A bem-aventurança amarga do esperar, a arte necessária em tempos bicudos

O Natal não é alienação; é uma espera, um chamado para assumir o encontro e a ação transformadora

"Adoração dos pastores", de Pieter Pourbus, óleo sobre madeira, 1574

Por: Patricia Fachin | 21 Dezembro 2020

Ao anunciar a entrevista com Alec Ryrie, pastor anglicano e historiador britânico do cristianismo, o caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, usou duas palavras para se referir ao Natal deste ano: "anômalo" e "complexo". Elas descrevem com precisão os sentimentos que muitos de nós estamos sentindo às vésperas da celebração das festas natalinas: o Natal de 2020 não só será diferente para muitas famílias, marcadas pelos efeitos da pandemia de Covid-19 ou pelo medo do futuro que se anuncia com a chegada de 2021 ou ainda pela incerteza que marca fundamentalmente a nossa vida, mas também parece fora de ordem, anormal, estranho e complexo, ou seja, de apreensão difícil pelo intelecto. Se essa situação por si só não fosse suficiente - e talvez justamente por causa dela -, a última semana do Advento também desperta um sentimento de hesitação: crer ou duvidar, já que a realidade à nossa volta parece oferecer poucas razões para nos entregarmos ao abandono do que há de vir.

A crença em Deus é o tema da entrevista de Ryrie, reproduzida no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, que explora alguns aspectos de seu novo livro, intitulado “Il senso di non credere. Una storia emotiva del dubbio” [O sentido de não crer. Uma história emotiva da dúvida] (Ed. Utet). Sobre crer, ele esclarece: "É importante entender o que queremos dizer com a palavra 'crer'. Por exemplo, você afirma que crê em Deus, ou talvez você acha que crê, mas será mesmo assim? E, igualmente, se você não crê, em que não crê? É claro, talvez você não ache que um velho zangado habite os céus, mas talvez você acredite na verdade, na bondade ou na beleza. Em ambos os casos, crer ou não crer muitas vezes estão muito mais próximos do que queremos admitir".

Nesta mesma semana que antecede o Natal, o jornal L’Osservatore Romano publicou um artigo do teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, voz opositora ao regime nazista na Segunda Guerra Mundial. O texto, reproduzido na página eletrônica do IHU, integra o livro “Voglio vivere questi giorni con voi” [Quero viver estes dias com vocês], editado por Manfred Weber (Ed. Queriniana, 2007), uma coletânea de 365 textos escritos pelo membro e fundador da Igreja Confessante.

A reflexão de Bonhoeffer sobre o significado de festejar o Advento é oportuna para a nossa época, como possivelmente foi para os crentes da dele, que ansiavam pelo fim da Segunda Guerra Mundial, e celebraram seis natais em meio a conflitos militares e aos horrores do Holocausto, que resultaram na morte de mais de 70 milhões de pessoas. "Festejar o Advento", explica, "significa saber esperar: esperar é uma arte que o nosso tempo impaciente esqueceu. Quem não conhece a bem-aventurança amarga do esperar, isto é, a falta de algo na esperança, nunca poderá saborear a bênção inteira da realização".

 

 

No atual momento, em que uma das principais esperas práticas da humanidade é a vacinação contra a Covid-19, que nos promete a possibilidade de sairmos da condição em que nos encontramos, o artigo de Bonhoeffer é um alento e um registro de quem também viveu a angústia da espera, sem perder a confiança, apesar de ele próprio não ter visto o fim do regime nazista, ao ser enforcado em nove de abril de 1945, semanas antes de Hitler cometer suicídio, no dia 30 do mesmo mês. "Compreendam a hora da tempestade e do naufrágio, é a hora da inédita proximidade de Deus, não da sua distância. Lá onde todas as outras seguranças se rompem e desabam, e todos os suportes que sustentavam a nossa existência se arruínam um após o outro, lá onde tivemos que aprender a renunciar, precisamente lá é que se realiza essa proximidade de Deus, porque Deus está prestes a intervir, quer ser sustento e certeza para nós. Ele destrói, deixa que o naufrágio ocorra, no destino e na culpa; mas, em cada naufrágio, ele nos joga de volta sobre Ele. É isto que Ele quer nos mostrar: quando você abre mão de tudo, quando você perde e abandona todas as suas seguranças, eis, então, que você está livre para Deus e totalmente seguro n’Ele", professa.

Na sua condição de pontífice que guia a Igreja e de voz dissonante na tentativa de reconduzir a humanidade por novos caminhos, o Papa Francisco, na audiência geral da última quarta-feira, 16-12-2020, propôs que as celebrações do Natal deste ano inspirem-se naquele vivido por José e Maria, na ocasião do nascimento do menino Jesus. "Quanta dificuldade tiveram, quantas preocupações! Não obstante tudo, a fé, a esperança os guiaram e os ampararam. Que seja assim também para nós”.

 

O "sim" de Maria

 

Todos os dias o Instituto Humanitas Unisinos - IHU publica em sua página eletrônica comentários e reflexões sobre o Evangelho. Ontem, os artigos publicados discorreram sobre o Evangelho de Lucas 1,26-38, que corresponde ao 4° Domingo do Advento, ciclo B do Ano Litúrgico, sobre o "sim" de Maria a Deus.

Ao comentar essa passagem, o teólogo espanhol José Antonio Pagola reitera a constatação de Bonhoeffer na década de 1940: "Hoje não sabemos esperar. Somos como crianças impacientes, que querem tudo imediatamente. Não sabemos estar atentos para conhecer os nossos desejos mais profundos. Simplesmente esquecemo-nos de esperar por Deus, e já não sabemos como encontrar a alegria. (...) Esquecemo-nos que cuidar da nossa vida interior é mais importante do que tudo o que nos vem de fora. Se vivermos vazios por dentro, somos vulneráveis a tudo. Vai-se diluindo a nossa confiança em Deus e não sabemos como nos defendermos do que nos faz mal".

 

 

Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, também comentou o Evangelho na página do IHU. Segundo ele, ao olhar para Maria, a "mulher que ama" e que "diz 'sim'", podemos compreender que "o Advento é tempo de Maria, tempo de esperança e acolhida, tempo de espera. Maria foi mãe, testemunha, seguidora..., mas sobretudo foi Mulher do 'sim', do compromisso sincero e real, Mulher de fé capaz de arriscar tudo e deixar-se conduzir por Aquele que a olhou com misericórdia. Na Anunciação, podemos encontrar Maria numa atitude de escuta, de receptividade, de abertura, de sim".

A saudação do anjo Gabriel a Maria é, conforme explica Palaoro, "um imperativo, um convite à alegria. Na saudação 'alegra-te' ecoa o júbilo pela chegada da salvação, nas palavras de Sofonias: 'Exulta, filha de Jerusalém e, de todo o coração, dá gritos de alegria!' (3,14). Convidada pessoalmente a alegrar-se, Maria é também a representante e portadora da alegria de todo o Povo de Deus pela vinda do Salvador, anunciada pelos profetas".

 

 

 

Maria, diferentemente de muitos de nós que buscamos provas da existência de Deus ou sinais que manifestem sua presença e sua inclinação às nossas preces, "não duvida da ação surpreendente de Deus e nem pede um sinal. Acolhe com fé cada uma das promessas sem pôr obstáculo algum à presença do mesmo Deus nela. Mas, porque não compreende como acontecerá tudo isso nela, pergunta: 'Como vai ser isso se eu não conheço homem algum?'" A resposta da Santíssima Virgem, além de representar o começo da Nova Aliança de Deus com a humanidade, diz, "revela a grandeza, a beleza e a responsabilidade das decisões da liberdade humana".

Maria é um exemplo de prontidão, serviço e doação ao plano de Deus, no qual podemos nos inspirar, especialmente em tempos que exigem sacrifícios e maior disposição de cada um de nós. "Maria não pediu tempo para assegurar-se fazendo uma consulta familiar; quando sentiu que era vontade de Deus, pronunciou um 'sim' definitivo. (...) Para os Antigos padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. É preciso também reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. Não é fácil reencontrar este sim. Na maior parte do tempo estamos na desconfiança, na dúvida, no temor... Isto quer dizer que temos muitas memórias doentias que alimentam medo, que nos fazem resistir àquilo que a Vida nos propõe para viver", observa.

 

 

 

Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, retoma o "sim" de Maria como um convite aos cristãos: um chamado para gerar Cristo. "Gerar Cristo é uma operação, acima de tudo, espiritual, que ocorre graças à fé, que é uma exposição radical de si à presença de Deus e à força do seu Espírito. Cada cristão é chamado a essa geração de Cristo em si mesmo: trata-se de acolher a Palavra com fé e obediência, de deixá-la fecundar em nós pelo Espírito Santo, de deixá-la crescer dia e noite, mesmo que não saibamos como (cf. Mc 4,26-27). Assim Cristo será gerado: 'Cristo em vós, esperança da glória' (Cl 1,27). O mistério de Maria, então, torna-se o mistério do cristão, que, contemplando o ícone da Anunciação, vê o mistério da sua própria vocação. E aprende que tal obra não pode ser realizada contando com as próprias forças pessoais, mas apenas confiando e entregando-se à graça do Senhor", afirma.

  

O feliz acontecimento

 

A Encarnação do Verbo – o Verbo se fez carne –, recorda o Papa, "é o fundamento da fé cristã. E esta é a verdade, esta é a revelação de Jesus: esta presença de Jesus encarnado. E este é o ponto”. Numa missa matinal celebrada nos primeiros meses de seu pontificado na Casa Santa Marta, Francisco reconheceu que a crença professada pelos cristãos é escandalosa para muitos. “Nós podemos fazer todas as obras sociais que queremos e dirão: ‘Mas que boa a Igreja, que boa obra social que faz a Igreja’. Mas se nós dissermos que nós fazemos isto porque estas pessoas são a carne de Cristo, vira um escândalo”.

Independentemente de como o mundo reage ao nascimento de Jesus, o fato é que ele não aconteceu longe de grandes dificuldades e tampouco é "apenas um feliz acontecimento entre outros", diz o jesuíta francês Marcel Domergue (1922-2015) ao comentar as leituras da Solenidade do Natal no sítio Croire, reproduzido na página do IHU. "É o acontecimento único, revelador do que os homens estão buscando desde sempre: um 'sentido', uma lógica, uma razão de ser. O ponto de chegada para o seu caminho, a certeza de que 'tudo isto vai dar em algum lugar', de que não existimos em vão". O nascimento de Cristo é um evento singular porque em Belém "'manifestou-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens' (Tito 3,4). 'Manifestou-se': já estavam aí, portanto, a bondade e o amor, mas não ainda manifestados claramente. (...) O que acontece, então, de extraordinário no nascimento de Jesus? É que, n’Ele e por Ele, manifesta-se, em pleno dia e no agora, o mistério que estava escondido na criação, desde a fundação do mundo. Eis aí um menino, uma criança, ou seja, um futuro, uma promessa", resume. Em The Little Drummer Boys, uma música popular de natal composta por Katherine Kennicott Davis em 1941, um judeu, um palestino, um italiano e uma americana anunciam: "Venha, eles me disseram, pa rum pum pum pum. Um rei recém-nascido para ver, pa rum pum pum pum". A letra conta a história de um menino pobre que, sem um presente para dar ao Menino, tocou seu tambor, lembrando: "Toquei o meu melhor para ele" e "Ele sorriu para mim".

 

 

A encarnação de Deus, pontua Bianchi, significa o seu próprio esvaziamento e rebaixamento, expresso desde o princípio na vulnerabilidade da manjedoura, acontecimento que se perpetua há mais de dois mil anos entre tantos que nascem imersos em contextos de adversidades, privação e rejeição. "Deus se fez vulnerável, um verdadeiro homem com uma vida na carne (sárx: Jo 1,14), e assim mostrou sua solidariedade conosco até a morte. As feridas, os estigmas da paixão, que também permaneceram no corpo glorioso do Cristo ressuscitado, contam essa vulnerabilidade de Deus para sempre. Sim, em nós humanos a vulnerabilidade é um local de encontro com Deus e com os outros: isso não é uma fraqueza, mas é a nossa força. Eis como podemos entender as palavras paradoxais do Apóstolo: 'Pois, quando sou fraco é que sou forte' (2 Cor 12, 10)". 

 

 

 

Para o teólogo espanhol José María Castillo, a mensagem dos evangelhos da infância é provocativa e nos diz com clareza: "'o divino' se encontra no 'humano'. No mais humano, isto é, no frágil, no marginal, no excluído e até no perseguido. 'O divino' não se fez presente no portentoso, no milagroso, no surpreendente, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. 'O divino' se fez presente em uma criança, em um estábulo, entre sujeira e animais. E foi anunciado a pastores, uma das atividades marginais daquele tempo. E até o rei, informado pelos sacerdotes, decidiu matá-lo".

Em artigo publicado no sítio Religión Digital em 2011, reproduzido na página do IHU, o teólogo reflete sobre a dificuldade de compreendermos o mistério de Deus a partir dos relatos da natividade, que não "cabem em nossas cabeças". "Gostamos do grande, do importante, do notável, do solene, do que impressiona e chama a atenção, do que se impõe e se admira... Mas e o que não é nem mais nem menos do que o humano? O que é comum a todos os humanos? Pois isso, precisamente isso, que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza. E é o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Todos somos 'educados' para ser importantes, mas não para ser simplesmente humanos". A consequência de não reconhecermos a nossa pequenez, alerta, é sermos seduzidos pelo poder. "Daí, a consequência mais perigosa e mais patética que todos arrastamos. Seduz-nos o poder. Seduz-nos a glória. Queremos, a todo custo, ser importantes, nos destacar, ser notáveis". 

 

 

 

Segundo a mística franciscana, "depois de Cristo, tudo tem a ver com Deus: as criaturas, a natureza, as diferentes culturas, as raças, e todas as coisas mais comuns que constituem a vida humana", diz Frei Regis Daher, em artigo publicado no portal Franciscanos e reproduzido pelo IHU em 2018. Mas para contemplar o nascimento de Cristo e "nele descobrir a revelação divina no cotidiano humano, há uma condição: é preciso mudar o coração e o olhar, porque o mundo tornou-se presépio. É este o sentido de compor e imaginar a cena do nascimento de Jesus Cristo nas mais diferentes situações e culturas. É Ele o índio, é Ele o negro, é Ele o pobre, o homem comum na cidade, na favela, no campo… Porque todo ser humano tornou-se sacramento do Filho, e todo lugar e cultura tornaram-se sacramento da manjedoura de Belém. Universal não é o presépio, é sim o mistério da vida que só tem uma morada: o coração humano", afirma.

  

São José: exemplo de amor, doação e serviço a Cristo

 

Na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria, em oito de dezembro deste ano, o Papa Francisco publicou a "Carta Apostólica Patris Corde" (Com coração de Pai), por ocasião do 150º aniversário da Declaração de São José como Padroeiro Universal da Igreja, na qual destaca a figura de José como exemplo de amor e serviço a Jesus. "Sabemos que era um humilde carpinteiro (cf. Mt 13, 55), desposado com Maria (cf. Mt 1, 18; Lc 1, 27); um 'homem justo' (Mt 1, 19), sempre pronto a cumprir a vontade de Deus manifestada na sua Lei (cf. Lc 2, 22.27.39) e através de quatro sonhos (cf. Mt 1, 20; 2, 13.19.22). Depois duma viagem longa e cansativa de Nazaré a Belém, viu o Messias nascer num estábulo, 'por não haver lugar para eles' (Lc 2, 7) noutro sítio. Foi testemunha da adoração dos pastores (cf. Lc 2, 8-20) e dos Magos (cf. Mt 2, 1-12), que representavam respetivamente o povo de Israel e os povos pagãos".

Ao compartilhar algumas das suas reflexões pessoais sobre esta "figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós", Francisco reconhece a "grandeza" de São José justamente na sua disposição de colocar-se "inteiramente ao serviço do plano salvífico". "A história da salvação realiza-se, 'na esperança para além do que se podia esperar' (Rm 4, 18), através das nossas fraquezas. Muitas vezes pensamos que Deus conta apenas com a nossa parte boa e vitoriosa, quando, na verdade, a maior parte dos seus desígnios se cumpre através e apesar da nossa fraqueza. Isto mesmo permite a São Paulo dizer: 'Para que não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne'" (2 Cor 12, 7-9).

Os efeitos da crise pandêmica que nos afeta, os quais todos pudemos experimentar em alguma medida, diz o Papa, mostraram que "as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiras e enfermeiros, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho". Elas são como São José, "o homem que passa despercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida". Em suas atividades diárias e comuns, continua, "quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos".

Outro aspecto da vida de São José destacado pelo papa Francisco é a angústia diante da indecisão de acolher Maria, antes de receber o aviso do anjo durante o sonho. A agonia do carpinteiro escolhido para assumir a paternidade de Jesus, lembra Francisco, nos mostra que "a vontade de Deus e seu projeto também passam por momentos de dor e sofrimento". São José "ensina-nos que ter fé em Deus inclui também acreditar que Ele pode intervir inclusive através dos nossos medos, das nossas fragilidades, da nossa fraqueza. E ensina-nos que, no meio das tempestades da vida, não devemos ter medo de deixar a Deus o timão da nossa barca. Por vezes queremos controlar tudo, mas o olhar d’Ele vê sempre mais longe".

Na nossa vida, reitera, assim como neste momento particular da história da humanidade, "muitas vezes sucedem coisas, cujo significado não entendemos. E a nossa primeira reação, frequentemente, é de desilusão e revolta. Diversamente, José deixa de lado os seus raciocínios para dar lugar ao que sucede e, por mais misterioso que possa aparecer a seus olhos, acolhe-o, assume a sua responsabilidade e reconcilia-se com a própria história. Se não nos reconciliarmos com a nossa história, não conseguiremos dar nem mais um passo, porque ficaremos sempre reféns das nossas expectativas e consequentes desilusões".

O nascimento de Jesus e, portanto, sua vinda ao nosso meio, resume, "é um dom do Pai, para que cada um se reconcilie com a carne da sua história, mesmo quando não a compreende totalmente. (...) O que Deus disse ao nosso Santo – 'José, Filho de David, não temas…' (Mt 1, 20) –, parece repeti-lo a nós também: 'Não tenhais medo!' É necessário deixar de lado a ira e a desilusão para – movidos não por qualquer resignação mundana, mas com uma fortaleza cheia de esperança – dar lugar àquilo que não escolhemos e, todavia, existe. Acolher a vida desta maneira introduz-nos num significado oculto. A vida de cada um de nós pode recomeçar miraculosamente, se encontrarmos a coragem de a viver segundo aquilo que nos indica o Evangelho. E não importa se tudo parece ter tomado já uma direção errada, e se algumas coisas já são irreversíveis. Deus pode fazer brotar flores no meio das rochas. E mesmo que o nosso coração nos censure de qualquer coisa, Ele 'é maior que o nosso coração e conhece tudo' (1 Jo 3, 20)".

Como em outros momentos de seu pontificado, Francisco nos incentiva a seguir em frente com coragem criativa, acreditando na providência divina. "Esta vem ao de cima sobretudo quando se encontram dificuldades. Com efeito, perante uma dificuldade, pode-se estacar e abandonar o campo, ou tentar vencê-la de algum modo. Às vezes, são precisamente as dificuldades que fazem sair de cada um de nós recursos que nem pensávamos ter. (...) Frequentemente, ao ler os 'Evangelhos da Infância', apetece-nos perguntar por que motivo Deus não interveio de forma direta e clara. Porque Deus intervém por meio de acontecimentos e pessoas: José é o homem por meio de quem Deus cuida dos primórdios da história da redenção; é o verdadeiro 'milagre', pelo qual Deus salva o Menino e sua mãe. O Céu intervém, confiando na coragem criativa deste homem que, tendo chegado a Belém e não encontrando alojamento onde Maria possa dar à luz, arranja um estábulo e prepara-o de modo a tornar-se o lugar mais acolhedor possível para o Filho de Deus, que vem ao mundo (cf. Lc 2, 6-7)".

A motivação e a felicidade de José diante da dificuldade, esclarece o Papa, "não se situa na lógica do sacrifício de si mesmo, mas na lógica do dom de si mesmo. Naquele homem, nunca se nota frustração, mas apenas confiança. O seu silêncio persistente não inclui lamentações, mas sempre gestos concretos de confiança". E acrescenta: "O mundo precisa de pais, rejeita os dominadores, isto é, rejeita quem quer usar a posse do outro para preencher o seu próprio vazio; rejeita aqueles que confundem autoridade com autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com destruição. Toda a verdadeira vocação nasce do dom de si mesmo, que é a maturação do simples sacrifício. Mesmo no sacerdócio e na vida consagrada, requer-se este gênero de maturidade. Quando uma vocação matrimonial, celibatária ou virginal não chega à maturação do dom de si mesmo, detendo-se apenas na lógica do sacrifício, então, em vez de significar a beleza e a alegria do amor, corre o risco de exprimir infelicidade, tristeza e frustração".

 

Natal: tempo de nos colocarmos espiritualmente a caminho

 

No Natal, diz o papa Francisco na "Carta Apostólica Admirabile Signum. Sobre o significado e valor do presépio", publicada em dezembro do ano passado, sétimo ano do seu pontificado, "somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d’Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com todo o homem, e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele".

Para o teólogo Leonardo Boff, o Natal "nos oferece a chave para decifrar alguns mistérios insondáveis de nossa atribulada existência. Os seres humanos sempre se perguntaram e perguntam: por que a fragilidade de nossa existência? Por que a humilhação e o sofrimento? E Deus silenciava. Eis que no Natal nos vem uma resposta: Ele se fez frágil como nós. Ele se humilhou e sofreu como todos os humanos. Esta foi a resposta de Deus: não por palavras, mas por um gesto de identificação. Não estamos mais sós na nossa imensa solidão. Ele está conosco. Seu nome é Jesus".

"Diante do mistério do menino", artigo publicado em 2018 no sítio do IHU, Pagola destaca o óbvio: "Os homens acabam por se habituar a quase tudo. Frequentemente, o hábito e a rotina vão esvaziando de vida a nossa existência". Essa condição se repete igualmente no Natal: "Estamos acostumados a ouvir que 'Deus nasceu num portal de Belém'. Já não nos surpreende nem comove um Deus que se oferece como uma criança. Esquecemos o que é ser criança. E esquecemos que o primeiro olhar de Deus ao se aproximar do mundo foi o olhar de uma criança". O que parece simples repetição para muitos é, para Pagola, "a grande novidade do Natal": "Deus é e continua sendo Mistério. Mas agora sabemos que não é um ser tenebroso, inquietante e temível, mas alguém que nos é próximo, indefeso, afetuoso, a partir da ternura e da transparência de uma criança. E esta é a mensagem do Natal. Há que sair ao encontro desse Deus, devemos mudar o coração, tornar-nos crianças, nascer de novo, recuperar a transparência do coração, abrir-nos com confiança à graça e ao perdão. Apesar da nossa terrível superficialidade, do nosso ceticismo e desencanto, e acima de tudo, do nosso inconfessável egoísmo e mesquinhez de 'adulto', sempre há nos nossos corações um recanto íntimo onde ainda não deixamos de ser crianças. Atrevamo-nos por uma vez a olhar-nos com simplicidade e sem reservas. Façamos um pouco de silêncio ao nosso redor. Apaguemos a televisão. Esqueçamos a nossa pressa, os nervosismos, as compras e os compromissos".

O cardeal José Tolentino de Mendonça nos convida a meditar sobre o mistério da vida de Jesus à luz do momento histórico em que nos encontramos, acolhendo e jamais esquecendo o sofrimento. "O mistério da vida de Jesus e da nossa própria vida tem que ser olhado na globalidade. A coroa de Natal não pode nos fazer esquecer a vida. O Natal não é uma alienação. O Natal é uma imersão festiva no sentido mais global da nossa vida. Na nossa vida cabe tudo; nossa vida é esse caminho completo. Por isso, no Natal é importante não esquecermos o sofrimento, o quinhão do sofrimento humano e, sobretudo, não esquecermos que este dom é uma grande responsabilidade que temos de assumir com todas as consequências que a ela [vida] estão inerentes", menciona. O dia 25, pontua, é o começo, o momento de lembrarmos que somos feitos para a festa e a alegria, "mas de fato é a encarnação de Deus, deste Deus que se faz presente conosco, o grande presente e a grande luz que se acende". O Natal, portanto, "é um tempo de reflexão e podemos gostar ou não das imagens e propostas, mas mesmo imagens que nos podem chocar um pouco, nos ajudam a não passarmos este tempo somente na celebração, mas a ter também um tempo de reflexão sobre o que significa o Natal e em que contexto do mundo nós celebramos este Natal, porque o Natal é de fato uma chama que ilumina a noite do mundo. É importante que tomemos consciência do mundo em que vivemos e daquilo que o Natal nos implica a fazer, de compromisso, de encontro, de ação transformadora", ressalta.

 

 

Esperança

 

A última semana do Advento ainda pode ser tempo de esperança e de crer no que há de vir, como expresso no poema "Esperanza", do cubano Alexis Valdés, publicado no livro “Vamos sonhar Juntos” (São Paulo: Paulus, 2020), escrito pelo Papa Francisco em conjunto com Austen Ivereigh, neste ano. O poema, comenta Francisco, "ilustra o caminho a um futuro melhor. Deixemos que seja a poesia e sua beleza que tenha sua última palavra; essa poesia capaz de nos ajudar a descentralizarmo-nos e transcendermos para que nossos povos tenham vida (Jo 10, 10)”.

 

 

 

 

 

Esperanza

Cuando la tormenta pase
Y se amansen los caminos
y seamos sobrevivientes
de un naufragio colectivo.

Con el corazón lloroso
y el destino bendecido
nos sentiremos dichosos
tan sólo por estar vivos.

Y le daremos un abrazo
al primer desconocido
y alabaremos la suerte
de conservar un amigo.

Y entonces recordaremos
todo aquello que perdimos
y de una vez aprenderemos
todo lo que no aprendimos.

Ya no tendremos envidia
pues todos habrán sufrido.
Ya no tendremos desidia
Seremos más compasivos.

Valdrá más lo que es de todos
Que lo jamas conseguido
Seremos más generosos
Y mucho más comprometidos

Entenderemos lo frágil
que significa estar vivos
Sudaremos empatía
por quien está y quien se ha ido.

Extrañaremos al viejo
que pedía un peso en el mercado,
que no supimos su nombre
y siempre estuvo a tu lado.

Y quizás el viejo pobre
era tu Dios disfrazado.
Nunca preguntaste el nombre
porque estabas apurado.

Y todo será un milagro
Y todo será un legado
Y se respetará la vida,
la vida que hemos ganado.

Cuando la tormenta pase
te pido Dios, apenado,
que nos devuelvas mejores,
como nos habías soñado.

 

 

Playlist do Advento

 

Para esperar o que há de vir com alegria, motivados também pelo editorial do National Catholic Reporter, publicado no início do mês e reproduzido no sítio do IHU, que nos convidava a montar a árvore de Natal mais cedo, mas também nos motiva a desfrutar novas leituras e músicas para "marcar a importância de uma espera, esperança e preparação – meditar sobre o fim dos tempos e a segunda vinda de Cristo", compartilhamos abaixo a playlist do Advento de Molly Mattingly, diretora do Ministério de Música da St. John's & Creighton University, divulgada por ela em artigo publicado na America, em 2018, e reproduzido pelo sítio do IHU naquele ano, e músicas brasileiras. "Minha playlist do Advento inclui músicas que me levam a crer na vinda de Cristo. 'People, Look East (Povo, olhe para o leste, em tradução livre) remete a uma preparação para receber Jesus com alegria em nossas casas. 'A Voice Cries Out' (Uma voz grita, em tradução livre) é estridente, insistente e definitivamente nada silenciosa - muito semelhante a João Batista em seu chamado para transformar nossas vidas numa forma de preparação para o encontro com o Messias. Entre meus favoritos estão: 'Find Us Read' (Encontre-nos Pronto), de Tom Booth; com 'The Angel Gabriel' (O Anjo Gabriel), um coral do Advento da região basca da Espanha que me faz lembrar do corajoso 'sim' de Maria, dando lugar para Cristo no mundo, e especialmente da música que descreve o Gabriel com 'Wings of drifted snow, his eyes as flame' (Asas como neve, olhos como chamas, tradução livre)".

 

 

     

 

 

  

  


Desde a sua origem, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU publica, em sua página eletrônica, artigos, entrevistas e revistas sobre a temática do Natal, em cada ano propondo uma abordagem diferente para refletir sobre o tempo presente. Abaixo, republicamos as matérias especiais dos dois últimos finais de semana do Advento e algumas entrevistas, publicações e edições da Revista IHU On-Line que podem nos inspirar na celebração deste Natal.

 

Matérias especiais sobre o Advento:

 

Revistas IHU On-Line:

 

Cadernos Teologia Pública: