07 Fevereiro 2019
Uma maneira de medir a real natureza das lutas pela liberdade religiosa no mundo islâmico é o tipo de pessoa que apareceria nos Emirados Árabes Unidos nos últimos três dias para se unir ao Papa Francisco e ao Grande Imã de Al-Azhar, no Egito, para um imenso hino inter-religioso à paz, ao amor e à tolerância.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 06-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Havia mais de 700 líderes religiosos à disposição, e Tahir Mahmood Ashrafi, um renomado clérigo muçulmano do Paquistão, é um bom exemplo do tipo de multidão que o evento atraiu.
Ashrafi é conhecido como um clérigo “liberal” no seu país natal, o tipo de líder religioso que condena o extremismo e defende a tolerância e a aceitação, e que foi premiado com uma honraria presidencial pela defesa da paz e dos direitos humanos. Esses compromissos são tão reais que recentemente houve pressões no Conselho Ulema do Paquistão, o principal órgão de clérigos islâmicos no país, para expulsá-lo e substituí-lo por alguém mais tradicional.
Certamente, Ashrafi disse todas as coisas certas em Abu Dhabi em termos dos pontos oficiais do evento.
“Todos os líderes religiosos hoje estão dizendo que a religião não tem nada a ver com o extremismo e o terrorismo”, disse ele.
“Eu acho que os Emirados Árabes Unidos obtiveram uma grande vitória, porque hoje, dos Emirados Árabes Unidos para o mundo inteiro, está sendo enviada uma mensagem de que somos muçulmanos, cristãos, judeus e outras pessoas religiosas, unidas pela fraternidade de seres humanos contra aqueles que usam o nome da religião para a sua causa pessoal e para as necessidades pessoais”, afirmou.
Tudo isso é encorajador, oferecendo um exemplo clássico da “outra face” do Islã.
No entanto, até mesmo um clérigo tão esclarecido quanto Ashrafi defendeu as notórias leis de blasfêmia do seu país, que preveem sentenças de morte por ofensas percebidas contra personalidades, textos e crenças religiosas – e o que é mais surpreendente é o porquê.
“Por causa das leis da blasfêmia, milhares de pessoas foram salvas”, insistiu Ashrafi. “Se a lei não existisse, eu digo a você, é possível que eu falasse uma blasfêmia e você me matasse, ou, se você fizesse isso, eu lhe matasse.”
Ele citou o famigerado caso de 2012 de uma garota cristã chamada Rishma, que tinha 14 anos na época e que sofre de uma deficiência mental. Ela foi presa de acordo com as leis da blasfêmia depois de relatos de que ela havia queimado páginas de um Alcorão e, teoricamente, enfrentado a execução. Depois que o caso foi revisado, e à luz da sua condição, ela foi liberada.
“Com a lei, pode haver negociações”, disse Ashrafi. “Ela foi liberada por causa da lei da blasfêmia.”
Este, em resumo, é o problema: um respeitado e claramente moderado clérigo islâmico – o tipo de pessoa, afinal, feliz de ser visto com um papa –, contudo, está dizendo que, em uma das principais nações muçulmanas do mundo, as sensibilidades religiosas são tão extremas que, se a lei civil não punisse os atos de blasfêmia, a violência dos vigilantes seria ingovernável.
O Paquistão dificilmente é o único exemplo de um lugar onde a liderança religiosa iluminada luta para ganhar força in loco.
Do lugar onde Francisco esteve em Abu Dhabi nos últimos três dias, por exemplo, leva apenas uma hora de carro até a Arábia Saudita, onde o Alcorão é oficialmente a constituição nacional, a apostasia é punida com a morte, e os crimes contra a honra não são incomuns quando um membro da família se converte do islamismo para outra fé.
Expressões públicas de crença não islâmica não são toleradas, e a Muttawa do Reino, a polícia secreta religiosa, às vezes assedia e detém cristãos até mesmo por se reunirem para o culto em casas particulares.
Nos próprios Emirados Árabes Unidos, o mesmo padrão existe, embora geralmente de forma mais benigna. No ano passado, os Emirados Árabes Unidos ficaram em 45º lugar entre os 50 maiores países do mundo em termos de falta de liberdade religiosa, segundo o Open Doors, um observatório protestante que monitora a perseguição anticristã em todo o mundo.
É verdade que Francisco aproveitou a ocasião para estabelecer alguns marcos sobre a liberdade religiosa, insistindo que se trata mais do que liberdade de culto, mas envolve também o direito de poder vir a público sobre a fé que se professa.
“Eu gostaria de enfatizar a liberdade religiosa”, disse ele na segunda-feira. “Sem liberdade, não somos mais filhos [de Deus], mas escravos.”
Alguns observadores veem a declaração conjunta que Francisco assinou com o xeique Ahmed al-Tayeb, de Al-Azhar, como um texto importante que pode ter consequências importantes, talvez especialmente nas escolas egípcias mais influenciadas pela Al-Azhar.
“Declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue”, diz.
Mesmo assim, esse tipo de retórica já foi ouvido antes. O que não havíamos ouvido nos Emirados Árabes Unidos era um desafio papal específico aos impedimentos de muitas sociedades islâmicas de implementar esse ponto de vista, do qual as leis da blasfêmia são um claro exemplo.
Talvez a realidade seja a de que nada que um papa pudesse dizer ou fazer teria muito impacto sobre as realidades sociais descritas por líderes como Ashrafi, do Paquistão. No entanto, não saberemos até que isso seja tentado. Francisco disse no avião, de volta para Roma, que alcançar a plena liberdade religiosa é um “processo” – e, talvez, uma capacidade papal um pouco mais robusta de dar nome ao elefante na sala com seus anfitriões muçulmanos poderia fazer parte desse processo.
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A liberdade religiosa é um ''processo'', sim. Mas há um elefante na sala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU