Síntese e Testamento de um Magistério. O novo livro do Papa Francisco: “Vamos sonhar juntos”

Foto: Vatican Media

23 Dezembro 2020

"O livro 'Vamos sonhar juntos' tem elementos de uma síntese e de um testamento em que o papa, em uma situação de crise mundial, avalia os sete anos de seu pontificado, marcados pelos três documentos programáticos sobre a evangelização (EG), a criação (LS) e a fraternidade universal da humanidade (FT)", escreve Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia, como perito. Entre suas últimas publicações, destacamos Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

 

Eis o artigo. 

 

No início de dezembro/20, a Editora Intrínseca lançou o novo livro do Papa Francisco: “Vamos sonhar juntos” (VSJ)[1]. As reflexões desse livro foram escritas durante a quarentena e compiladas com o auxílio jornalístico de Austen Ivereigh, um dos bons conhecedores da vida e do pensamento do papa. Fundamentado nos seus escritos, Francisco revela-se um farejador inquieto em busca de um sentido embutido na tragédia do coronavírus.

 

Desde o início de seu pontificado, em 2013, esse papa denuncia nosso sistema econômico como uma economia que mata (Evangelii Gaudium 53) pela exclusão, desigualdade, humilhação social e pelos privilégios de uma parcela da humanidade que sacrifica a outra (cf. Laudato Si 172). Em sua Encíclica Fratelli Tutti (FT), escrita durante a pandemia, o papa retoma essas “situações de violência”, que assumem os contornos de “uma terceira guerra mundial em pedaços” (FT 25).

 

Esse momento pandêmico nos proporciona a todos a “hora da verdade”. Ele nos “faz lembrar das palavras de Jesus a Pedro: Satanás quer 'peneirar a você como trigo' (Lc 22,31). Entrar em crise implica ser peneirado. É um momento em que tanto os nossos parâmetros como as formas de pensar são sacudidos e as nossas prioridades e os nossos estilos de vida são questionados” (VSJ 7). A hora da verdade forja saídas do labirinto em que nos encontramos, caminhos concretos, novos compromissos e horizontes.

 

Como já na Encíclica “Laudato Si'” e na Exortação “Querida Amazônia”, também no livro “Vamos sonhar juntos” encontramos um papa, cidadão do mundo, que toma partido radical pelos pobres, estabelecendo uma estreita interligação entre a ecologia natural e a ecologia humana (cf. QA 41).

 

 

Mas o papa cidadão do mundo, com a liberdade de optar por um dos setores sociais dessa sociedade, os pobres, na própria Igreja não tem essa liberdade. Seu ofício é articular diferentes setores sociais e culturais – ele mesmo pertencendo a um desses setores – em uma unidade possível, por vezes mais virtual que real. No caso do racismo, por exemplo, Francisco lamenta essa situação de ser obrigado a servir a dois senhores: “Não podemos ignorar aqueles da Igreja que compartilham essa maneira de pensar” (VSJ 35): convertem seu narcisismo em ideologia pela qual fazem demonstrações de rua em vez de aderir a protestos pela morte de George Floyd. “Alguns padres e leigos deram maus exemplos, perdendo o laço de solidariedade e fraternidade com o restante de seus irmãos” (VSJ 35). Como cidadão, o papa dá palpites optando para um determinado setor. Na própria casa, ele deve articular linhas de ação divergentes. Isso nos permite compreender por que os sonhos sociais do Papa Francisco são mais decisivos que seus sonhos eclesiais.

 

Além disso, segundo a premissa de Francisco de que tudo está interligado, permanece a expectativa de que a “ira santa”, sobre a economia que mata, um dia terá também um impacto maior sobre os campos culturais e pastorais da Igreja. Contudo, nem a construção da unidade da Igreja como ofício permanente do pontífice nem o pluralismo legítimo de opções pastorais permitem servir a dois senhores (cf. Mt 6,24). A unidade da Igreja limita dois projetos autoritários, que se podem configurar através de um pluralismo arbitrário em que tudo vale e uma hermenêutica única, o que seria o fim da hermenêutica.

 

O livro “Vamos sonhar juntos” tem elementos de uma síntese e de um testamento em que o papa, em uma situação de crise mundial, avalia os sete anos de seu pontificado, marcados pelos três documentos programáticos sobre a evangelização (EG), a criação (LS) e a fraternidade universal da humanidade (FT). O papa adverte: O caminho de volta está fechado. Está fechada “a falsa segurança das estruturas políticas e econômicas de antes da crise. Precisamos de economias que permitam a todos o acesso aos frutos da Criação, às necessidades básicas de vida: terra, teto e trabalho (cf. VSJ 139-144). Devemos reduzir a velocidade, tomar consciência e desenhar maneiras melhores de conviver neste mundo” (VSJ 12). Como vamos sair dessa crise e caminhar para um futuro melhor? 

 

1. Tempo de ver

Francisco recomenda: Para avaliar um tempo, ver um território e sentir uma situação, devemos ir às periferias. Precisamos romper com os projetos das elites que querem “restaurar a estrutura socioeconômica que tínhamos antes da pandemia” (VSJ 24). É previsível que esses projetos acabem em maiores filas de desempregados, talvez todos vacinados, mas sem teto, trabalho e terra. A tentativa de restaurar o mundo a partir do centro “nos leva a um beco sem saída” (VSJ 63). Nas periferias se encontram os novos modos de organizar a sociedade e se encontram também “os protagonistas das transformações sociais” como “atores de um novo futuro” (VSJ 24).

 

 

Os povos indígenas e todos que vivem à margem do sistema econômico e político são os mais indicados para defender não projetos de restauração, mas de transformação. O projeto oficial em curso é um projeto doente que mata. “Durante muito tempo pensamos que podíamos ter saúde num mundo que estava doente. Mas a crise nos fez perceber quão importante é trabalhar por um mundo são”. (VSJ 37).

 

O tempo de ver” é um processo de conscientização, um “tempo de ver melhor”. Não é que até hoje fomos cegos, mas a crise da pandemia da covid-19 e a crise ecológica nos permitem focar melhor a urgência de soluções necessárias e possíveis. O papa nos conta seu processo de conscientização ecológica, a partir da Conferência de Aparecida (2007). “A princípio, fiquei um pouco incomodado com o fato de os bispos brasileiros e alguns de outros países quererem tantas referências à Amazônia nesse documento” (VSJ 38). Doze anos mais tarde, Francisco convocou o Sínodo sobre a Amazônia. “Depois de muitos encontros, diálogos e acontecimentos, meus olhos foram se abrindo. [...] Algo que me ajudou bastante foi a leitura dos escritos do Patriarca Bartolomeu sobre o tema. [...] Assim foi nascendo a minha consciência ecológica” (VSJ 38). Assim nasceu a encíclica social Laudato Si', que articula “o destino da humanidade” ao “destino da nossa casa em comum de forma inseparável” (VSJ 39). “O verde e o social caminham juntos: o destino da Criação está unido ao destino de toda a humanidade” (VSJ 40). Cada vez mais doenças são “originadas do descuido ecológico, de má gestão dos resíduos, do uso indiscriminado de pesticidas” (VSJ 40). Perdemos a sabedoria da boa convivência com a Mãe-Terra. “Tornamo-nos surdos ao grito dos pobres e ao grito da natureza” (VSJ 41).

 

A Covid tem uma dimensão universal e uma dimensão pessoal. Ambas interrompem a rotina da nossa vida; nos fazem cair do cavalo, como Saulo. O maior fruto de uma Covid pessoal, que é uma experiência limite, diz o papa, é “a paciência, condimentada com um sadio senso de humor”, que criam um espaço para a mudança. Em seu livro, o papa conta três experiências pessoais de Covid: em 1957, com 21 anos de idade, teve a experiência da proximidade da morte em um hospital de Buenos Aires. Em 1986, na Alemanha, teve a experiência da desconexão, do deslocamento e da solidão. Entre 1990 e 1992, quando foi enviado para Córdoba, viveu uma “espécie de quarentena” em um “banco de reserva”, um reaprender a viver um despojamento e desenraizamento de funções. Ser peneirado por Satanás e, pelo encontro com Jesus, cair do cavalo, como Saulo – em cada Covid nos aguarda um aprendizado, um crescimento e uma nova tentação.

 

“Olhando agora para trás”, escreve o papa, “três coisas específicas me impressionam”: a capacidade de rezar, as tentações que experimentei e os aprendizados que se revelaram como uma vacina para futuros desafios. “Foi um período [...] de desabrochar que acontece depois de uma poda radical” (VSJ 51).

 

 

É importante, que depois da nossa conversão e transformação, ficarmos vigilantes. “Depois de nos corrigirmos, o demônio vem, assim como disse Jesus, e, ao encontrar a casa 'varrida e arrumada' (Lc 11,25), envia outros sete espíritos ainda piores. [...] É disso que tenho de me proteger durante meu governo da Igreja, para garantir que não volte a cair nos defeitos que tinha quando fui superior religioso [...]. É a tentação do diabo disfarçado de anjo de luz (VSJ 51)”, que chega bem educado, pede desculpas e licença para novamente tomar conta da casa.

 

“A crise nos devolveu a compreensão de que necessitamos uns dos outros”, para nos ouvir, corrigir e animar. Através de uma irrupção da fraternidade, conseguiremos brecar a globalização da indiferença e a hiperinflação do indivíduo. Somos responsáveis uns pelos outros. Juntos e sobretudo na periferia “podemos aprender sobre o que nos faz avançar e o que nos faz retroceder” (VSJ 55). 

 

2. Tempo de escolher

Para esse segundo tempo, escreve Francisco, precisamos um conjunto de critérios e um “refúgio da tirania do urgente”, um lugar de “reflexão e silêncio”. Precisamos reaprender a rezar, ouvir o chamado do Espírito e “cultivar o diálogo, em uma comunidade que nos apoie e nos convide a sonhar” (VSJ 59).

 

Como “conjunto de critérios”, o papa nomeia as Bem-Aventuranças de Jesus e cinco máximas da Doutrina Social da Igreja. Nas Bem-Aventuranças, “que começam com a esperança dos pobres de uma vida plena, de paz e fraternidade, de igualdade e justiça” (VSJ 60), “Jesus nos ofereceu uma série de palavras-chave com as quais sintetizou a gramática do Reino de Deus” (VSJ 60).

 

Na Doutrina Social, a Igreja traduziu alguns desses critérios à vida concreta de hoje:

• a opção preferencial pelos pobres para “pôr os pobres no centro do nosso modo de pensar”;

• o bem comum, que significa desmontar uma sociedade de privilegiados e lutar pela realização de uma política de redistribuição dos bens entre toda a sociedade;

• o destino universal dos bens, que limita e regulamenta a propriedade privada para que todos tenham acesso aos bens da vida: terra, teto e trabalho;

• a solidariedade, que enfatiza “a nossa interligação com as demais criaturas”, com os quais temos responsabilidades. “Isso significa aceitar o diferente, perdoar dívidas, acolher os deficientes” (VSJ 61; cf. 117);

• a subsidiariedade, que “implica reconhecer e respeitar a autonomia dos outros, sujeitos capazes de decidir o próprio destino” (VSJ 61).

 

Esses “nobres, mas abstratos” critérios, diz o papa, precisam ser transformados em linhas de ação. É importante recordar: “ideias são discutidas, mas a realidade é discernida. [...]. Muitas pessoas religiosas têm dificuldade em relação ao discernimento, principalmente as que são alérgicas a incertezas e desejam reduzir tudo a preto ou branco” (VSJ 62).

 

Diante das incertezas causadas pela pandemia da covid-19 devemos resistir à sedução de uma mentalidade fundamentalista. “Os fundamentalismos oferecem uma atitude e um pensamento único, fechado [...]. A pessoa que se refugia no fundamentalismo tem medo de sair em busca da verdade. Ela já 'tem' a verdade e a utiliza como defesa, interpretando qualquer questionamento como uma agressão” (VSJ 63).

 

Para questionar o fundamentalismo, Francisco cita dois dos seus mestres intelectuais: Romano Guardini e John Henry Newman. “A sabedoria de Guardini “me permitiu enfrentar problemas complexos que não podem ser resolvidos simplesmente com normas, mas com um estilo de pensamento que permite passar pelos momentos de conflito sem ficar preso neles” (VSJ 64).

 

Com Newman, Francisco enxerga “a verdade sempre mais além de nós, [...] como uma luz amável que normalmente não chega através da razão, 'mas pela imaginação [...], pelo testemunho dos fatos'” (VSJ 64). Francisco assumiu dos seus mestres “que não possuímos a verdade mas que a verdade nos possui e constantemente nos atrai com sua beleza e bondade” (VSJ 64s). A abordagem da verdade “engloba as duas coisas: um elemento de concordância e um elemento de busca contínua” (VSJ 64). “Não há contradição entre estar solidamente enraizado na verdade e, ao mesmo tempo”, pela ação do Espírito “aberto a uma compreensão maior” (VSJ 65): “A tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo” (Gustav Mahler, VSJ 66). É uma visão dinâmica da realidade que facilita discernir entre suas contradições e perceber as necessidades e os caminhos de transformações.

 

 

Discernir os sinais dos tempos, pelos quais o Espírito nos mostra coisas novas, nos permite dar sentido e rumo à mudança. O papa reflete novamente sobre a expansão ilimitada da produtividade e do consumo das regiões mais ricas do mundo, que “se tornou um fator de desestabilização, produzindo grandes desigualdades e provocando um desequilíbrio no mundo natural” (VSJ 68). A pandemia nos convida “a parar, a alterar nossas rotinas e prioridades. [...]. O discernimento nos permite perguntar: O que o Espírito está nos dizendo?”, mas “cuidado com aqueles que afirmam ver claramente o futuro, dotados de certeza e segurança” (VSJ 69).

 

Com essa estratégia de conviver com dúvidas e incertezas, o Papa Francisco começa a refletir sobre posturas pastorais polêmicas de seu próprio pontificado e defende, não sem tintas apologéticas, suas posturas já conhecidas, em relação à mulher na Igreja e à questão dos “viri probati”.

 

Comparando as afirmações anteriores de Francisco sobre a necessária abertura do discernimento e da verdade a uma compreensão sempre maior, com as afirmações que tratam a questão da mulher na Igreja e a dos viri probati nas comunidades como questões fechadas, o leitor tem a impressão de um desmentido do anteriormente dito sobre “a busca contínua”, a abertura a uma compreensão histórica sempre maior e o futuro dotado de incerteza. Para recuperar a historicidade de tais questões, talvez falte somente acrescentar a palavra “ainda”, por tratar-se de questões que “ainda” não receberam o devido discernimento entre o campo cultural e teológico.

 

O papa defende com belas palavras e exemplos de seu pontificado a presença crescentes das mulheres em funções não propriamente sacramentais da Igreja e considera a questão dos viri probati ideologicamente sobrecarregada por uma “consciência isolada”, sem entrar no significado pastoral de comunidades sem Eucaristia. Francisco confirma algumas propostas paliativas, como o aumento do envio de missionários para Amazônia que não contribuirão para uma Igreja com rosto amazônico nem conseguem, por meio de suas visitas esporádicas, conter a invasão de seitas fundamentalistas.

 

Mas o papa, que nos deixou participar da gênese de sua consciência ecológica, pode também nos surpreender, sobretudo porque nos falou que “não há contradição entre estar solidamente enraizado na verdade e, ao mesmo tempo”, pelo “testemunho dos fatos” (VSJ 64) e pela ação do Espírito, “aberto a uma compreensão maior” (VSJ 65) que a cultura eclesial hoje permite. Em ambas as questões (viri probati/mulher), trata-se antes de questões culturais que teológicas, que postergaram decisões pastorais. Devem ser, mas, de fato, não podem ser amazonizadas a curto prazo. Quem queria tapar a abertura do “caminho para um futuro melhor” com as tábuas apodrecidas da “tirania do urgente”, da “lentidão descompromissada”, da “atemporalidade da verdade dedutiva” ou do “fundamentalismo dogmático”, teve que admitir que seu muro não conseguiu fechar todas as frestas para a passagem da luz do Espírito. E as vozes das mulheres e das comunidades na periferia da Amazônia não permitirão mais por muito tempo que alguém feche essas questões em seu nome sem realmente ouvi-las. 

 

3. Tempo de agir

O tempo de agir, o Papa Francisco descreve com base em uma reflexão sobre a “Teologia do Povo de Deus” de sua terra de origem (cf. VSJ 107-117). Essa teologia nunca foi consensual na América Latina, mas permitiu um providencial consenso no momento de sua eleição como papa. Como na parábola do “Bom Samaritano” (Lc 10,25ss), também com a vida de Francisco podemos aprender que o Espírito pode servir-se de sistemas teológicos diferentes para conduzir seus seguidores pelo caminho do Evangelho. O samaritano da parábola, que veio como o sacerdote e o levita de Jerusalém, não veio do templo. Os samaritanos eram proibidos de entrar no Templo. Mas ele cumpriu o ensinamento do Templo. Amando o próximo, socorreu aquele que caiu nas mãos dos ladrões. O Papa Francisco não veio do templo da “Teologia da Libertação”, mas conseguiu realizar o primeiro mandamento dessa teologia, a opção pelos pobres, na Teologia Argentina do Povo de Deus.

 

 

“O que significa ser 'um povo'?”, pergunta o papa, para nos explicar o significado dessa teologia. Trata-se de “uma categoria de pensamento” e de “um conceito mítico”. “A categoria mítica do povo tem origem e se alimenta de muitas fontes: históricas, linguísticas, culturais (especialmente a música e a dança), mas sobretudo da sabedoria e da memória coletivas” (VSJ 107). Sua identidade é “arquetípica” e não se define por exclusões, mas “pela síntese de potencialidades” que Francisco chama de “transbordamento” (VSJ 113). “No início da história de cada povo está a busca pela dignidade e pela liberdade, uma trajetória de solidariedade e luta. [...] Para as nações do continente americano, foi a luta pela independência” (VSJ 107).

 

Sobre essa memória, não há consenso entre os historiadores. No Brasil, por exemplo, a independência não trouxe a libertação dos escravos nem o reconhecimento dos povos indígenas como sujeito da nova nação. Na maioria dos países foram elites mestiças que levaram a vitória da independência e continuaram com os vícios dos colonizadores. Os centros políticos das nações que emergiram da declaração da independência, viveram, desde a sua fundação, “à custa da periferia” (VSJ 108), muitas vezes, com o apoio do setor dominante da Igreja.

 

Nessa terceira parte do livro, denominada “tempo de agir”, é importante lembrar o que Francisco escreveu sobre o “tempo de ver”: “Recordo a história, não para honrar os antigos opressores, mas para prestar homenagem ao testemunho e à grandeza dos oprimidos. [...] O passado é sempre repleto de situações vergonhosas: basta ler a genealogia de Jesus nos Evangelhos” (VSJ 36).

 

Essa ressalva pode valer para escritos com a chancelaapostólica” de hoje. Existem múltiplas memórias entre os “antigos opressores” e a “grandeza dos oprimidos” que não permitem, sobretudo na Pan-Amazônia, imaginar um povo unido em torno de uma memória única. Com a suposta “sensação de pertencimento a um povo” com “uma alma”, desenhar agora um rito amazônico pode-se revelar como atitude tão colonial como a implantação do rito romano na hora da conquista.

 

O Papa Francisco se deu conta dessa dificuldade e pede que não se deforme o significado da palavra “povo” através de uma ideologia populista (cf. VSJ 118). Ele adverte: “Falar de um povo é apelar para a unidade na diversidade” (VSJ 112). “O Povo de Deus é uma comunidade dentro da comunidade mais ampla da nação”, na qual é encarnada, fala a língua própria desse lugar e lembra essa nação “que existe um bem comum da humanidade que supera o de qualquer povo em particular” (VSJ 115).

 

Em muitas páginas dessa “Síntese e Testamento” do pensamento do Papa Francisco, fala-nos o teólogo argentino da Teologia do Povo de Deus e o teólogo latino-americano da Teologia da Libertação, sobretudo quando se trata de questões mais profundas das raízes de pobreza e desigualdade e da função do mercado. A questão ecológica da Laudato Si' une essas duas teologias como o rio Amazonas une o rio Solimões com o rio Negro.

 

 

Depois de nos explicar seu pensamento sobre a “Teologia do Povo de Deus”, o Papa Francisco resume reflexões que desde seu primeiro texto programático, a Exortação apostólica Evangelii Gaudium, permeiam seus escritos: a dissociação entre a ética e a economia. O neoliberalismo, “centrado no mercado, confunde fins e meios. Em vez de o trabalho ser visto como fonte de dignidade, se torna mero meio de produção” e “o lucro se torna a meta” (VSJ 119). Os mercados, fixados no crescimento, geraram desigualdade e danos ecológicos irreparáveis.

 

Os mercados nos afastam das metas políticas necessárias para hoje: “regenerar o mundo natural, vivendo de forma mais sustentável e mais sóbria, ao mesmo tempo que cobrir as necessidades dos que, até agora, foram prejudicados ou excluídos desse modelo socioeconômico. Não sairemos melhor desta crise, se não aceitarmos um princípio de solidariedade entre os povos” (VSJ 120, cf. 139). Não se trata de “partilhar as migalhas da mesa, mas fazer com que, à mesa, haja lugar para todos” (VSJ 121). O desafio de todo nosso serviço social é que “o pobre, o nu, o doente, o preso, o desalojado [...] sintam-se 'em casa' entre nós. [...] Esse é o sinal de que o Reino dos Céus está entre nós” (VSJ 124).

 

Essa proximidade do Reino está marcada por lutas e pela descoberta de irmãos e irmãs ao nosso lado que caíram nas mãos de ladrões. O caminho das periferias geográficas e existenciais é o caminho da Encarnação: Deus escolheu a periferia como lugar para revelar, em Jesus, Sua ação salvadora na história” (VSJ 131s). Durante a quarentena, o papa escreveu uma carta de apoio aos movimentos populares. Os descreveu “como um 'exército invisível' na linha de frente desta pandemia, um exército cujas únicas armas são a solidariedade, a esperança e o sentido de comunidade” (VSJ 132). 

 

No final dessa terceira parte, denominada “tempo de agir”, o papa faz uma das propostas mais ousadas para traçar um “caminho para um futuro melhor”. Para o mundo pós-pandemia será vital “reconhecer o valor do trabalho não remunerado”. Devemos “explorar conceitos como o de renda básica universal, [...] um pagamento fixo incondicional a todos os cidadãos” (VSJ 143). “A renda básica universal poderia redefinir as relações no mercado laboral garantindo às pessoas a dignidade de rejeitar condições de trabalho que as aprisionam na pobreza. [...] Com o mesmo objetivo, é bem possível que seja também hora de considerar uma redução no horário de trabalho [...]. Trabalhar menos, para que mais gente tenha acesso ao mercado de trabalho, [...] é um [...] pensamento que precisamos explorar com certa urgência” (VSJ 143s). 

 

Epílogo

No futuro melhor para todos, qual será o nosso lugar? Em um epílogo, Francisco aponta com duas palavras para nosso aprendizado possível: “descentrar” e “transcender” e termina com o poema “Esperança” do cubano Alexis Valdés. Ler esse testamento de um grande pontificado, humano, sim, mas ao mesmo tempo profundamente evangélico por ser comprometido com os pobres, vale a pena.

 

 

Podemos sair da crise como turistas que, depois das férias, voltam, todos vacinados, ao mesmo lugar, ao labirinto de Narciso, sem saída. Mas podemos sair desse labirinto também como peregrinos, como alguém que se descentra e, assim, consegue transcender a normalidade de ontem. Ao voltar para casa de sempre, mas com novas prioridades, já não somos mais os mesmos. “Para sair do labirinto é preciso deixar a cultura da selfie e ir ao encontro dos outros” (VSJ 147). Ao olhar nos olhos dos outros e para as necessidades dos que nos acompanham nessa peregrinação, podemos descobrir nossas próprias mãos cheias de possibilidades.

 

“Quando a tormenta passar
E as estradas estiverem amansadas
[...] Nós nos sentiremos felizes
Simplesmente por estarmos vivos.

[...]

Entendemos o frágil
Que significa estar vivos.
Sentiremos falta do velho
Que pedia uma moeda no mercado,
De quem não soubemos o nome
E sempre esteve ao nosso lado.
E talvez o velho pobre
Era teu Deus disfarçado.
Nunca perguntaste por seu nome
Porque estavas apressado.

[...]

Quando a tormenta passar
Peço-lhe, Deus, envergonhado,
Que nos devolvas melhores,
Assim como nos havias sonhado!

 

Nota:

[1] Papa Francisco, Vamos sonhar juntos. O caminho para um futuro melhor, Ed. Intrínseca, 2020 [O Papa Francisco em conversa com Austen Ivereigh].

 

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