01 Outubro 2020
"À medida que vamos ampliando nossas aprendizagens vamos aprendendo inclusive a nos posicionarmos mais e melhor. O fato de não estarmos mais seguros não deve ser o impedimento para nos posicionarmos. Ao contrário, talvez seja nesse momento, o momento mais necessário de alcance compreensivo sobre a existência humana, o valor da vida, e os destinos da humanidade", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo, doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul, bolsista de Produtividade do CNPq em Educação – Nível 2 e professor Colaborador da Universidade Internacional do Cuanza – Angola.
Assim como as estações mudam, à medida que a pandemia da Covid19 avança conseguimos aos poucos fazer as primeiras avaliações buscando significado existencial desse que é o maior fenômeno do século XXI. Esse fenômeno já integra desde as dimensões do mundo da vida, onde está o nosso arranjo existencial, cultural, nossas relações primeiras e afetivas, até o mundo do sistema, orientado por outra racionalidade sobre a forma em que se organizam os espaços e tempos na lógica do sistema capitalista.
Depois daquele grande impacto de sua chegada, dentre os movimentos que venho realizando um deles consiste, a partir dessa avaliação, buscar encontrar espaços de compreensões e aprendizagens sobre a pandemia da Covid19. Nesse sentido algumas aprendizagens vão sendo reafirmadas. Dentre as múltiplas que existem elegi 12 as quais compartilho com vocês não como portador de verdades, mas como esforço hermenêutico em buscar compreender que tempos são esses sempre pelo olhar da Educação Ambiental:
Resulta de uma fácil compreensão de que pensar na pandemia de Covid-19 é pensar na principal questão de nosso tempo. O que estou afirmando é de que a Covid-19 é uma espécie de apriori ontológico que muda o horizonte de prioridades e assume a centralidade em nossas vidas como o primeiro aspecto que antecede qualquer agenda sobre o presente e sobre o futuro. Portanto, querendo ou não esse apriori já está posto como o assunto primeiro a ser considerado em qualquer projeto.
A Covid-19 é um imperativo imposto a nossas vidas, mudando radicalmente nossa maneira de ser e de viver e conviver. Refletir sobre a forma imperativa da chegada da Covid-19 significa percebermos os novos ordenamentos que com ela chegam: tu deves ficar em casa! tu deves se isolar, deves reavaliar suas prioridades, deves cuidar mais dos que estão perto e dos que estão longe, pois a garantia tua vida depende da saúde da humanidade. Por isso deves mudar radicalmente seu modo de ser e de conviver. Feita essa avaliação num primeiro momento parece que essa forma imperativa é uma força estranha incontrolável e de que nada fizemos para tê-la. No entanto se avançarmos na avaliação, veremos as grandes vinculações e compromissos que temos na relação humanidade-natureza que contribuíram nessa chegada, principalmente pelo modo de produção capitalista adotado. Então, a chegada desse imperativo não resulta de causas espontâneas.
O cuidado para não naturalizarmos a morte. Essa aprendizagem, de certa forma é mais um alerta. Devemos estar muito atentos para não banalizarmos a vida e naturalizarmos a morte. Penso isso após termos assumido o epicentro da pandemia tanto na América Latina e no Caribe como a região com mais casos de contágios no mundo superando 8,3 milhões e mais de 313 mil mortes, quanto no Brasil com mais de 4,3 milhões de contágios e com mais de 142 mil casos mortes. Esses expressivos números não devem assumir um espaço de naturalização frente as pressões pelo retorno a suporta “normalidade”. Precisamos refletir densamente sobre essas vidas humanas e na vida de seus familiares amigos, parentes onde muitos nem sequer puderam velar seus entes queridos. Quantas aprendizagens e quantos legado podemos ter sobre a existência quando se mostra nesse nível de fragilidade. Desse modo, tenho reivindicado uma atenção ontológica sobre o sentido dessas perdas para quem fica e suplica ajuda. A não naturalização da morte reivindica tempo para assimilação disso tudo e não a aceleração e o aligeiramento.
A demarcação de um novo tempo. Entendo que a Covid-19 demarca o fim de um tempo e o começo de outro, portanto nossa vida terá referência a experiências pré-covid19 e pós-covid19. A pandemia da Covid-19 consiste no maior acontecimento extremo que demarca o século XXI. Se Hobsbawm definiu o século XX como a era dos extremos penso que a Covid-19 demarca até aqui o século XXI como a era do Antropoceno. Ela consiste numa grande patologia socioambiental e expõe como nunca o esgotamento do paradigma do modo de produção capitalista. E isso reforça a centralidade da questão ecológica como a principal questão política do nosso tempo com entendem os pensadores da vertente ecossocialista.
O sistema capitalista consiste num sistema de descuido com a vida. Essa não é uma aprendizagem nova. No entanto considero que a pandemia, como patologia socioambiental, aprofunda essa compreensão. Reforça igualmente que a crise atual é socioecológica e que transcende a dimensão epidemiológica como defendem igualmente (Lowy e Foster, 2020). Eles reforçam a aprendizagem de que o capitalismo é o principal responsável pela crise ecológica e com eles concordo. Esses pensadores vão além do descuido e consideram o sistema capitalista como um sistema de destruição da vida.
O novo normal não é novo...é “vinho velho em pipa nova”. Quanto a essa aprendizagem argumentei no texto já publicado Antinomias na concepção de novo normal: reflexões a partir do olhar da Educação Ambiental. Ali argumentei que o que estamos presenciando como novo normal, efetivamente, consiste numa tentativa de adaptação a práticas já existentes no contexto pré-covid19. Nesse sentido, sugiro a partir do pensamento de Paulo Freire, a perspectiva de aprendizagens que se dá pela inserção crítica e não pelo viés da adaptação. A perspectiva da adaptação acomoda, já a da inserção gera movimentos críticos e propositivos.
Os mais vulneráveis são prioridade. Os mais vulneráveis estão sendo os mais afetados em relação aqueles que possuem maiores condições econômicas. No início da pandemia surgiram algumas compreensões de uma perspectiva universalista. Em linha geral ela considerava que por ter esse alcance “global” todos estaríamos “no mesmo barco” pois todos poderiam ser afetados igualmente. A medida que a pandemia avança emergem posicionamentos de estudos sérios que denunciam com muita veemência essa compreensão. Estou fazendo menção aqui para apenas um desses estudos organizado pela Doutora Michele Sato Condenados da Pandemia onde 22 grupos sociais em situação de vulnerabilidade denunciam o falso discurso sobre a “democracia” do coronavírus. Acredito que podemos estar todos no mesmo mar, mas remando em barcos e em condições totalmente diferentes. Daí a necessidade dessa aprendizagem que considerando que o nosso maior problema é a desigualdade, reivindica, em qualquer que seja nosso projeto, considerar os mais vulneráveis como compromisso ético político. De quem estou falando? Da vulnerabilidade das mulheres, visto que em muitos contextos houveram o aumento da violência; moradores em situação de rua; domésticas, indígenas, quilombolas, LGBTQI+, PcD, dependentes químicos, povos de florestas, populações ribeirinhas, trabalhadores urbanos, prestadores de serviços, pequenos comerciantes, moradores de comunidades periféricas, população negra, pequenos produtores, entre tantos povos que reivindicam maior compromisso político de cada um de nós.
A lógica econômica, extrativista, capitalista não está de quarentena. Em toda a América Latina há fortes denúncias de que o modo de exploração e expropriação predatório agiu e continua agindo com maior força nesse período. Assim foi a sua atuação no aumento do desmatamento em toda a região amazônica e das queimadas, na pressão por aprovação de leis com grandes violências ambientais e no fatiamento fundiário da Amazônia com grandes compromissos e alianças cujos interesses estão a favor do aumento do poder e do lucro com o consentimento do atual governo. É uma lógica em favor da grilagem nas terras dos povos de florestas, comunidades tradicionais ribeirinhas indígenas e quilombolas. No que consiste a população urbana, ela está visível nos esforços para retorno de atividades que claramente colocam a vida em risco: retorno das aulas presenciais, retorno de público nos estádios de futebol, abertura de atividades onde necessariamente os que mais necessitam colocam suas vidas em risco. Além disso, aponta também para a necessidade de abertura de pontos de diversão. Essa é uma lógica orientada por uma racionalidade fria calculista e desumana. Ela pensa no resultado dos eventos e não no dano a vida de milhares de pessoas.
A incerteza está mais incerta. Fruto dos processos de colonização epistemológica eurocêntricos fomos educados a busca da segurança e da certeza. Basta analizarmos as verdades e dogmas medievos cujos endereçamentos apontavam para garantias regidas por verdades indubitáveis. Ali possuíamos verdades metafísicas. O pensamento científico moderno vai promover um deslocamento dessas verdades realocando num novo plano. Sobre as bases da perspectiva antropocêntrica e da figura do sujeito a modernidade cria a chamada metafísica da subjetividade (HERMAN, 1997). Esta também possui teleologias e grande otimismo sobre o futuro e as possíveis garantias universais estampada nos projetos de uma sociedade, autônoma, racional, livre, justa, igualitária e feliz. As suspeitas a esse paradigma já foram postas no próprio bojo da modernidade. Os sinais do não atingimento de tais finalidades já vem a um tempo colocados com suspeitas pelas perspectivas pós metafísicas. Em minha compreensão a Covid-19 decreta mais incertezas ainda e acelera a possibilidades de redescrições, ressignificações, reinvenções e reaprendizagens. De fato, esses são tempos de grandes incertezas principalmente sobre o porvir, o futuro, o ainda não.
Assumir posicionamentos. A medida que vamos ampliando nossas aprendizagens vamos aprendendo inclusive a nos posicionarmos mais e melhor. O fato de não estarmos mais seguros não deve ser o impedimento para nos posicionarmos. Ao contrário, talvez seja nesse momento, o momento mais necessário de alcance compreensivo sobre a existência humana, o valor da vida, e os destinos da humanidade. Estamos num momento de redefinição ontológica onde buscamos o sentido do que estamos vivenciando. Dessa maneira, ao invés do isolamento prefiro me posicionar pelo termo recolhimento onde acredito ser possível fazer um movimento compreensivo interno onde avalio a experiência e aprendo com ela com a humanidade inteira. Esse momento requer humildade ontológica pois sem dúvida iremos errar novamente buscando alternativas futuras. Requer igualmente abertura, escuta, diálogo e disposição para luta.
A necessidade da descolonização epistemológica na compreensão da Covid-19. A pandemia demonstrou como somos dependentes dos países desenvolvidos na tentativa de salvar a vida. Ao optar por estudar as injustiças socioambientais na América Latina e Caribe e a sua relação com o aumento da vulnerabilidade nesse período pude perceber a força que esse pensamento colonizador de saberes possui em nosso continente. De certo modo, esse pensamento está internalizado em nosso DNA cultural. Aprendi igualmente, o quanto temos alternativas e perspectivas de economias populares e solidárias, de agroecologia, de Buen Vivir, de movimentos que discutem sobre o futuro alimentar, bem como de alternativas para o futuro da água e de contestação dos hidronegócios. Na busca de maior autonomia de saberes latino americanos temos o caso de Cuba que enfrentou e está enfrentando a pandemia com maior autonomia. Trata-se de um exemplo de descolonização epistemológica que pode ser aprendido para ações futuras. Ou seja, já possuímos modos de ser e de fazer diferente que valorizam muito mais o nosso pertencimento e diminuem nossa dependência. Por isso não coaduno dessa perspectiva de “globalização regional” pois está orientada pela mesma lógica que denunciamos. A descolonização epistemológica permite encontrarmos soluções e alternativas próprias.
A luta é permanente. Nesse cenário de inseguranças e incertezas vislumbro movimentos que buscam acenar para a alguns rumos possíveis. Há um grupo com diagnóstico técnico afirmando que a Covid-19 é apenas uma de uma série de outras pandemias que teremos. Suas sérias análises acenam para um cenário onde teremos mais desencanto do que utopias. No entanto precisam ser levados a sério pois escancaram a gravidade da crise socioecológica. Para além de um fatalismo está a constatação que o planeta está doente. Há segundo grupo que reconhece as anomalias desse sistema de descuido coma vida e busca navegar pelo horizonte da utopia enquanto horizonte de movimento e luta no qual me insiro. Ao invés da constatação de que o diagnóstico do sistema capitalista chega a “gaiola de aço” de Weber e, realmente não há o que fazer, pretendemos acreditar que temos o martelo da conscientização da luta de Marx para continuar lutando tentando romper a referida gaiola. Essa é a perspectiva do Ecossocialismo que reafirma a aprendizagem de luta permanente e acena para perspectivas mais coletivas, cooperativas e solidárias de enfrentamento e ruptura com o sistema capitalista. Trata-se de uma perspectiva que considera o que aprendi com Paulo Freire que “a esperança é uma luta: enquanto luto eu espero, enquanto espero luto”. Ou se preferir Bernard Charlot “quem luta pode perder, quem não luta já perdeu”. Portanto, o nosso desafio é prosseguir lutando!
Em aspectos amplos foi esse convite que compartilho com você leitor (a) de que continuemos aprendendo a lutar juntos. Fica também o desejo de que possamos sair dessa pandemia com muitas aprendizagens. Essas aprendizagens podem no futuro assumir significados sobre o modo como agimos nesse momento onde a vida se encontra numa condição tão limítrofe e que por vezes nos escapa. Que possamos aprender a valorizar mais a vida no conjunto das nossas ações orientadas por outras ontologias.
FOSTER, J.B. Capitalismo de catástrofe: mudança climática, COVID-19 e crise econômica. Entrevista a Farooque Chowdhury. 2020. Disponível aqui. Acesso em: abril de 2020.
FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
HERMANN, Nadja. O polêmico debate da educação na contemporaneidade: a contribuição habermasiana. In: HERMANN, Nadja. A educação danificada: contribuições à teoria crítica. Vozes: São Carlos Universidade Federal de São Carlos, 1997.
LÖWY, Michael. Ecossocialismo, democracia e nova sociedade. Disponível aqui. Acesso em: 15 de maio de 2020.
PEREIRA, Vilmar Alves. O que será o amanhã? Educação ambiental na América Latina e Caribe, justiça Ambiental e COVID-19. Juiz de Fora, MG: Garcia, 2020.
SATO, MICHELE AMORIM, A. G. SILVA JUNIOR, A. A. MELLADO, B. Y. FERREIRA, C. R. SOUZA, C. F. S. PEDROTTI-MANSILLA, D. E. SANTOS, D. L. M. S. AMORIM, D. A. R. WILLMS, E. E. VALLES, E. A. BERTIER, F. L. NORA, G. GOMES, G. R. N. S. TAMAIO, Irineu SOUZA, J. P. T. REIS, K. F. M. SILVA, M. L. AMORIM, P. M. RAMOS, R. B. SILVA, Regina SIMIONE, R. M. JALES SENRA, Ronaldo Eustáquio Feitosa NARDI, T. C., et al. Os condenados da pandemia. 1. ed. Cuiabá: GPEA Sustentável, 2020. v. 1. 157p
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Aprendizagens na travessia da pandemia (covid-19). Artigo de Vilmar Alves Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU