16 Junho 2020
A ensaísta católica Christine Pedotti, conhecida pela sua posição intransigente sobre a Igreja, revisita o legado de um dos papas mais populares da história. E demole a sua imagem de “superstar”.
A reportagem é de Virginie Larousse, publicada em Le Monde, 10-06-2020. A tradução da versão italiana é de Moisés Sbardelotto.
Papa superlativo sob todos os pontos de vista, João Paulo II marcou profundamente a Igreja Católica e, mais globalmente, a era contemporânea. “Atleta de Deus”, “gigante do século XX”, Karol Wojtyla ficou famoso pela sua batalha contra o comunismo, a sua determinação em restaurar ao catolicismo o seu poder, sua capacidade de mobilizar milhões de jovens católicos no mundo inteiro – em particular, recordamos a Jornada Mundial da Juventude de Paris em 1997 –, a sua incansável atividade de viajante. Em uma palavra, o seu carisma.
Enquanto se comemora o centenário do nascimento desse papa feito santo menos de 10 anos depois da sua morte, se poderia esperar uma avalanche de livros celebrativos da sua memória. Ao invés disso, nada. Devemos ver nisso um desconforto em relação à avaliação do pontífice polonês?
É o que pensa a jornalista e escritora Christine Pedotti, que publica, com o historiador Anthony Favier, uma avaliação particularmente severa do pontificado do Santo Padre (“Jean Paul II, l’ombre du saint” [João Paulo II, a sombra do santo], Ed. Albin Michel). “Quinze anos após a sua morte – deploram os autores – os frutos daquele longo pontificado revelam-se terrivelmente amargos.”
Intelectual católica de esquerda, escritora e jornalista, Christine Pedotti dirige a redação da revista Témoignage Chrétien. Feminista, ela fundou, junto com a biblista Anne Soupa, o Comité de la Jupe. É autora de vários livros, incluindo “Qu’avez-vous fait de Jésus” [O que vocês fizeram com Jesus?].
O que os levou a querer revisitar o legado de João Paulo II, cujo pontificado (1978-2005) foi incensado até mesmo enquanto ele ainda estava vivo?
No início da nossa reflexão, Anthony Favier e eu nos perguntamos qual era a relação entre a crise na qual o catolicismo está imerso hoje e o pontificado de João Paulo II. Percorrendo o pontificado como um todo, evidenciamos uma coerência muito forte, escolhas políticas muito fortes, e essa é uma das bases do carisma excepcional de João Paulo II – para além do seu carisma pessoal. Escolhas, no caso específico, da reconquista de um catolicismo de poder, ao chegar ao trono de Pedro em plena crise do catolicismo.
Como novo pontífice, ele acredita que está lá para pôr fim a essa crise. Para fazer isso, opta por reinstaurar um sistema poderoso e profundamente centralizado, que não ratificará os elementos de colegialidade decididos no Concílio Vaticano II (1962-1965). E prossegue em um verdadeiro trabalho de rearmamento doutrinal com o cardeal Ratzinger, que ele logo chama ao seu lado. Ao longo das suas inúmeras viagens, ele imporá essa centralidade de país em país.
Você afirma que, restaurando a figura do padre em toda a sua sacralidade, João Paulo II teria preparado um terreno propício para os abusos sexuais. O que justifica essa conexão?
João Paulo II fez de tudo para fazer da figura do padre o elemento central do catolicismo. Ele exalta no padre o homem em contato com o sagrado, um ser à parte e acima da comunidade. No seu discurso, o padre nunca é apresentado como aquele que compartilha a palavra de Deus, mas como aquele que corta o céu para que o sagrado desça à terra. João Paulo II vê o padre como um alter Christus, um outro Cristo. Essa concepção tem um impacto nos outros escândalos da Igreja.
Sacralizando o padre até o fim, vivido como um ser de uma essência distinta da das outras pessoas e apoiando todas as comunidades – particularmente as novas comunidades – que compartilham essa visão, João Paulo II criou um terreno que favorecia os abusos sexuais que conhecemos.
Seja como for, é nessas três bases – rearmamento doutrinal, centralidade do padre e a sua sacralidade – que se fundamenta a coerência do seu pontificado. Há necessariamente danos colaterais: o papa apagou grande parte do trabalho teológico iniciado no Vaticano II, em particular tudo o que se assemelha, pouco ou muito, à teologia da libertação. Igualmente, os teólogos que defenderam que existem formas de sabedoria interessantes nas outras religiões do mundo foram condenados. Se, em 1986, os encontros de Assis – durante os quais Wojtyla reuniu 150 líderes religiosos representando uma dezena de tradições espirituais do mundo inteiro – fizeram alguns pensarem que o pontífice considerava as outras religiões com benevolência, na realidade essa abertura não era fundamentada por um ponto de vista doutrinal.
Na sua opinião, João Paulo II desmantelou os progressos do Vaticano II, que devia fazer a Igreja entrar na modernidade. No entanto, ele escolheu o nome daqueles dois papas que haviam liderado o Concílio, João XXIII e Paulo VI.
O sínodo sobre os 20 anos do Vaticano II, em 1985, destacou esse paradoxo, instaurando a “hermenêutica da continuidade”. Com grande habilidade, João Paulo II, auxiliado por Ratzinger, difundiu a ideia de que há uma continuidade na história da Igreja entre o pré-Concílio, o Concílio e o pontificado do papa polonês. Assumir o nome de João e Paulo é uma maneira de se inserir nessa continuidade, que, na realidade, é uma continuidade formal, e não no espírito. De fato, João Paulo II nunca questionará explicitamente o Vaticano II; ele só pegará do Concílio aquilo que lhe interessa, despojando-o do seu componente inovador.
Karol Wojtyla tornou-se pontífice em 1978, um período marcado pela libertação sexual e pela emancipação das mulheres. Qual foi a atitude dele em relação a essas mudanças sociais?
Também sobre esse ponto, João Paulo II se mostrou muito habilidoso, porque falava muitas vezes da dignidade e da igualdade das mulheres. É preciso ler atentamente os textos para se dar conta de que o que ele fala é sobre uma igual dignidade dos homens e das mulheres. O que, na sua maneira de entender as coisas, absolutamente não significa igualdade entre homens e mulheres, como ela é concebida nas nossas sociedades. Forçando um pouco as coisas, pode-se dizer que, para João Paulo II, existem duas formas de identidade distintas: a forma feminina e a forma masculina. Homens e mulheres têm, sim, uma igual dignidade, mas não a mesma igualdade, já que a das mulheres está ligada, em particular, à maternidade e, em menor grau, à virgindade.
Para ele, “a” mulher – uma vez que ele a essencializa – se reduz à sua função biológica. Ser mulher, para João Paulo II, é ser capaz de dar a vida e criar filhos. Ele ignora totalmente a sexualidade das mulheres na forma do desejo e do prazer. Para Wojtyla, o desejo das mulheres é ter filhos; o prazer das mulheres é ter filhos. É verdade que ele fala da sexualidade de maneira diferente dos seus antecessores, convidando os homens a respeitarem as mulheres. No entanto, aos seus olhos, se a sexualidade não está orientada para a possibilidade da maternidade, ela se situa na ordem do pecado e da concupiscência. Daí o imperativo de não exercer a própria sexualidade se não for possível conceber e a condenação dos meios de contracepção.
Mas, sobre esses temas, ele podia realmente privilegiar outras opções, já que a Igreja Católica se apresentava há séculos como a guardiã da família?
Na realidade, a Igreja nem sempre se posicionou desse modo. Foi com João Paulo II que se fixou a ideia de que, no coração da mensagem cristã, está a família e aquilo que ele chamaria de Evangelho da vida. Durante séculos, essa noção estava ausente dos discursos da Igreja. A partir desse ponto de vista, ele obteve uma vitória na opinião pública: hoje, aos olhos da maioria das pessoas, o catolicismo se resume na defesa da família.
Então, por que tal insistência em se tornar o defensor da família, enquanto Jesus se mostrou tão desconfiado em relação aos laços familiares (“Quem é a minha mãe? Quem são os meus irmãos?”, Mateus 12,48-50: “Quem não odeia seu pai e sua mãe não pode ser meu discípulo”, Lucas 14,26)? Observando que o seu poder estava se restringindo constantemente – perda de poder político, de influência na sociedade etc. – a Igreja se focou na esfera privada a partir do século XIX. A sua ambição: reconquistar a sociedade através da família, às custas de uma leitura sincera das Escrituras que, de fato, absolutamente não são “familistas”. A própria história da Igreja não o é: o convite a deixar pai, mãe e filhos por Cristo atravessará a Igreja até o século XIX; mulheres foram canonizadas porque deixaram seus próprios filhos para partirem como missionárias.
Além das mulheres, você afirma que o pontificado de Karol Wojtyla “perdeu muitas pessoas pelo caminho”: homossexuais, teólogos progressistas, cristãos não católicos... Como interpreta essa recusa em levar em consideração a evolução da sociedade?
Para compreender isso, é preciso analisar a relação de João Paulo II com a liberdade, marcada pela sua visão bastante pessimista da capacidade do ser humano de fazer um bom uso da própria liberdade. Com Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o papa polonês desenvolveu a ideia de que o ser humano contemporâneo, querendo exercer uma plena liberdade às custas daquilo a que Deus o chama, dá prova de orgulho – pecado por excelência. Aos seus olhos, todo o movimento de emancipação foi falsificado pelo orgulho humano, que, por vontade de onipotência, quis se livrar da lei natural, que é a lei de Deus. João Paulo II e o cardeal Ratzinger fariam uma releitura das tragédias europeias que são o nazismo e o comunismo como derivados de um pensamento sem Deus.
Por que João Paulo II, tão intransigente quanto à moral sexual, fechou os olhos obstinadamente para os graves abusos cometidos por algumas pessoas próximas a ele, particularmente Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, notoriamente conhecido por estupro, incesto, abusos sexuais de menores?
Ninguém sabe o que João Paulo II sabia ou o que aceitou saber. Algumas pessoas o defendem, afirmando que ele estava imbuído daquilo que ele havia vivido na Polônia – onde as autoridades políticas, quando queriam se livrar de um padre incômodo, o acusavam de pedofilia. No entanto, João Paulo II recebeu as vítimas de Maciel e se recusou a acreditar nelas, embora o contexto não tivesse nada a ver com o do comunismo.
Será que ele pensou em um complô contra Maciel?
Eu acho que, mais profundamente, ele não quis saber. Porque, na sua vontade de reconquista de uma Igreja de poder, ele deu origem a uma noção que eu chamo de “razão da Igreja”: um empreendimento de reconquista que pode trazer consigo danos colaterais. Lembremos que João Paulo II colocou o padre novamente no centro do sistema. Agora, com os Legionários de Cristo, Marcial Maciel oferece à Igreja verdadeiras falanges de reconquista. Todas as jovens comunidades que João Paulo II apoiou (Legionários, Opus Dei, Frères de Saint-Jean) têm essa característica, de terem lhe apresentado falanges de jovens padres, uma espécie de braço armado da reconquista. Para ele, esse era um sinal do renascimento. Isso explica que ele, sem dúvida, ele preferiu fechar os olhos e ignorou, em uma cegueira trágica, os fenômenos de influência/dependência muito pesados que geraram os casos de pedofilia.
João Paulo II sabia de Marcial Maciel. Portanto, é muito desconcertante ver que a última cerimônia presidida pelo pontífice, em novembro de 2004, foi a celebração dos 60 anos de sacerdócio de Maciel. Essa cerimônia verdadeiramente faraônica, realizada em São Paulo Fora dos Muros, era quase uma canonização em vida de Maciel. Um grande ausente naquela cerimônia: Joseph Ratzinger, que havia dito que estava doente.
Lendo o que você escreve, tem-se a impressão de que Bento XVI, que também não goza de uma reputação progressista, foi em vários pontos mais lúcido e decisivo do que o seu antecessor...
Correndo o risco de escandalizar certas pessoas, devo dizer que Ratzinger era intelectualmente muito mais preparado do que João Paulo II. Este último era um político imenso, mas não um grande teólogo – por isso, apelava a Ratzinger. Eles compartilhavam ideias comuns, mas também tinham fortes divergências. Devemos apreciar a coragem de Ratzinger, que, tornando-se papa, sabia o que estava escondido debaixo do tapete do seu antecessor. Incluindo o fato de que, quando o papa polonês estava muito doente, outros estavam governando. Ora, entre esses outros, havia também pessoas pouco recomendáveis, em particular o cardeal Sodano, um ex-núncio pró-Pinochet no Chile, que estava envolvido em assuntos poucos transparentes.
Você atribui a João Paulo II uma grande parte da responsabilidade na desafeição em relação às Igrejas. Mas esse descontentamento não era inevitável em uma Europa marcada pelo desenvolvimento do individualismo e na qual muitas pessoas não se reconhecem mais em sistemas dogmáticos e centralizados?
Certamente, essa tendência já existia antes de João Paulo II e continua ainda hoje. O problema é saber em que estado a Igreja Católica está hoje para enfrentá-la. Como grande parte da inteligência foi completamente enfraquecida pelo rearmamento doutrinal de João Paulo II, o catolicismo se encontra em um verdadeiro deserto teológico. Os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI duraram quase 40 anos, durante os quais o mundo mudou incrivelmente. Ora, houve uma espécie de glaciação na Igreja Católica, particularmente na questão das mulheres e da homossexualidade. Aquilo que podia ser compreensível em 1978 não é mais hoje, daí decorre a grave situação em que a Igreja se encontra: há tão pouca flexibilidade que a ruptura é um risco efetivo.
Além disso, na sua vontade de restaurar o poder da Igreja, João Paulo II produziu uma quantidade extraordinária de textos normativos, contribuindo para um enrijecimento, em particular o Catecismo da Igreja Católica. É ainda mais difícil mudar as coisas hoje, pois o pontífice quis atá-las pela eternidade e também tentou impor o dogma da infalibilidade papal – especialmente nas questões da contracepção e do papel das mulheres. Paradoxalmente, querendo fortalecer a Igreja, João Paulo II a tornou frágil, porque perdeu flexibilidade – ela já não a tinha, mas o Vaticano II havia lhe devolvido uma forma de fluidez que foi claramente bloqueada.
Nesse equilíbrio vitriólico, quais são os sucessos que você reconhece a esse longo pontificado?
Há um ponto em que a contribuição de João Paulo II foi um salto formidável: as relações com o judaísmo – e devemos lhe reconhecer isso. Há algo de muito singular nesse papa polonês totalmente livre de antissemitismo, o que já é algo excepcional por si só. Isso vai muito além da declaração Nostra Aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, promulgada em 1965. Wojtyla demoliria totalmente a teologia da substituição (segundo a qual o cristianismo teria se substituído na aliança com Deus ao judaísmo, já que este último havia rejeitado a identidade messiânica de Jesus), que havia sido o terreno fértil para o antijudaísmo e, depois, para o antissemitismo. Se existe uma razão para a sua canonização, eu acredito que seja por esse aspecto.
Não se pode negar que ele conseguiu mobilizar multidões de jovens, principalmente na Europa.
Certamente ele favoreceu o dinamismo de elementos da Igreja Católica, pelo menos nos países ocidentais. Mas são precisamente aqueles que hoje estruturam a parte identitária do catolicismo. Esse fenômeno do crescimento identitário não é específico ao catolicismo, que, a meu ver, não constitui uma contracultura. Essa religião é um universalismo em sentido profundo: o seu gênio foi ser uma máquina extraordinária para incluir e absorver as culturas.
O que me entristece hoje é ver que o pertencimento a essa religião se torna um tema identitário, razão pela qual quem não concorda é convidado a ir embora! Perverteu-se a alma profunda do catolicismo, que tem por vocação incluir o maior número de pessoas possível, especialmente nas margens – historicamente, as pessoas nas margens geralmente foram portadoras de novas inteligências. Estou muito preocupada com o catolicismo: uma parte dos “identitários”, em nome do legado de João Paulo II, quer se tornar cada vez mais um grupo de “puros”, que eliminam aqueles que são considerados insuficientemente católicos.
Durante o procedimento que levou à sua canonização em 2014, alguns problemas do pontificado de Karol Wojtyla já eram conhecidos, pelo menos no Vaticano. Como podemos explicar que essa canonização pôde ser tão rápida?
A minha leitura disso é muito política. De certa forma, canonizar João Paulo II significava colocá-lo na vitrine, fechar a porta e jogar fora a chave. A vontade de canonizá-lo às pressas foi uma maneira de proibir o inventário que Anthony Favier e eu tínhamos começado a fazer e que outros continuarão quando os arquivos forem abertos daqui a 50 anos. Além disso, algumas pessoas que participaram da canonização queriam defender os próprios atos, quando governavam no lugar do pontífice no fim da sua vida. Jogou-se a capa de Noé para cobrir essa parte do seu pontificado. No dia da canonização, fiquei impressionada com o rosto muito fechado do Papa Francisco: ele sabia o que estava fazendo.
Como o “inventário” de vocês foi acolhido nos ambientes católicos?
Para algumas pessoas, João Paulo II é um personagem que não pode ser tocado. Eu ouço dizer: “Como você ousa, já que ele é santo?”. João Paulo II é uma “vaca sagrada”, e, portanto, eu me exponho a ser considerada como uma blasfemadora. Dito isso, eu recebi retornos de pessoas informadas que consideram que esse trabalho devia ser feito e que é equilibrado. O nosso livro não é um panfleto, mas a crise é grave.
Diante desta crise, qual o futuro do catolicismo?
O início do pontificado de Francisco parecia fazer soprar um vento de reforma. Mas ele parece estar perdendo o ritmo e não querer enfrentar temas importantes, como o do diaconato das mulheres, dos divorciados em segunda união ou o da ordenação de homens casados.
Eu não duvido da determinação de Francisco no começo. Ao mesmo tempo, o canteiro de obras das reformas é extremamente difícil de levar em frente. Será que ele jogou a toalha, achando que já fez o bastante e que caberá a outros continuar? É possível. Mas, com toda a evidência, as resistências são tamanhas que Francisco não sente ter a força para superar esses obstáculos.
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Quinze anos após sua morte, aura de São João Paulo II empalidece. Entrevista com Christine Pedotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU