano Ceccanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU