15 Outubro 2020
"Para além de um texto de grande rigor argumentativo, Fratelli Tutti nos sugere que possamos viver a vida sobre outra dimensão axiológica e nos coloca grandes desafios de convivência, num mundo ainda marcado por competitividades e isolamentos aonde ser fraterno caiu no esquecimento, por isso sugere: 'uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita'", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo, doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul, bolsista de Produtividade do CNPq em Educação – Nível 2 e professor Colaborador da Universidade Internacional do Cuanza – Angola.
"Convido à esperança que nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive. Fala-nos duma sede, duma aspiração, dum anseio de plenitude, de vida bem-sucedida, de querer agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o espírito para coisas grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor. (…) A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna (Francisco, Fratelli Tutti, 2020)" [1]
Em meio a tantas reflexões decorridas do cenário da Pandemia da Covid-19 tirei um tempo para ler a nova Encíclica Papal de Francisco onde encontramos grandes possibilidades de redefinição ontológica sobre o modo como convivemos e habitamos o nosso planeta. Nesse sentido, meu olhar singelo não possui o alcance teológico de grandes especialistas. Trata-se de um esforço hermenêutico-compreensivo de alguns aspectos de um texto com dimensões universais. Estou fazendo menção aos grandes temas da humanidade e de nosso tempo que são pautados a luz de uma outra ontologia existencial que nos convida ao estabelecimento de novos modos de ser e de conviver. Assim considero uma ontologia mais que uma teoria sobre o estudo do ser, como um modo de ser e de estar no mundo.
Para além de um texto de grande rigor argumentativo, Fratelli Tutti nos sugere que possamos viver a vida sobre outra dimensão axiológica e nos coloca grandes desafios de convivência, num mundo ainda marcado por competitividades e isolamentos aonde ser fraterno caiu no esquecimento, por isso sugere: “uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020). Associado a isso e alargando essa proposição ontológica, reivindica à fraternidade e à amizade social. Para isso toma como referência o exemplo de Francisco de Assis que em seu modo ser estava conectado com todos universalmente. Pelo seu exemplo, Francisco conclama igualmente a humanidade ao valor da humildade fraterna com aqueles que não comungam dos mesmos credos.
A Encíclica nos mostra que nessa busca de fraternidade é que o sol de Assis comunicava, o amor de Deus. Nos mostra também a compreensão de um Deus que é amor e quem ama nele permanece. O pontífice aproveita para reivindicar, a partir disso o reconhecimento da igualdade perante Deus e a necessidade de melhorá-la na convivência: “criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos” (Francisco, Fratelli Tutti, 2020). Mediante a um contexto onde existem diversas formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, nos desafia a capacidade de reagir com um novo sonho de fraternidade e “amizade social” que não se limite a palavras.
Importante perceber no texto a forte denúncia sobre o quanto as tendências do mundo atual dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal. Dentre as inúmeras tendências denuncia “os nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”. E os considera causadores de muitas injustiças a milhares de humanos. Igualmente denuncia a lógica financeira como uma lógica de grande descuido com a humanidade. Em suas palavras ela é criadora de uma outra cultura: “Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (Francisco, Fratelli Tutti, 2020).
Entre tantos elementos que limitam a dimensão ontológica do ser, Francisco chama atenção para o fim da consciência histórica e o empobrecimento da experiência humana, que no sistema capitalista, assume outros endereçamentos ao perder a noção do tempo histórico, da memória e da busca de utopias. Essa concepção cria malogros a existência humana que se perde num presente incompreensível onde perdemos o endereço da vida. Agindo individualmente, motivado pelo sistema entramos numa luta de interesses que nos coloca numa situação de competição em projetos individuais e cujo desaguar está na ausência de um projeto para todos.
Nessa nova ontologia, Francisco reivindica um modo de viver a vida onde as pessoas não sejam descartadas. Para ilustrar, cita a questão dos idosos abandonados e que foram descartados na pandemia para morrer, os desempregados, e o aumento da pobreza, das situações de racismo, num sistema com grande descuido com pela vida.
Esse modo de ser e de conviver produz na lógica capitalista uma ontologia com “medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias”. A denúncia das novas barbáries pela lógica dos novos conflitos. Na raiz dessa ontologia do medo, destaca “a solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias”. E ao invés disso propõe uma cultura do encontro, superando o que já denunciamos em outros artigos como a cultura do isolamento: “o isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Acredito sim que a lógica do isolamento sempre gera novos distanciamentos”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020)
De grande riqueza e atualidade são os temas abordados na referida Carta. Eles vão desde a consideração das migrações que conforme o pontífice “constituirão uma pedra angular do futuro do mundo” até o nosso modo de ser e de se relacionar no horizonte das redes sociais tanto individual, quanto coletivo. Dessa forma, denuncia os “movimentos digitais de ódio e destruição não constituem – como alguns pretendem fazer crer – uma ótima forma de mútua ajuda, mas meras associações contra um inimigo”. Para além disso Francisco apresenta a fragilidade dessa forma de se comunicar, pois na sua compreensão: “A conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade”. Demonstra igualmente o mau uso das redes sociais por fanáticos de todas vertentes que propagam a violência verbal através da internet. E vai além demonstrando o quanto nos isolamos em nosso círculo virtual. Mudamos nossa forma de se comunicar.... Criamos um silêncio em que a substituição da palavra pelos clicks substitui a boa conversa. E mais ainda, quando temos oportunidade de conversar, nossa conversa é orientada por informações com poucas sabedorias. Com isso, Francisco nos alerta que esse modo de nos comunicarmos: “coloca-se em perigo esta estrutura básica duma comunicação humana sábia. ” (Francisco, Fratelli Tutti, 2020).
Trata-se de um texto de grande atualidade, encharcado de vida onde demonstra as raízes dos processos de exclusão. Esse é o caso da sua denúncia da lógica colonizadora dos países bem-sucedidos que negam nossa cultura: “Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020). Como alternativa a isso sugere várias formas que valorizem os saberes locais.
Numa encíclica com linguagem universal e com uma proposta cristã muito além de religião Francisco faz poucos usos de citações bíblicas. Quando a faz se utiliza da conhecida Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). Interessante perceber que até aí ela serve para reforçar uma clara opção de reconstrução do mundo. A partir dela fica explícita: a opção pelos mais vulneráveis com suas fragilidades onde “a inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos”. Serve igualmente para refletir sobre os marginalizados de nosso tempo e a atenção ou desatenção dos personagens da época nesse contexto de exclusão. Convida-nos a refletir sobre nossa indiferença de olharmos para quem sofre, porém não nos tocamos. A partir desse olhar Francisco nos desafia a possibilidades de recomeços. Sugere ainda que para não aguardarmos pelos governos e construir um outro caminho com foco no que é bom!
A fresta de esperança para a humanidade está presente no esforço e no convite que nos faz em pensar e gerar “um mundo aberto” de reconhecimento da alteridade com o outro. E enfatiza que a vida subsiste nessa abertura a esse vínculo de comunhão fraterna. A esperança está nessa defesa de um amor universal pela humanidade que a partir da abertura para esses vínculos que nos levam ao” reconhecimento de que somos todos irmãos”. E não para por aí: defende a necessidade de sociedades abertas que integram a todos, alerta para noções inadequadas de um amor universal e denuncia o universalismo autoritário e abstrato. Afirma ser necessário que superemos um mundo de sócios nos chamando a atenção de que o generoso samaritano se opunha a estas classificações fechadas. Afinal ele não fazia parte de nenhuma das classificações societárias da época.
A Encíclica retoma também alguns conceitos centrais da modernidade: liberdade, igualdade e fraternidade e nos mostra os desvios dos discursos criados e suas fragilidades para o seu atingimento, dentre eles o individualismo que para Francisco “não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos”. Daí a necessidade de um amor universal que promove as pessoas com direitos sem fronteiras.
E é nessa abertura ontológica existencial que Francisco nos convida a uma expansão para um coração aberto ao mundo inteiro. Ali faz uma contundente defesa que vai desde abertura das fronteiras para as migrações a valorizações dos saberes locais onde reconhece que uma “sã abertura nunca ameaça a identidade, porque, ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades segundo modalidades próprias” (Francisco, Fratelli Tutti, 2020). E ainda reforça que “o mundo cresce e enche-se de nova beleza, graças a sucessivas sínteses que se produzem entre culturas abertas, fora de qualquer imposição cultural”. E tudo isso conforme Francisco se dá a partir da própria região.
De grande importância para o campo popular é a retomada que Francisco faz das perspectivas de governos: popular ou populista, onde critica os governos populistas pela falta de verdade para com o povo: “Ser verdadeiramente popular – porque promove o bem do povo – é garantir a todos a possibilidade de fazer germinar as sementes que Deus colocou em cada um, as suas capacidades, a sua iniciativa, as suas forças. Esta é a melhor ajuda para um pobre, o melhor caminho para uma existência digna”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020).
Ainda na esteira das distorções está o papel que o mercado assume por vezes querendo ser salvacionista dos problemas da humanidade. Para Francisco “o mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal”. Ainda na perspectiva de abertura ontológica Francisco reivindica um reconhecimento sobre o quanto a dimensão política está intrínseca na vida social por isso defende uma “caridade social e política” inclusive para que possamos ter paz! Critica igualmente aqueles que não querem reconhecer essa dimensão política. Um dos pontos culminantes desse alargamento compreensivo ontológico é o que Francisco denomina de a busca por um amor político onde nele seja possível de “reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020).
O texto vai se tornando cada vez mais atrativo e nesse movimento de abertura tem um dos seus pontos de culminância no desafio de construirmos junto a perspectiva de diálogo e amizade social. Nas suas palavras: “O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo”. (Francisco, Fratelli Tutti, 2020)
Fugindo da lógica relativista onde tudo é permitido, Francisco nos alerta para seu grande perigo pois, o relativismo pode promover espaço de que o poderoso ou o mais hábil consiga impor sua suposta verdade. Seguindo um outro caminho sugere o horizonte de consensos sendo que o principal esteja na possibilidade de “uma nova cultura, o encontro feito de cultura, o prazer de reconhecer o outro, a necessidade de recuperar a amabilidade como processo de libertação.”
Os desafios ontológicos vão na direção de enfrentarmos os de realizarmos percursos de um novo encontro pelo viés da paz e da verdade onde “Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos”. Esse processo exige o que ele denomina de artesanato da paz, lutas legítimas pelo perdão busca de superação do horizonte das guerras e das mentiras. Temos então a defesa segundo Francisco de uma outra luta entre diferentes setores, “quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça”. Assim entende que é possível superar a cultura da guerra pelo horizonte do perdão. E aí destaca finalmente o papel das diferentes religiões nesse processo de humanização do mundo pelo estabelecimento de diálogo, amizade e paz no mundo.
Trata-se de um texto renovador de esperanças, com desafios para além do nosso tempo. Francisco nos convida a uma grande redefinição ontológica e a abertura a novas formas de conviver. Em tempos em que as evidentes patologias socioambientais escancaram o capitalismo como um sistema de descuido e de isolamento, Fratelli Tutti aproxima temáticas que com frequência temos visto em pontos muito distantes: amizade social, amor político, retorno as conversas, silêncio dos clicks das redes sociais e o grande esvaziamento do conteúdo de nossas conversas e o empobrecimento das experiências humanas. Reforça a necessidade de desenvolvermos nosso olhar e nossos projetos para aqueles que não integram sistemas, sociedades nem clubes. Valoriza o olhar e ação do estrangeiro, forasteiro, do imigrante, na figura do bom samaritano reforça uma perspectiva de mundo sem rótulos de maior amor e opção pelos excluídos. Reivindica a valorização dos saberes locais e denuncia os modos de colonização globais que violentam a cultura local.
Fratelli Tutti é um texto para uma humanidade de outro tempo, com a exigência de grandes desvencilhamentos. Talvez, seja por isso que tenhamos a necessidade de reforçar esse olhar universal, abrangente, político e ecológico que em plena travessia da pandemia da Covid-19 nos abre frestas de esperanças na janela de nossas vidas e de toda a humanidade. Por isso, temos a necessidade em demarcarmos o grande alcance ontológico da Encíclica e o desafio que nos aponta para o presente e o futuro da humanidade. Para além de questão de crença, o que aqui está posto é a perspectiva hermenêutica do reconhecimento da fraternidade universal com possibilidades de realizarmos coletivamente nossa travessia frente aos grandes desafios de nosso tempo. Desse modo, sugiro a leitura da carta para todos os campos, acreditando ser possível que encontre nela frestas de esperanças enquanto luta ativa para sua janela da vida, em tempos de crise de sentido e de pessimismo antropológico.
[1] Idem, Discurso no encontro com os jovens do Centro Cultural Padre Félix Varela (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 9.
FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti: Sobre a Fraternidade e a Amizade Social.
PEREIRA, Vilmar Alves. O que será o amanhã? Educação ambiental na América Latina e Caribe, justiça Ambiental e COVID-19. Juiz de Fora, MG: Garcia, 2020
PEREIRA, Vilmar Alves. Ecologia Cosmocena: a redefinição do espaço humano no cosmos. Juiz de Fora, MG: GARCIA edizioni, 2016.
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Uma fresta de esperança pela janela da vida: Fratelli Tutti. Uma ontologia para além do nosso tempo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU