23 Fevereiro 2021
O discurso do Papa Francisco aos líderes do vasto Movimento dos Focolares no Vaticano em 6 de fevereiro pode muito bem ter sido um marco em sua “limpeza geral” da Igreja.
Foi a primeira reprimenda papal – severa – desde a aprovação oficial do Movimento em 1964, evidenciando problemas preocupantes por trás da euforia que é marca dos Focolares.
A reportagem é de Gordon Urquhart, publicada por La Croix, 19-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há muito que se atribuem encargos aos Focolares, inclusive através do meu livro “A Armada do Papa” (Ed. Record, 2002) e, mais recentemente, em publicações como “Dieu, les Focolaris et moi” (“Deus, os focolares e eu”, em tradução livre, Ed. Mols, 2020) de Renata Patti, e “De l'emprise à la liberté” (“Do apego à liberdade, em tradução livre, Ed. Mols, 2017).
Essas acusações agora estavam sendo expressas oficialmente.
Embora o tom de Francisco parecesse gentil e paternal. Estava repleto de elogios que os membros dos Focolares estão condicionados a esperar (e ele até concluiu o discurso com uma piada muito boa). Os temas que levantou eram muito sérios – mesmo na forma de piada.
O Papa ofereceu três “reflexões” aos líderes dos Focolares.
Dada a adulação que o Movimento dispensa à sua fundadora, Chiara Lubich, cujo processo de beatificação já ultrapassou a fase diocesana, o termo que utilizou para a sua primeira observação foi significativo: “Depois da fundadora”.
Exortando os membros do movimento a “superar a perplexidade natural” doze anos após a morte de Chiara Lubich, ele os lembrou que “todo carisma é criativo”.
“Não é uma estátua em um museu”, disse ele. “Não. O carisma é criativo”.
Francisco fez o mesmo ponto de forma mais contundente em um discurso aos membros do Movimento de Comunhão e Libertação (CL) em 2015.
“A fidelidade ao carisma não significa petrificá-lo – o diabo é quem ‘petrifica’, não se esqueçam! Fidelidade a um carisma não significa escrevê-lo em um pergaminho e emoldurá-lo”, disse o papa.
Da mesma forma, advertiu os Focolares para “evitarem qualquer egoísmo, que é sempre um pecado”.
Afirmou que o egoísmo “sempre leva à defesa da instituição em detrimento dos particulares, o que também pode levar a justificar ou encobrir formas de abuso”.
Na verdade, a autorreferencialidade dos Focolares – se isso for possível – realmente aumentou nos anos desde a morte de Lubich.
O movimento apresenta “o carisma” e, particularmente, a própria pessoa de Lubich em seu intenso trabalho missionário com mais ênfase do que nunca.
Por vários anos, o principal objetivo do movimento foi a canonização de Lubich.
Vários livros e periódicos cobrindo sua vida e escritos foram publicados. A Rai Uno, principal emissora de televisão da Itália, recentemente produziu um filme biográfico sobre os primeiros anos de Lubich, que foi exibido em janeiro deste ano. A famosa atriz italiana Cristiana Capotondi estrelou como Lubich.
Um exemplo extraordinário de como Lubich se tornou a mensagem principal do Movimento pode ser encontrado em um pequeno documentário/diário de viagem produzido pelos Focolares, intitulado “Uma peregrinação à fonte” (“Un pellegrinaggio alle sorgenti”).
O documentário retrata uma “peregrinação” de acadêmicos hindus da Índia aos “lugares sagrados” dentro e ao redor da cidade de Trento, no norte da Itália, que estão ligados ao à “Santa”. Esse é o termo que o documentário usa para descrever Chiara Lubich como a promotora desta forma inovadora de diálogo inter-religioso.
A segunda palavra de ordem do Papa Francisco aos líderes dos Focolares foi “a importância das crises”.
Certamente, ele se referia, em parte, ao caso de abuso sexual de menores cometido por um membro celibatário interno dos Focolares na França, ocorrido há muitos anos. Foi silenciado pelos líderes do Movimento até se tornar público em 2020 por meio de uma série de artigos de jornal.
Mas o papa também tinha outros tipos de crise – e abusos – em mente.
“Na verdade, a mistura da esfera do governo e da esfera da consciência dá origem a abusos de poder e a outros abusos que testemunhamos, quando se descobre o caldeirão desses terríveis problemas”, alertou.
Isso representa um desafio dramático para as estruturas atuais dos Focolares, que até agora se baseavam na duplicação dos líderes espirituais do movimento.
Um de seus principais instrumentos de direção espiritual é a “conversa privada” (colloquio privato) entre os líderes locais ou líderes visitantes do Centro do Movimento de Roma e os membros (internos, consagrados e outros).
Isso abrange tanto as atividades práticas dos membros, como suas profissões e atividades missionárias, quanto seu estado de espírito. Em outras palavras, a “conversa privada” é uma forma de confissão imposta.
Como tudo nos Focolares, ela foi iniciada por Chiara Lubich. Ela mantinha “conversas privadas” com os focolarinos consagrados quando visitava seu território local.
Quando um amigo próximo de mim confessou a Lubich que ele tinha “tendências homossexuais”, ela lhe disse: “Não há nada errado, contanto que você não aja sobre isso: eu prefiro que você seja atropelado por um carro do que faça um ato homossexual”.
Os Focolares já haviam sofrido um curto e repentino choque em junho de 2020, relacionado à falta de distinção entre o foro interno e o externo.
É uma das práticas mais antigas do movimento, que data de pelo menos 70 anos.
Conhecido nos Focolares (apenas pelos membros mais ‘internos’) como “schemetti” ou “pequenas formas”, era um exame de consciência diário escrito em formulários especialmente impressos que abrangiam os aspectos espirituais, mentais, físicos e financeiros da vida dos membros individuais em tempo integral nos mínimos detalhes.
Os “schemetti” deveriam ser entregues a cada quinze dias ao líder local e acabavam no centro do movimento em Roma, onde seriam arquivados e mantidos permanentemente. Isso permitiu que a liderança supervisionasse escrupulosamente a vida dos membros.
Com base em seus quarenta anos de filiação interna ao Movimento, Renata Patti explica como Lubich estabeleceu esse controle rígido sobre os membros.
“Unidade ‘em Chiara’ é absorção... obediência cega a ela e a todos aqueles que a representam na estrutura vertical do Movimento. [Como escreveu Lubich] ‘cada alma dos Focolares deve ser uma expressão de mim e nada mais’ (23-11-1950)”, escreve Patti.
A terceira e última reflexão do Papa Francisco foi “viver a espiritualidade com consistência e realismo”.
Se a espiritualidade da unidade soa maravilhosa para forasteiros e membros marginais, o que ela realmente significa no seio dos Focolares, aquele mundo interno que é guardado em segredo?
“A unidade exige almas prontas para perder suas personalidades, suas personalidades inteiras... Não há unidade exceto onde a personalidade não existe mais”, escreveu Lubich em 1946.
Martina Castagna, ex-focolarina casada, explica como funciona na prática esta forma de “unidade”.
“O conceito de unidade é eliminar todas as ideias [individuais], aspirações, iniciativas pessoais e vincula você à aprovação contínua e constante de seu superior”, diz ela.
Salientando que os focolarinos “prometem” pobreza, obediência e castidade “de acordo com o estado de casados”, Castagna afirma que os casais enfrentam um dilema.
“Como casal, há sérios problemas – vocês seguem o seu superior dos Focolares ou o seu parceiro?... Muitos líderes dos Focolares desejam manter um certo controle sobre a vida familiar”, diz ela.
Como solução para esses problemas, Francisco pediu mais “sinodalidade” e parrésia dentro do movimento.
No dia seguinte, o cardeal Kevin Farrell – prefeito do Dicastério para os Leigos, Família e Vida – destacou os mesmos pontos no encerramento da Assembleia Geral dos Focolares.
“É importante garantir uma forma justa de liberdade e uma forma justa de autonomia pessoal... Não tenha medo, portanto, de deixar espaço para a parrésia e a franqueza de expressão dentro do movimento, ouvindo o que todos têm a dizer”, disse o cardeal.
Como ex-membro dos Legionários de Cristo, ele sabe algumas coisas sobre hierarquias rígidas e o culto à personalidade.
O Papa Francisco e o cardeal Farrell fizeram pedidos que parecem razoáveis e simples. Mas dada a cultura do Movimento Focolarino, quão realistas eles são?
Todos os membros atuais, incluindo os líderes, foram treinados em uma atitude anti-pensamento no que diz respeito a Chiara Lubich e seus preceitos, inspirados em slogans comumente usados como “corte sua cabeça” e “coloque seus livros no sótão”.
As exortações do papa equivalem a sugerir aos líderes da Cientologia ou às Testemunhas de Jeová que eles devem introduzir a sinodalidade e a parrésia em seus respectivos corpos?
Tais termos estão fora dos referenciais do Movimento dos Focolares.
No posfácio de “Dieu, Les Focolaris et Moi”, de Renata Patti, o padre Pierre Vignon, especialista em abusos sexuais na Igreja, descreve seu livro como “expondo um sistema, e não apenas a infeliz experiência pessoal de Renata”.
O Movimento dos Focolares é capaz de seguir os “três pontos” do Papa sem ser forçado a fazê-lo por uma intervenção externa?
“Eu só queria que eles pudessem”, diz Renata Patti.
“Mas, pessoalmente, não acredito. Para quem conhece a vida interna dos Focolares, é Chiara + Chiara = Chiara. Esta é a sua autorreferencialidade que parece impossível de desenraizar. Se lhes for deixado, nada acontecerá mudança”, diz o autor.
Depois de lidar com as questões graves, o Papa Francisco encerrou seu discurso com uma piada sobre as quatro coisas que nem Deus sabe.
“[Deus não sabe] sobre o que estão pensando os jesuítas, quanto dinheiro os salesianos têm, quantas congregações religiosas existem e por que os focolarinos estão sorrindo”, disse o Papa.
Os focolarinos riram educadamente da “piada”, mas, como as outras advertências sutis do Papa, talvez não tenham entendido bem.
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O Papa Francisco gentilmente chama a atenção de outro “novo movimento eclesial” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU