30 Novembro 2020
"A centralidade da pessoa constitui o cerne que esta pandemia nos ensina e nos entrega. Enquanto estamos submersos pelo número de mortes, atrás de cada uma das quais há um nome, devemos aprender a medir a autenticidade da nossa fé em relação à nossa atitude de ser e nos contemplar como pessoas e, nessa perspectiva, ler a vida dos outros. Essa é a “lógica” do Evangelho, que a doutrina deveria espelhar em um sentido especulativo, não dogmático, verdadeiramente teológico e não apenas doutrinário", escreve Giuseppe Lorizio, padre e teólogo italiano da Pontifícia Universidade Lateranense, em artigo publicado por Avvenire, 28-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando o arcebispo de Manfredonia-Vieste-San Giovanni Rotondo, minha diocese de origem, teve de proceder ao fechamento do Santuário e do Convento de San Pio da Pietralcina, certamente com pesar, e acredito que com bastante hesitação inicial, motivou sua decisão com uma expressão, relatada pela “Famiglia Cristiana”, que à primeira vista pode parecer “forte”: “Perante esta situação de pandemia, não temos que salvar a fé mas os fiéis, não temos que salvar a prática, mas os praticantes”. A inspiração pastoral que se percebe nessas palavras não obscurece o sentido autenticamente teológico de uma escolha que, desde o início da pandemia de Covid-19, é característica da Igreja italiana, bem como da Igreja universal. O fiel é o lugar constitutivo da fé e o praticante, da prática, pois, se doutrina, culto ou moral se sobrepõem e mortificam a pessoa, não seriam expressão do Evangelho.
Apenas alguns fanáticos eventuais poderiam contestar essa opção, não apenas pela emergência que a impõe, mas pela motivação que a sustenta. E não deveria ser difícil perceber como ela está em perfeita coerência precisamente com a figura de São Pio, cuja atenção às pessoas concretas se expressou e viveu no exercício quotidiano do sacramento da reconciliação, com uma atitude um tanto rude e acolhedora, que no fundo simplesmente repropôs o paradoxo da lição do Evangelho. E a história nos testemunha toda a amargura e desconfiança que certa instituição clerical, na época, contrapôs à prática (porque não se tratava de teoria) do humilde capuchinho, que conheci durante a minha infância na sacristia do convento de fim da recitação do rosário vespertino. Enfim, Padre Pio encontrava as pessoas não as ideologias teóricas, porque sabia ler nos corações as angústias e esperanças, tanto para iluminá-las, como no caso do cientista Enrico Medi, em sua jornada. Assim, ele podia ter “filhos espirituais” e, desta forma, expressava a sua própria fecundidade ascética.
A expressão, usada pelo bispo Franco, a preocupação sábia e nunca apressada ou “de negócio” dos bispos italianos, também confirmada ontem por uma nota da CEI, refere-se a um tema central do magistério do Papa Francisco, feito de gestos e não de palavras, de atenção prioritária às pessoas, e não aos, ainda assim, importantes códigos doutrinários ou jurídicos. E nesse horizonte se mostra a superação da pastoral sobre a teoria, de forma a colocar a pessoa no centro, na sua identidade irredutível (a "última solidão" do Beato Duns Scotus), que nos remete a Jesus e ao seu estilo essencial.
Essa solidão radical só pode ser alcançada pela graça da misericórdia: a escolha que a abre à relação com o mundo, com os outros e com Deus. Se refletirmos sobre a centralidade da pessoa e sua irredutibilidade, podemos também nos confrontar com o mistério de um Papa que se conta (como nos últimos livros publicados), como habitado pelo perdão divino e que em tal relato pretende envolver os fiéis e muitas vezes consegue emocionar até os não crentes. Os seus “covid” são aqueles de todos. E aprendemos que os vírus podem ser enfrentados na solidão (doença, Alemanha, Córdoba) e na fé, onde emerge o primado da graça. Por que então se surpreender se o Papa cita Lutero, como se ele tivesse que escolher suas referências apenas no 'Denzinger'? Felizmente não o faz e também recorre ao Breviário do reformador: “Não deve acreditar que roubar significa apenas tirar ao teu próximo os seus bens; quando você vê seu vizinho com fome, sede, carências, que não tem casa, roupa e sapatos, e não o ajuda, você o rouba exatamente como quem rouba dinheiro de uma carteira ou da caixinha”.
Lutero ainda advertia: “Você tem o dever de ajudá-lo na necessidade. Pois seus bens não são seus; você é apenas o administrador, com a tarefa de distribuí-los a quem precisa”. A centralidade da pessoa constitui o cerne que esta pandemia nos ensina e nos entrega. Enquanto estamos submersos pelo número de mortes, atrás de cada uma das quais há um nome, devemos aprender a medir a autenticidade da nossa fé em relação à nossa atitude de ser e nos contemplar como pessoas e, nessa perspectiva, ler a vida dos outros. Essa é a “lógica” do Evangelho, que a doutrina deveria espelhar em um sentido especulativo, não dogmático, verdadeiramente teológico e não apenas doutrinário.
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A escolha dos cristãos. Covid: atenção prioritária às pessoas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU