15 Outubro 2020
"Oxalá, outubro inaugure novas possibilidades de vida e luta, para além das urnas; que façamos vida das palavras que hoje nos animam, pela erradicação do vírus neoliberal que tem nos matado nas redes, nas ruas, nos hospitais e nas prisões; e finalmente, que no recorrido zapatista por mares e céus, Francisco possa encontrá-las e dançar em 2021", escreve Lucas H. P. Duarte, mestrando em Teologia na PUCPR e agente de Pastoral Carcerária na Arquidiocese de Curitiba.
O mês de outubro de 2020 iniciou. Já são pelo menos 7 meses que estamos submetidos ao isolamento social, e aos poucos vão se retomando atividades “essenciais” de consumo, sempre com máscaras e álcool em gel. Ainda não sabemos se este é o tal novo normal. O certo é que os pobres seguem se sacrificando para manter as engrenagens “essenciais” e os ricos irresponsavelmente gozam. Já são muitas as mortes pelo novo coronavirus e pela velha polícia, e outros vírus e parasitas. Nessa convivência pacífica com a morte, que há tempos nos acompanha – por aqui desde 1500, pelo menos – seguimos contando os corpos e remediando os feridos, e sobrevivendo sem atacar a raiz dos males que nos atingem.
Em meio a isso – e muito mais – nosso mês se iniciou com a publicação do Papa latino-americano Francisco, desde Roma, convocando toda a comunidade internacional a uma fraternidade aberta. Igualmente, Subcomandante Insurgente Moisés, desde o México, anunciou que delegações zapatistas sairão das montanhas do sudoeste mexicano em “busca do que nos torna iguais”. Trata-se de duas publicações distintas em formato, mas que merecem ter seu conteúdo lido em conjunto.
Ambas apresentam a aberração do progresso neoliberal e seu individualismo extremo, aprofundado com a COVID-19, e concretamente expresso em discursos e políticas fechadas, racistas, supremacistas, nacionalistas como problema real e imediato de colonização cultural para nossa geração por sua produção de mortes. Enquanto Francisco destaca que vivemos uma terceira guerra em pedaços com diversos conflitos formais e informais em curso, onde a vida humana é relativizada e inúmeras formas de injustiça persistem, graças a “visões antropológicas redutivas e por um modelo econômico fundado no lucro, que não exita em explorar, descartar e até matar o homem” (n. 22); Moisés enfatiza o pedaço dessa guerra que ceifa, em nome do progresso e do desenvolvimento, a vida de mulheres, pois “os assassinatos de mulheres não têm outra lógica criminosa senão a do sistema […] quanto mais “desenvolvida” for uma sociedade, maior será o número de vítimas nesta verdadeira guerra de gênero”. Não se trata, portanto, de questões contextuais ou locais, ou um mero desvio do Capital e de seus aparelhos de Estado, mas seu funcionamento pleno, muito bem lubrificado pelo nosso sangue.
Entre as sombras do nosso tempo, as reflexões fazem eco – ouvem e veem – rebeldias, resistências e esperança, de que a saída, ou freio de emergência desse trem do progresso, para usar uma expressão de Walter Benjamin, é coletiva e plural, como “o milho original, muitas são suas cores, seus tons e sons”. “As soluções não estão na fé dos governos nacionais” nem a fé neoliberal "pobre, repetitiva, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja” (168). Contra a produção de morte e práticas de descuido, a vida se afirma imperiosamente e se manifesta em opções fundamentais, como reflete Francisco na parábola do bom samaritano: “quem não é salteador e quem não passa ao largo, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido”. Trata-se da manifestação concreta da solidariedade, “o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral” (118).
Tanto Francisco como Moisés destacam que é momento de se encontrar, o papa propõe um amor social como “força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje […]” (183) e o diálogo, que não silencia as violências dissimuladas, mas promove um desenvolvimento humano integral, desde os de debaixo, pelos pobres, pelos mais atingidos, pelas vítimas, “sempre há de se partir dos últimos”, enfatiza (235). Por outro lado, Moisés poeticamente anuncia que “é tempo novamente para os corações dançarem” e por isso, delegações zapatistas “sairão para viajar pelo mundo, caminhar ou navegar para terras, mares e céus remotos, buscando não diferença, não superioridade, não afronta, muito menos perdão e piedade,” para entre outras atividades dizer ao povo espanhol que eles não foram conquistados, seguem em resistência e rebeldia e não querem perdão por nada, pois não querem brincar com o passado "para justificar, com demagogia e hipocrisia, os crimes atuais e contínuos”, ao lado dos “falsários que usam nosso sangue e assim escondem o fato de que suas mãos estão manchadas com ele”. Não há o que lamentar, não há razões para alimentar nacionalismos, ódios, xenofobias e negação do outro. O subcomandante insurgente não deseja as razões dos neoconservadores e neoliberais que atentam contra a vida, que confundem justiça e vingança; no mesmo sentido o papa insiste que Deus não precisa ser defendido por ninguém e que Seu nome não deve ser utilizado para aterrorizar, em discursos e práticas que negam a transcendente dignidade humana.
Com certeza há outras leituras a serem feitas. Outros olhares podem destacar outros encontros e desencontros, que merecem ser explorados e aprofundados. E, outros textos, vozes, sons, símbolos e linguagem podem contribuir para construção de diálogos e solidariedade. Fica evidente que se o sistema insiste em nos fragmentar e nos impor modos individuais de sobrevivência, a organização e a união fraterna, a saída ao encontro, a construção de um projeto comum que respeite todas as formas de vida é a saída, pois “a cura, se existe, é mundial, e tem a cor da terra, do trabalho que vive e morre nas ruas e bairros, nos mares e nos céus, nas montanhas e em suas entranhas”, e como reza Francisco, “Que nosso coração se abra / a todos os povos e nações da terra, / para reconhecer o bem e a beleza / que semeastes em cada um deles, / para estabelecer laços de unidade, de projetos comuns / de esperanças compartilhadas. Amém”.
Oxalá, outubro inaugure novas possibilidades de vida e luta, para além das urnas; que façamos vida das palavras que hoje nos animam, pela erradicação do vírus neoliberal que tem nos matado nas redes, nas ruas, nos hospitais e nas prisões; e finalmente, que no recorrido zapatista por mares e céus, Francisco possa encontrá-las e dançar em 2021.
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Somos todos irmãos e irmãs em resistência e rebeldia: uma leitura de "Fratelli Tutti" e de "sexta parte: uma montanha em alto mar" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU