23 Outubro 2017
No final dos anos 80, Jorge Bergoglio era um sacerdote com uma forte liderança entre os jesuítas mais jovens. Ele já havia sido a mais alta autoridade da ordem e algumas decisões que tomou lhe geraram detratores. Quando esse grupo assumiu a hierarquia, Bergoglio foi isolado e enviado à Córdoba. Javier Cámara, jornalista e biógrafo que investigou a história, fala sobre aqueles anos nesta entrevista.
A entrevista é de Nancy Castillo, publicada por T13 Semanal, 20-10-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Javier Cámara primeiro pensou que era uma piada de seu irmão, que também se chama Jorge e tem um grande senso de humor, quando num domingo qualquer atendeu o telefone que tocava no escritório de sua casa em Córdoba, na Argentina.
Fazia vários meses que esse jornalista de um diário provincial havia começado a investigar histórias que pudessem ser de interesse para seu público após a notícia de março de 2013, quando pela primeira vez o Vaticano elegeu um Papa da América Latina. O Papa Francisco, nascido e criado em Buenos Aires, havia vivido dois períodos em Córdoba: entre 1958 e 1960, sua etapa de noviciado, e décadas mais tarde, entre 1990 e 1992.
Enquanto Cámara buscava informações sobre esses períodos de permanência, foi percebendo que estavam faltando algumas peças desse quebra-cabeças. Depois de Bergoglio ter sido a mais alta autoridade da Companhia de Jesus na Argentina - nomeado Provincial entre 1973 e 1979, com apenas 36 anos -, e, a partir dessa posição, ter liderado a ordem durante a ditadura militar; e depois de haver liderado a formação dos jesuítas como reitor do Colégio Máximo em Buenos Aires (1980-1986), era, no mínimo, curioso, que ele tenha sido enviado à Córdoba para não fazer nada por dois anos. Algo não fechava.
Javier Cámara, então, continuou a investigar. No caminho, juntou-se a Sebastián Pfaffen, e começaram a trabalhar em um livro.
Em um desses domingos quaisquer em que o telefone de seu escritório toca, Cámara e Pfaffen pediram ao bispo da diocese de Córdoba - que visitaria o Papa Francisco -, que lhes contasse de sua investigação. O prelado o fez, e recuperou para eles um endereço de e-mail escrito à mão pelo Papa, em uma folha. Neste mesmo domingo, Bergoglio já havia recebido um e-mail dos jornalistas com o anteprojeto do livro.
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- Alô, sim?
- Javier Cámara?
- Sim, quem fala?
- Jorge Bergoglio.
- Padre! É você mesmo?
- Sim, você quer que eu diga em cordobês? - disse o interlocutor, em alusão ao sotaque tão particular que os cordobeses têm, distinto do resto dos argentinos.
O Papa Francisco estava ligando da Casa Santa Marta, no Vaticano, para dizer-lhes que, sim, ele estava interessado em dar uma entrevista e perguntar-lhes quando queriam fazê-la.
- Não sei, quando o senhor quiser.
- Pode ser amanhã, segunda-feira ou sexta-feira.
- Amanhã.
No dia seguinte, o Papa voltou a ligar e eles conversaram por 45 minutos. Outro dia houve outra entrevista de meia hora e, em diversas outras ocasiões, o telefone celular de Cámara tocou com uma mensagem na tela que dizia "número desconhecido". Era o Papa, querendo esclarecer ou aprofundar temas ou personagens que havia esquecido de mencionar. Essas conversas, mais a investigação jornalística, tornaram-se o livro "Aquel Francisco" (Editora Raiz de dos, 2014, ainda sem tradução para o português, NdT), a primeira investigação que se aproxima desse período da vida de Bergoglio e que o próprio Francisco chamou de "um tempo de obscuridade interior".
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Hoje Cámara atende o telefone a partir do mesmo escritório em Córdoba e está feliz, porque o Papa, justo hoje, voltou a responder-lhe um e-mail enviado há poucos dias, contando-lhe da sua viagem ao Chile. Lá, o jornalista participará do III Encontro Preparatório para Comunicadores, uma das tantas atividades prévias à visita do Papa Francisco.
No e-mail, Cámara pergunta-lhe sobre as recordações que ele mantém de sua passagem por este país, há mais de cinco décadas, quando era um jovem em plena formação jesuíta. O que o Papa lhe responde nesse e-mail será parte da conversa que o jornalista publicará na segunda-feira. O que está a seguir aqui é a entrevista com Cámara sobre aqueles anos de obscuridade em Córdoba.
No percurso que fizeram pela vida de Bergoglio, qual foi o período mais difícil que foi possível identificar?
Há dois momentos fortes de quando ele era sacerdote, que ele mesmo nos disse que haviam sido complicados. O primeiro, ao assumir a responsabilidade de ser o Provincial da Ordem dos Jesuítas (1973 à 1979) teve de dirigi-la no meio da ditadura militar. A situação do país era dramática e ele viveu de maneira particular, porque tinha de tomar decisões importantes. Ele tinha muitos de seus sacerdotes bastante comprometidos, pois trabalhavam nas vilas, ajudando pessoas muito pobres e ensinavam coisas que a ditadura militar não concordava, motivo pelo qual eram perseguidos. Nesses momentos, Bergoglio teve de tomar decisões que foram muito dramáticas, como no caso de dois padres jesuítas que foram sequestrados pela ditadura militar.
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Javier Cámara refere-se aqui à prisão dos sacerdotes Francisco Jalics e Orlando Yorio, que viveram cinco meses de tortura por parte da repressão, e cujo caso fez Bergoglio sofrer por décadas, pois seus detratores levantaram a questão quando ele foi eleito Papa, para que figurasse como se ele tivesse se posicionado ao lado a ditadura. No entanto, os depoimentos posteriores do próprio Jalics e de outras dezenas de resgatados por Bergoglio na ditadura, demonstram que o então provincial ajudou os perseguidos com ações temerárias, mas em silêncio.
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Cámara continua:
O outro momento que foi mais complicado para ele, não tanto por conta de uma responsabilidade política dentro da congregação, mas em si mesmo, por seu próprio discernimento como sacerdote, foi a parte que aconteceu em Córdoba, quando ele foi enviado para lá, entre 1990 e 1992. Por uma série de diferenças de opinião, mudanças feitas pelo novo provincial dos jesuítas, quando eles quiseram tirá-lo de vista.
Por que queriam isolá-lo?
Por que, naquele momento, Bergoglio tinha um papel muito importante dentro da província argentina jesuítica. As ordens dadas aos novos superiores não tinham força. Cada uma das decisões que esta nova administração Provincial (Víctor Zorzín) tomou, foram questionadas ou pelo menos revisadas por um setor, especialmente as decisões do jovem clero. Muitos deles consideravam Bergoglio como mentor espiritual e inclusive como padre espiritual, conselheiro, confessor. E eles iam até ele perguntar se ele concordava ou não com as decisões que estavam sendo tomadas, muitas vezes revertendo as decisões que ele próprio havia tomado como provincial.
A forma de tirar-lhe a influência foi enviando-o à Córdoba para não fazer nada?
Em nosso livro, o padre Andrés Swinnen - que foi o primeiro a sucedê-lo como provincial e que foi muito respeitoso com o que Bergoglio havia feito -, disse-nos: "Bergoglio foi enviado para Córdoba para que deixasse de atrapalha-los". As questões de poder, às vezes, são resolvidas desta forma.
Além de sua liderança debilitar as novas autoridades, Bergoglio, como Provincial, tomou decisões que foram gerando detratores, e quando estes ascenderam ao alto escalão da ordem, o castigo chegou. O que ele fez em sua gestão para gerar este ambiente contrário?
Os detratores começaram a se somar já quando ele era provincial e começou a tomar decisões fortes. Dou um exemplo que não é espiritual: quando ele assume a Universidad del Salvador, de Buenos Aires, tinha mais de um milhão e meio de dólares em dívida, e ele toma a decisão de desvincular a universidade da Companhia de Jesus. Muitos sacerdotes, irmãos e leigos davam aulas lá e acabaram perdendo seus empregos. E muitos tiveram um sentimento de que 'aquele homem nos tirou tudo'. Em Córdoba a ordem também tinha uma dívida importante e ele decidiu vender todo o edifício onde estava o noviciado. O edifício ocupava um quarteirão inteiro. Havia um templo imenso, mas que não havia sido terminado. Imagine que, até recentemente, aqui na região da paróquia - onde agora há um templo mais moderno -, para as pessoas que ficaram sem paróquia, a culpa era do padre Bergoglio. Isto foi gerando detratores, e bem, tanto nas congregações, quanto em qualquer lugar, estas problemáticas internas acontecem.
Entendo que Bergoglio tenha tomado decisões a nível doutrinário que também incomodaram. A Teologia da Libertação havia se expandido na América Latina e ele não era seu seguidor.
Ele efetivamente não estava de acordo, embora isso não se estendesse para toda a Teologia da Libertação, mas no que diz respeito aos seus fundamentos filosóficos marxistas. O que ele incentivou foi a Teologia do Povo, com o padre Juan Carlos Scannone, que havia sido seu professor e ainda ensina. Esta teologia, que se concentra nos pobres, não apresenta conceitos marxistas.
Na década de 1970, entre os jesuítas começou a se popularizar a vida em comunidade. Os sacerdotes iam para as vilas para viver em grupo e de lá seguiam seus estudos. Ele foi nomeado provincial para disciplinar a ordem?
Sim. Mas é preciso situar seu contexto: eram tempos muito difíceis para a Igreja na Argentina e no mundo; as mudanças posteriores ao Concílio ainda ecoavam na Igreja e havia uma evasão muito grande de sacerdotes. O Padre Swinnen, que era professor de jesuítas quando Bergoglio era provincial, recorda que 'assim que entravam (os noviços), eles saiam pela janela'. Bergoglio assume a responsabilidade de colocar alguns freios nesta história: 'esclareçamos as coisas, se somos sacerdotes, o modelo sacerdotal é este - pobreza, obediência e castidade'. Nesse sentido, ele tentou trazer ordem. E há aqueles que dizem que ele conseguiu e aqueles que dizem que não.
Depois de deixar a posição de provincial, Bergoglio foi nomeado reitor do Colégio Máximo. Que ações ele realizou de maneira a somarem-se mais detratores? Ele foi muito rigoroso com a disciplina na formação?
Naquela época ele também incomodou alguns dos alunos que estavam se formando como sacerdotes, porque os fez trabalhar a sério. Bergoglio é um homem que ainda desperta muito cedo e não para das cinco da manhã até às 10 da noite. Ele trabalha duro, é a sua maneira de levar adiante a sua pastoral, e a sua forma de conduta religiosa era assim. Um sacerdote cordobês, um jesuíta que não gostava muito de Bergoglio, contou-nos que ele o fazia limpar o chiqueiro dos porcos, porque naquela época o Colégio Máximo tinha um sítio. Outro sacerdote, o padre Ángel Rossi, disse-me 'sim, é verdade, ele nos fez limpar o chiqueiro dos porcos, mas o primeiro a sujar as mãos e se meter no barro era ele'.
Nas conversas que tiveram com o Papa, ele reconheceu ter cometido erros, o pecado da soberba? Porque, na verdade, a ordem se dividiu nessa disputa entre os que eram a favor de Bergoglio e os seus detratores.
Quando lhe perguntamos, ele não atribuiu o tema à sua soberba, mas à sua falta de experiência e por não ter consultado outros sacerdotes, como deveria ter feito. Nos disse que havia tomado algumas decisões precipitadas, e talvez por isso havia se desculpado, no início de seu papado, dando uma entrevista a um padre.
Como Bergoglio reagiu à decisão da hierarquia de mandá-lo à Córdoba?
Obedecendo.
Obedeceu, mas em seu julgamento interno ele não enxergava certo grau de injustiça no castigo que lhe foi aplicado?
- Perguntamos-lhe se ele considerava ou não injusto, e ele disse que há coisas que parecem ser injustiça, mas que não o são. Tenho certeza que ele não gostou de ser enviado à Córdoba. No entanto, ele veio e passou dois anos aqui trabalhando silenciosamente.
O que ele fez nesses dois anos em Córdoba?
Chegou sem responsabilidades e aqui começou a procurar coisas para fazer. Dedicou-se a estudar, a escrever, produziu um par de livros que foram publicados mais tarde, e também fez retiros espirituais. Ele lia muito: 18 volumes da história dos papas.
Tinha muito tempo livre, era como alguém que vivia isolado.
Por isso ele próprio diz que seu período em Córdoba foi um tempo de obscuridade interior, tempos de muita oração. Ele também atendeu a padres e irmãos jesuítas que estavam muito doentes. Fazia trabalhos domésticos como ajudar a lavar as roupas, fazer as compras da casa, e durante as manhãs, era porteiro da Residência Maior da Companhia de Jesus, que é um lugar que muitas pessoas visitam, por ser um lugar histórico que atualmente é patrimônio da humanidade. Certamente ele leu muito à espera que alguém tocasse sua campainha, chamando-o.
É verdade que enquanto Bergoglio pouco fazia em Córdoba, surgiram rumores de que ele estava louco?
Sim. Isso é o que conta o Padre Rossi, lembrando muito bem de um episódio que aconteceu por conta do falecimento de sua mãe. Eles estavam no velório, Bergoglio estava presente para rezar a liturgia fúnebre, e Rossi é abordado por um leigo muito apegado a vários dos padres jesuítas da comunidade daquela época, dizendo e olhando para Bergoglio: "Coitado, e pensar que um homem tão inteligente agora está louco"; e o Padre Rossi lhe diz: "Se ele está louco, o que sobra para mim?". Como se estivesse dizendo que ele não estava louco, nem nada parecido.
Neste período de reflexão tão profunda, ele chegou a pensar em se aposentar da companhia ou do sacerdócio?
Do sacerdócio acredito que não. Ele não respondeu-nos sobre isso, por isso esta é uma opinião minha. Mas imagino que do sacerdócio ele não deve ter pensado de maneira alguma, porque ele sempre teve muito clara a consciência de sua vocação sacerdotal. Agora, da Companhia de Jesus, sim, imagino que ele deve ter pensado em sair em algum momento.
O que aconteceu com o sentimento dos seminaristas ou sacerdotes que apoiavam Bergoglio e viram o castigo que lhe foi imposto?
Muito desgosto e também ações concretas. Por exemplo, o padre Guillermo Ortiz pediu transferência para não ficar aqui vendo o que estava acontecendo. Outros o assumiram como uma nova situação dentro da ordem, algo como um deserto que havia de ser atravessado.
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No dia 13 de maio de 1992 o destino mudou para Bergoglio. O clero secular, não a ordem jesuíta, veio à Córdoba para lhe socorrer. A hierarquia procurava um bispo auxiliar para Buenos Aires, que tivesse o dom de comando e boa relação com os padres que exerciam nas vilas miseráveis. Pediram ao Papa João Paulo II, que ordenou-lhe bispo, e surpreenderam Bergoglio com a notícia de que em menos de uma semana ele deveria estar na capital para ser ungido. Foi assim que Jorge Bergoglio iniciou o caminho na hierarquia que o levaria a ser o principal líder da Igreja Católica em todo o mundo.
Por que você acha que Francisco quis que este período obscuro de sua vida fosse conhecido?
Parece-me que era como um ciclo que ainda não havia se encerrado. Havia algo que devia ser posto pra fora e ele, como um homem acostumado a tomar decisões difíceis, a usar bem o poder, queria que isto fosse aberto, e que os que tinham algo a dizer também pudessem falar.
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O relato dos anos mais difíceis do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU