26 Novembro 2020
Quando o papa João Paulo II fez Theodore McCarrick cardeal em 2001, o arcebispo de Washington D.C, era um mestre para arrecadar fundos. Um ano depois, quando o Papa convocou os cardeais dos EUA a Roma para confrontá-los sobre a crise dos abusos sexuais, McCarrick liderou a conferência de imprensa – um movimento de destaque, dando sua revelação ao Washington Post e CNN que as acusações contra ele foram investigadas e eram falsas.
Nos anos seguintes, McCarrick viajou o mundo como um diplomata não oficial da Igreja, e os rumores espalhavam que ele dormia com seminaristas quando foi bispo em Metuchen e Newark, em Nova Jersey, usando uma casa de praia. Rumores que nenhum jornalista conseguiu comprovar.
A reportagem é de Jason Berry, publicada por National Catholic Reporter, 25-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
À medida que o cardeal cordial e alegre ganhava destaque na mídia, ele parecia estar em quase todos os lugares, até mesmo liderando orações na TV, como no funeral do senador Edward Kennedy.
E, no entanto, como sabemos agora a partir do relatório do Vaticano com 449 páginas sobre McCarrick, duas dioceses de Nova Jersey pagaram discretamente indenizações às vítimas em 2007. Em 2018, depois que mais processos e sobreviventes se manifestaram, um tribunal do Vaticano na Congregação para a Doutrina da Fé o considerou culpado de crimes morais. O papa Francisco aprovou a laicização de McCarrick, privando-o do status de sacerdote, e ordenou uma investigação sobre como McCarrick havia evitado ser descoberto por tanto tempo.
A tarefa de compilar esse relatório coube principalmente a Jeffrey Lena. Lena é um advogado que mora em Berkeley, Califórnia, que defendeu vários casos contra a Santa Sé em tribunais dos EUA.
Lena fez mestrado em história americana na Universidade da Califórnia, Berkeley, e depois mudou para a faculdade de direito, estudando em Berkeley e na Universidade de Milão. Ele começou a dividir seu tempo entre o escritório de advocacia em Berkeley e o ensino de direito em tempo parcial na Europa. Em 2000, passou a representar a Santa Sé como advogado de defesa em uma série de ações.
Em 2013, Lena prevaleceu quando um tribunal federal rejeitou um caso do Oregon movido pelo advogado Jeff Anderson em nome de um sobrevivente de abuso, alegando conhecimento direto do Vaticano sobre a história do perpetrador. À medida que a crise da Igreja se espalhava globalmente, Lena passou períodos cada vez mais longos em Roma.
Lena foi uma fonte de apoio para mim em viagens de reportagem a Roma; vários anos se passaram desde que eu o vi pela última vez, quando ele me ligou no início de setembro. Ele estava em Berkeley, impedido pela pandemia de voar de volta a Roma. Ele me disse que estava escrevendo o Relatório McCarrick.
Eu estava de férias em Santa Fé, Novo México, me escondendo do apocalipse – inundações em Nova Orleans, incêndios no oeste, covid-19 em todos os lugares. Lena refletiu sobre os céus em chamas, depois se dedicou à tarefa.
Ele queria informações sobre o impacto na mídia em 1994, quando um homem morrendo de AIDS retirou seu processo de abuso contra o cardeal Joseph Bernardin de Chicago, dizendo que não podia confiar em sua memória. Em Vows of Silence, Gerald Renner e eu escrevemos sobre a mudança noturna na cobertura de notícias de investigações de bispos ocultando abusadores para um novo foco: “falsa memória”, terapeutas charlatães, caprichos da mente.
Demorou quase oito anos para a série Spotlight de 2002 do The Boston Globe, antes que as redações voltassem a se concentrar na crise da Igreja, que nunca tinha realmente passado. The Globe desencadeou uma reação em cadeia da cobertura que levou os bispos a adotar uma carta de proteção à juventude em sua reunião de junho de 2002 em Dallas.
Circulando como um advogado em um depoimento, Lena não parava de me perguntar sobre as consequências dos eventos de Bernardin. Intrigado por ser uma fonte para um relatório do Vaticano, eu agradeci, fornecendo citações de fontes e comentários por telefone e e-mails, minha curiosidade sobre seu relatório foi aumentando.
Não ouvi mais nada até 12 de novembro. A Secretaria de Estado do Vaticano publicou o “Relatório sobre o conhecimento institucional e o processo decisório da Santa Sé em relação a Theodore Edgar McCarrick (de 1930 a 2017)”, sem listar nenhum autor. Consegui uma participação especial na longa nota de rodapé na página 215 sobre os eventos de 1994 supracitados.
O relatório é “histórico e sem precedentes”, disse-me o adversário de Lena, Jeff Anderson. Anderson, em um comunicado no site de sua empresa, deu crédito a Lena pela investigação.
Liguei para Lena para comentar; ele disse que não, referindo-me ao “registro factual”. Em outras palavras, faça sua própria análise.
Durante anos, argumentei em artigos e entrevistas que o Vaticano precisa de um judiciário independente para processar bispos negligentes e predadores. Francisco demitiu uma série de bispos, encontrou-se com sobreviventes, promoveu reformas no direito canônico.
O Relatório McCarrick treina uma lente forense no sistema de promoções e justiça confuso da monarquia religiosa. Para jornalistas, o documento é uma mina de ouro.
Em meados da década de 1990, conforme a cobertura da mídia diminuía, explica o relatório, três bispos de Nova Jersey não investigaram as acusações de seminaristas sujeitos a nauseantes pernoites em casas de praia com o “Tio Ted”. Lena cita David Gibson, então no Newark Star-Ledger, sobre a futilidade de tentar rastrear pistas sobre o comportamento de McCarrick.
O documento me fez ver quantas vezes McCarrick expressou sua simpatia por Bernardin como acusado injustamente, um mártir em vida. Claramente, este era McCarrick fortalecendo uma barreira para evitar acusações contra si mesmo. Agora com 90 anos, um leigo em reclusão, McCarrick nunca admitiu qualquer atividade sexual.
O relatório evita questões. Por que tantos bispos nos anos 1990 esconderam acusações de abuso sexual do clero? Eles foram encorajados a continuar os negócios como de costume depois de ver o retrato simpático de Bernardin pela mídia? Mais profundamente, que mensagem o papa João Paulo II enviou aos bispos naqueles anos?
O relatório cita uma notável carta de 1999 do cardeal de Nova York John O'Connor ao arcebispo Gabriel Montalvo, núncio papal ou embaixador do Vaticano em Washington, citando “graves temores e de testemunhas autorizadas” sobre a possibilidade de “escândalo e ampla publicidade adversa”, caso McCarrick fosse de Newark para Washington.
Isso abre uma rara visão sobre o funcionamento interno da estrutura de poder eclesiástica. Montalvo conta a McCarrick sobre sua situação precária. McCarrick envia uma longa carta ao bispo Stanislaw Dziwisz, secretário polonês de confiança de João Paulo II, declarando que ele nunca teve relações sexuais com ninguém. O momento desses eventos é impressionante.
Em 1999, Dziwisz e o secretário de Estado, cardeal Angelo Sodano, reforçaram o apoio de João Paulo II a outro pedófilo, o fundador da Legião de Cristo, Marcial Maciel Degollado. Em um caso de lei canônica de 1998 apresentado no tribunal da Congregação para a Doutrina da Fé do cardeal Joseph Ratzinger, oito ex-legionários (um deles um padre na Espanha) queriam testemunhar como Maciel os abusou sexualmente como seminaristas adolescentes.
O homem que liderou esse procedimento, o professor universitário da Cidade do México José Barba, foi a Roma, teve uma carta sobre suas queixas traduzida para o polonês e entregue a Dziwisz, suplicando-lhe que a compartilhasse com o Papa. Oito sobreviventes de agressão sexual queriam testemunhar.
Sodano pressionou Ratzinger para interromper a ação contra Maciel. A Legião deu presentes financeiros a Sodano, pelo menos 5 mil dólares de cada vez, como vários ex-legionários me disseram para uma série de 2010 da NCR. Um padre disse que deu a Dziwisz 50 mil dólares para acolher um benfeitor mexicano da Legião e sua família em uma missa particular de João Paulo II no Palácio Apostólico. Ele chamou isso de “uma maneira elegante de dar um suborno”.
O relatório do Vaticano sugere que João Paulo se lembrou de suas décadas na Polônia, quando a polícia secreta comunista tentou difamar padres com falsas acusações, aceitando assim a inocência de McCarrick.
O biógrafo de João Paulo II, George Weigel, agora argumenta que o Papa foi vítima de McCarrick, um mentiroso patológico. Um salto conveniente do segundo livro de Weigel sobre João Paulo II, “The End and the Beginning” (“O fim e o começo”, em tradução livre), no qual ele atribuiu o fracasso do Papa no caso Maciel a “mysterium iniquitatis”, o mistério do mal. Mas a recusa de João Paulo II em permitir que as vítimas de Maciel testemunhassem, enquanto ele continuava a elogiar Maciel em eventos públicos, cheira a negligência criminosa.
A grande questão evitada por Weigel é por que João Paulo II durante a década de 1990, enquanto recebia uma série de relatórios de bispos em muitos países, não agiu; ele se afundou em um casulo de passividade enquanto os escândalos de abuso do clero geravam notícias explosivas na América do Norte, Irlanda e Austrália. Repetidas vezes, ele recebeu informações sobre casos de bispos de todo o mundo de língua inglesa; a primeira onda de ações judiciais originou-se de sistemas jurídicos que permitiam investigar intimações de descoberta que levaram os bispos a liberar arquivos secretos.
Em 1993, O'Connor falou sem rodeios em um discurso em Roma no North American College: “Está ficando cada vez mais difícil para alguns padres e bispos levantarem suas cabeças. Todos estão sob suspeita”, relatou Cindy Wooden, do Catholic News Service, em 11 de março de 1993. “Um dano real está sendo causado em muitos casos – um dano realmente horrível”. Em 1999, ele denunciou McCarrick.
Durante os anos de McCarrick em Washington, ele doou 600 mil dólares para clérigos no Vaticano e em outros lugares – incluindo 90 mil de 2001 a 2005 para João Paulo II – que vieram do fundo privado de seu arcebispo. O caso Maciel ficou no limbo até dezembro de 2004, cinco meses antes da morte de João Paulo II, quando Ratzinger ordenou o testemunho dos sobreviventes. Que tipo de sistema de justiça é esse?
Em 2006, Ratzinger, como papa Bento XVI, baniu Maciel do ministério. Em 2008, Maciel morreu. Sem citar fontes, a Legião de Cristo afirmou que foi para o céu. Um ano depois, a Legião revelou seu choque total ao saber que Maciel gerou filhos fora do casamento.
A decisão de Bento XVI de colocar João Paulo II em um caminho rápido para a santidade levanta outra questão. Ele estava preocupado com a possibilidade de que esqueletos gerassem escândalos na mídia (como vemos hoje) caso o processo fosse prolongado? Por que a pressa?
E os homens que cercavam João Paulo II no Palácio Apostólico quando ele deu luz verde a McCarrick?
Sodano foi mais prejudicado pela cobertura da mídia por seu papel na defesa de pedófilos como o notório Fernando Karadima do Chile, que Francisco destituiu, e o cardeal de Viena Hans Hermann Groër, que renunciou quando ex-seminaristas beneditinos levantaram acusações contra ele em 1995. Sodano bloqueou qualquer movimento do Vaticano contra ele. Em dezembro passado, quando Francisco “aceitou a renúncia” de Sodano como reitor do Colégio Cardinalício, ele carregava consigo a bagagem.
O passado está perseguindo Dziwisz, que se tornou cardeal de Bento XVI e voltou para Cracóvia, Polônia. Seu histórico de abrigar os abusadores poloneses desencadeou um impressionante relatório investigativo, elaborado por Marcin Gutowski da TVN24 em Varsóvia.
“O relatório McCarrick fala muito sobre o apoio de Dziwisz ao cardeal agora destituído”, disse-me Stanislaw Obirek, diretor do Centro de Estudos Americanos da Universidade de Varsóvia, por e-mail.
O governo no poder, do partido Lei e Justiça, é de movimento nacionalista com forte apoio da hierarquia católica polonesa. Seu principal arquiteto é Dziwisz, que, como bispo de Cracóvia em 2010, mostrou um lado autoritário simpático a este governo que vem minando a democracia. Desde a sua tomada de poder político em 2015, Dziwisz tem mantido silêncio sobre o cinismo do governo em relação à defesa do papa Francisco para os refugiados e imigrantes. O mito do impecável papa João Paulo II e do seu simpático secretário polonês desmoronou. Ironicamente, devemos essa visão impiedosa de ambos ao papa Francisco por ordenar este relatório.
O Relatório McCarrick destaca um terceiro homem no Palácio Apostólico quando McCarrick fez seu apelo em 1999 que garantiria o chapéu vermelho de seu cardeal em Washington. Este era o bispo James Harvey, que se tornara o chefe da casa papal. Natural de Milwaukee, Harvey estudou em Roma e teve uma série de cargos no corpo diplomático da Santa Sé antes de se tornar bispo.
Em 2003, João Paulo II o elevou a arcebispo. Isso aconteceu um mês depois de uma reportagem do Dallas Morning News de 2003, de que Harvey havia ajudado um clérigo de Cincinnati, padre Daniel Pater a se tornar um diplomata da Santa Sé, apesar das acusações que surgiram na década de 1990 de ter abusado de uma menina de 14 anos. “O Vaticano conhecia a situação do caso”, disse uma porta-voz da arquidiocese de Cincinnati ao repórter Reese Dunklin do Dallas Morning News.
Dom Lawrence Breslin, de Cincinnati, disse a Dunklin que alertou Harvey sobre o histórico de Pater. Dom Breslin contou que Harvey lhe disse que a Secretaria de Estado (sob o comando de Sodano) sabia que o padre “tinha alguns problemas nos Estados Unidos e isso iria passar por cima”.
Conforme citado pelo jornal, Breslin afirmou: “Eu disse a este homem: ‘Isso não vai passar’”.
Breslin advertiu Harvey novamente, em 1999. O bispo disse a ele que o histórico de abusos de Pater significava que ele não seria elegível para um posto de núncio ou embaixador do Vaticano. Quando o jornalista ligou para ele para comentar, Harvey disse que não se lembrava das conversas com Breslin.
Quando o relatório de 2003 apareceu no Dallas Morning News, o Vaticano arrancou Pater de seu posto na Índia e o mandou de volta para os EUA.
Bento XVI fez de Harvey um cardeal; ele agora é o arcebispo, ou pastor, de uma das ilustres basílicas de Roma, São Paulo Fora dos Muros.
A história mais profunda por trás do Relatório McCarrick é a justificativa de Francisco ao divulgar um retrato devastador do funcionamento interno da hierarquia, exposto em prosa seca sem opiniões. A linguagem dos cardeais e bispos constantemente referindo-se uns aos outros como Sua Excelência e Vossa Excelência fala muito sobre os tapinhas nas costas aconchegantes de um mundo de elite, protegido das normas da justiça. Talvez, depois de anos ouvindo pessoalmente histórias angustiantes de sobreviventes e agindo como promotor de certos bispos, removendo ou destituindo-os antes do espetáculo de McCarrick, Francisco se sentiu – e não a igreja – inundado por patologias sistêmicas. Se nada mais, o documento é um tiro certeiro para os prelados que tentam proteger as páginas finais culpadas.
Anderson, que perdeu o caso do Oregon contra a Santa Sé para seu adversário legal, processou com sucesso dezenas de dioceses. Anderson ficou surpreso com o relatório. “O Vaticano contratou um advogado terceiro, não clérigo, para conduzir a investigação”, disse-me. “Demos a ele testemunhas para entrevistar. Lena reuniu um corpo extraordinário de evidências, algumas das quais nunca vimos, ao expor um sistema clerical que colocou crianças em perigo por décadas. Essas descobertas ajudarão os sobreviventes a buscar justiça”.
Três dias depois de falar com ele, Anderson anunciou o ajuizamento de uma ação em Nova Jersey contra a Santa Sé, em nome de quatro vítimas de McCarrick, pedindo ao Vaticano que liberasse os arquivos secretos dos perpetradores.
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Confissões de uma fonte do Vaticano sobre o Relatório McCarrick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU