"E quanto ao conceito de novo normal temos a seguinte definição: 'O novo normal, na verdade, seria a proposta de um novo padrão que possa garantir nossa sobrevivência'", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo, doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul e bolsista de Produtividade do CNPq em Educação – Nível 2.
Desde que ouvi pela primeira vez a expressão novo normal tive uma certa dificuldade em acolhê-la. Nesse sentido me questionei: será pela minha resistência? Será pela minha ignorância? Será pela minha dificuldade em discorrer sobre o porvir? Ou será pela minha incompreensão? À medida que o tempo vai passado a expressão torna-se uma reivindicação cotidiana em todas as dimensões da vida num contexto da pandemia da COVID19. Assim eu vejo e escuto a expressão em uníssono pelos economistas, administradores, gestores, educadores, cientistas, políticos, futurologistas de todos os campos do saber, enfim, talvez seja uma das expressões mais requisitadas.
Uma das minhas atribuições enquanto filósofo considero que meu fazer é o pensar. Dessa forma dediquei algumas horas para refletir sobre a expressão. Defendo que a expressão novo normal possui fragilidades, cujas antinomias já estão presentes no próprio nome. Conhecido e vasto campo da lógica filosófica, antinomias consistem “em paradoxos ou contradições insolúveis em sua maioria” (ABBAGNANO, 2018, p.70). Trata-se de uma terminologia que perpassa desde a lógica matemática clássica, até a lógica kantiana. Em apressada síntese, uma antinomia se caracteriza por uma afirmação e negação ao mesmo tempo, por isso se contradizem. No caso das antinomias kantianas é possível deduzirmos de que: “tanto a tese quanto a antítese de cada uma dessas Antinomias são demonstráveis com argumentos logicamente irrepreensíveis: entre uma e outra é, pois, impossível decidir” (ABBAGNANO, 2018, p. 73). Mas como isso se dá quando tomamos por referência a expressão “Novo Normal”?
Assim entendo que há um distanciamento entre o novo e o normal com o que se está buscando. Partindo dessa inquietação busquei a compreensão dos termos e, quanto ao primeiro, vemos que novo diz respeito: “ a um adjetivo referente aquilo que tem pouco tempo ou idade, recente, moço, jovem, de pouco uso, visto pela primeira vez, que acaba de ser adquirido” (LUFT, 2001, p. 482).
E quanto ao termo normal refere-se “1. Aquilo que está em conformidade com a norma. 2. Aquilo que está em conformidade com um hábito, com um costume, com uma média aproximada da matemática ou com um equilíbrio físico ou psíquico (...) servindo para indicar boa saúde mental ou física em um organismo”. (ABBAGNANO, 2018, p. 837). No caso de um paradigma a fase normal consiste, após sua adoção, nas atividades desenvolvidas pelos cientistas sob a diretriz de um determinado paradigma, num determinado período histórico que Kuhn (1997), denomina ciência normal. Trata-se de um período onde se acumulam descobertas e respeitos a pontos fundamentais. E quanto ao conceito de novo normal temos a seguinte definição: “O novo normal, na verdade, seria a proposta de um novo padrão que possa garantir nossa sobrevivência” (SCHIRATO, 2020).
Posto esses elementos volto para minhas inquietações: afinal do estamos falando quando reivindicamos um “novo normal”? Eu tenho a impressão que as referidas expressões já contem contradições no próprio nome. Ou seja, a contradição está na relação que se estabelece entre os nomes. Percebo também que a sua pretensão não está atingindo efeitos no mundo prática onde a vida é vivida e organizada. Desse modo, eu penso que a expressão é mais uma das nossas tentativas de adaptação do ser humano ao sistema e a lógica capitalista. No seu bojo a perspectiva de adaptação busca manter as velhas relações com o disfarce do verniz de inovação e mudança. Nesse sentido entendo ser mais uma expressão popular cuja antinomia já encontra no nome.
Se partirmos para o campo prático o que estamos vendo de mudança profunda no novo normal? Reabertura do comércio com as mesmas práticas em busca do lucro, aglomerações inúmeras nos espaços públicos com os mesmos hábitos do velho paradigma, a necessidade de a indústria voltar a produzir de forma acelerada para repor atrasos, as mesmas práticas de consumo, as mineradoras extrativistas não entraram em quarentena, ao contrário, nesse período houve muitas liberações de projetos de lei em desconsideração total a preservação ambiental. (Exemplos disso no Chile e no Brasil). Os trabalhos em home office mantendo maior vigilância do que na modalidade presencial em muitos casos, a precarização da profissão docente com exigência de um perfil apenas para produzir conteúdo e a pressão a pelo retorno presencial das aulas com o grande risco de penalizarmos as crianças em primeiro lugar. Somado a isso a ausência do debate sobre que propostas estaremos pensando para os mais de 220 milhões de pobres que teremos em nossa América Latina e Caribe.
Ao invés de novo normal, como educador popular e ambiental prefiro a reivindicação de novas aprendizagens para o mundo pós COVID19. Em primeiro lugar para tirar essa exigência de um “salto quântico” que na prática não existe; em segundo, pela compreensão e exigência de abertura enquanto densos processos de aprendizagem se realmente, de fato, almejamos a mudança. Nesse sentido apresento a seguir alguns aspectos que podem a contribuir nesse cenário de possíveis mudanças.
1. Cuidado com a repetição de velhas práticas com adoção da roupagem neoliberal da flexibilização
A Flexibilização consiste na terminologia da hora. No desespero e ansiedade por alternativas muitos tem aderido sem a necessária reflexão. Sugiro um esforço em refletirmos sobre o ponto de partida e o que se almeja com a referida flexibilização. Ela é oriunda da perspectiva neoliberal que defende entre tantas outras coisas que sejamos os próprios empreendedores de nossa trajetória numa perspectiva flexível, adaptável e rendável. Flexibilizar para quem? Talvez seja uma aprendizagem necessária que é bem diferente da abertura compreensiva, curiosidade epistemológica enquanto processo consciente, crítico e criativo.
2. Aprendizagem na capacidade interativa
A pandemia da COVID19 nos tem demonstrado duas grandes decorrências pedagógicas: a necessidade em sermos menos discursistas em nossas práticas educativas e a capacidade de escutarmos e interagirmos de modo mais dinâmicos. Esse é um esforço que não é fácil pois está internalizado em nosso DNA formativo o modelo professoral que professa a palavra pela via da exposição.
Não estou aqui jamais negando isso. Apenas estou considerando que o contexto que vivenciamos nos permite inclusive a nos darmos conta da pouca interação que estabelecíamos e da dificuldade que temos em interagir através da dinâmica das redes.
Nesse sentido tenho percebido três movimentos: o da repetição da exposição mais centralizadora, o da dificuldade de interagir e, então se pede que os educandos leiam o texto e comentem e um terceiro oriundo da educação básica de capacidade de interação permanente. Tenho percebido com as aulas do meu filho a dimensão interativa está presente nas práticas educativas.
3. A mudança da postura de isolamento para recolhimento
Tão logo fomos afetados pela crise, que é muito mais que sanitária, está relacionada a crise socioecológica do modelo de produção capitalista, a expressão que facilmente aderimos foi a do isolamento. Com muita verdade, devemos nos isolar e permanecer em isolamento” foi e continua sendo um grande imperativo. Proponho enquanto esforço ontológico de busca de sentido da nossa existência que utilizemos mais a terminologia recolhimento. Não basta apenas nos isolar, é preciso nos recolher e refletir sobre o sentido da vida e do nosso modo de ser e estar no mundo como possibilidade de promovermos mudanças. O isolamento realiza um movimento externo o recolhimento um movimento interior de onde podemos tirar boas, grandes e necessárias aprendizagens.
4. A necessidade da perspectiva solidária do trabalho em redes
Já possuímos no Brasil e no mundo excelentes grupos com trabalhos muito profícuos sendo realizados. No entanto, pela nossa correria cotidiana, muitas vezes não tínhamos tempos para perceber grandes ações e movimentos propositivos tanto de perto quanto de longe.
O contexto da COVID19 nos criou tempo, necessidades e possibilidades de reforçarmos aprendizagens, compartilhamentos, escutas, sensibilidades com inúmeros irmãos e irmãs nossas em diferentes pontos do globo. Essa sem dúvida tem propiciado a abertura de grandes portas, janelas e conexões que jamais imaginávamos.
Aprendemos inclusive a compartilhar mais, nos esforçamos, por exemplo, para estarmos de fato mais próximos não apenas com o grupo do WhatsApp dos nossos vizinhos, mas de longínquos pontos com interesses comuns. E mais importante ainda, com nosso olhar mais atento. Tenho participado de eventos desde duas pessoas até três mil pessoas pela conexão das redes. Por isso é importante avaliarmos o sentido dessas relações que estabelecemos e as aprendizagens que estão propiciando efetivamente.
5. Terminologia com sentido propositivo de novas aprendizagens
Tenho lido muitos textos nos quais aproveitam o contexto da COVID19 para falar sobre reaprendizagens, ressignificação, redescrição, reavaliação e redefinição. Esses textos são de expoentes como Boaventura Sousa Santos, Richard Rorty e Morin entre outros. Considero que estamos vivendo um momento de redefinição ontológica. Essa redefinição sugere que possamos trazer à tona as questões sobre o sentido da vida e do nosso modo de ser e estar no e com o mundo. Assim, penso que essas terminologias são muito adequadas para aqueles (as) que realmente buscam se colocar nessa perspectiva dialógica da aprendizagem.
O Convite de Rorty consiste em aprendermos a escrever de novo, por isso a redescrição como um esforço de construirmos novos modos de vida a partir de novas narrativas. De Gadamer podemos realizar o movimento linguístico dialógico de abertura, escuta, interpretação e compreensão visando busca de alargamento compreensivo sobre o que nos atravessa. Em linhas gerais são expressões que nos convidam a aprendizagens significativas cujo papel da educação assume centralidade nesses desafios.
6. A opção pelos mais vulneráveis
Em minha compreensão o maior desafio já posto pela COVID19 consiste em nos questionarmos sobre como estaremos reconhecendo em nossos inúmeros projetos o aumento da exclusão em nosso país e continente. A pandemia demonstrou claramente que os mais vulneráveis foram os que mais morreram. Demonstrou inversamente do que pensávamos, que estamos no mesmo mar, mas com barcos diferentes, em condições de remo desiguais. As patologias socioambientais estão indicando um número de 30 milhões de pobres a mais na América Latina e Caribe segundo os dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL. A COVID19 nos exige ainda mais, aprendizagens a perspectivas mais solidárias de reconhecimento das alteridades negadas e invisibilizadas historicamente. Estou falando pessoas em condição de rua; domésticas, indígenas, quilombolas, LGBTQI+, PcD, dependentes químicos, povos de florestas, populações ribeirinhas, trabalhadores, prestadores de serviços, pequenos comerciantes, moradores de comunidades periféricas, população negra, pequenos produtores, entre tantos povos que reivindicam maior compromisso político de cada um de nós.
7. A centralidade que a Educação Ambiental pode assumir nesse contexto
Penso ser essa uma questão bastante polêmica. De certo modo nos remete as possibilidades que temos de investirmos no futuro. E aqui reconheço dois grandes movimentos aqueles acreditam que pouco temos a fazer pelo avanço desenfreado dessa lógica antropocêntrica capitalista predatória, que não cuida vida e aqueles que acreditam em alternativas de mudanças, mesmo reconhecendo o grave quadro que indica inclusive para o surgimento de outras pandemias. Eu navego na perspectiva de uma Ontologia da Esperança na qual reconheço possibilidades críticas de resistir para existir. Nela o ser humano como aprendi com Freire, não deve ser um ser de adaptação, mas sim de inserção crítica sempre visando possibilidades de transformação coletiva das condições que nos oprimem. Por esse horizonte, reconhecendo a Educação Ambiental crítica como instrumento político temos o desafio aprendizagens para o enfrentamento do modelo da lógico do opressor. Este tem em sua ontologia um modo ser necrófilo. O desafio de uma Educação Ambiental em favor da vida consiste em enfrentar essa lógica pelo viés da conscientização individual e coletiva visando um projeto de mundo mais humanitário. Em meu olhar isso trata-se de um compromisso político da Educação Ambiental.
E como fica a questão das antinomias do novo normal?
Uma primeira consideração é de que se fosse novo não estaria repetindo as velhas práticas. Uma segunda, consiste em reconhecer que o tem aparecido como novo normal tende a operar com a lógica da adaptação e penso que isso é insuficiente para nossos grandes desafios. Nesse sentido sugiro o caminho das aprendizagens. Em terceiro lugar, considero que a mudança não ocorre de modo efêmero, portanto o estágio em que nos encontramos não é novo ainda. Talvez seja resultado da grande ansiedade humana por “segurança e normalidade”. Em quarto, o fato de não reconhecermos como novo não significa a negação da grande abertura para alternativas que não perpetuem “o velho canto da seria” da mesma lógica que orienta o capitalismo e alimenta as políticas e estratégias neoliberais. Finalmente enquanto continuar perpetuando o modelo de desenvolvimento com grande descuido com a vida, acredito que ainda teremos permanentes lutas em defesa da vida. Ainda não vejo esse “novo normal” em conformidade com normas e com costumes e hábitos. Vejo sim, bastante confusão como agir. E nesse horizonte a Educação Ambiental pode assumir um papel relevante no enfrentamento dessa crise socioecológica e na orientação modos de ser e intervir com proposições em defesa da vida. Trata-se de uma importante escolha que podemos estar fazendo nessas condições tão extremas.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
LUFT, Celso Pedro. Minidicionário. Editora: Ática; Edição: 20ª. São Paulo: Ática, 2000.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo:
Editora Perspectiva S.A, 1997.
PEREIRA, Vilmar Alves. O que será o amanhã? Educação ambiental na América Latina e Caribe, justiça Ambiental e COVID-19. Juiz de Fora, MG: Garcia, 2020.
SCHIRATO, Maria Aparecida Rhein. Novo Normal: entenda melhor esse conceito e seu impacto em nossas vidas. Acesso em: agosto de 2020. Disponível aqui.