07 Outubro 2020
"Francisco de Assis me inspira e me interpela muito. Diante de Francisco de Assis, precisamos 'tirar as sandálias', pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, pois de tão humano se tornou santo, um irmão universal", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Um autêntico discípulo de São Francisco de Assis me perguntou: “O que significa Francisco de Assis para você?”. Francisco de Assis me inspira e me interpela muito. Diante de Francisco de Assis, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, pois de tão humano se tornou santo, um irmão universal.
Em contexto de violência social, onde o poder religioso encontrava-se em conluio com os poderes econômico e político para assim oprimirem ainda mais os empobrecidos, Francisco de Assis não apenas fez Opção pelos Pobres, mas se tornou um pobre, um “menor” entre os menores: os leprosos da época, os que eram mais excluídos e execrados como impuros e terrivelmente discriminados. Francisco abandonou todo o luxo e as regalias da vida em uma família nobre. Francisco carregou sempre em si a ternura e o amor infinito da mãe dele, o que o ajudou a compreender que Deus nos ama infinitamente. Francisco pulou do cavalo e não aceitou participar de guerra para ampliar o poder econômico do pai fissurado para lucrar no comércio. Ele ficou do lado dos rebeldes de Assis, na região da Úmbria, Itália.
Na sua infinita ternura, Clara foi uma anja humana ao lado de Francisco de Assis. Com postura altaneira, Clara, ao se recusar a aceitar os ditames do poder patriarcal presente no seu pai e no seu tio, deve ter reforçado em Francisco a coragem de romper com tudo o que o aprisionava. Com olhar firme, Clara refutou a ordem do pai e do tio que queriam lhe impor um casamento: “Não cabe a você, tio, e nem a meu pai, determinar se casarei e com quem”. Francisco nunca acreditou em cruzada e nem em nenhum tipo de guerra que para ele nunca poderia ser santa nem justa. Francisco acreditava na força do amor e jamais no poder das armas. Para ele, “só o amor constrói”. Francisco teve a grandeza humana de romper com seu pai patriarcal e autoritário, adepto do mercado idolatrado e da escravidão a tal ponto que chegou a amarrar o próprio filho Francisco com correntes em um tronco e ainda teve a cara de pau de acusar o filho Francisco diante do bispo e de toda a nobreza: “A única coisa que meu filho sabe fazer é explorar o pai, após começar a andar com um “bando” de leprosos”. Porém, Francisco viu mais profundamente: “Eu tenho outro Pai que é Pai de todos nós e quer que eu seja o último entre os últimos. Por isso renuncio a todos os meus direitos sobre seu nome e sobre seus bens”. Que maravilha de postura! Francisco abriu mão do status, do prestígio e do poder, do luxo, da nobreza e da herança. Aliás, herança é uma das armas de reprodução da desigualdade social. Especialmente na sociedade capitalista em que vivemos o mínimo que devia existir é o imposto sobre herança com alíquota de 50% e destinado às áreas sociais para melhorar a vida do povo empobrecido. O justo seria a herança ser partilhada entre todos os filhos e filhas – a sociedade inteira - e não apenas com os filhos de uma família nuclear.
No início do Século XIII, em contexto religioso de negação do ensinamento e da práxis de Jesus revolucionário, Francisco de Assis se apaixonou pelo Evangelho de Jesus Cristo e tornou-se um feliz caminhante, pobre, humilde, que buscava sempre consolar os aflitos. Francisco sempre foi faminto e sedento de justiça, misericordioso, puro de coração, construtor de paz, perseguido por causa da justiça, insultado, caluniado, e, por isso, feliz e contente (Cf. Mt 5,1-12). Ele seguiu à risca o Evangelho que diz “Vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres,[...], venha e siga-me” (Mt 19,21), foi para onde ninguém queria ir: para o meio dos leprosos, passou a viver com eles, os abraçava e beijava, dormiu em pocilga (chiqueiro), inclusive. Esse exemplo de Francisco de Assis foi vivenciado por Che Guevara, argentino, médico e revolucionário. Esse homem foi imprescindível e, quando percorria a América AfroLatÍndia, chegando a um leprosário na selva amazônica, foi advertido pela freira responsável para não entrar em contato com os leprosos, a não ser com luvas, para evitar contágio. No entanto, Che Guevara achava que não podia obedecer às ordens da irmã, pois não queria que a sua atitude de prevenção aumentasse neles o sentimento de exclusão. Por isso, de noite, sem luvas, ele ia e abraçava os leprosos e os acolhia como irmãos. Estes choravam de emoção, porque Che os respeitava como gente. Não houve nenhum contágio. Pelo contrário! Melhorou o ambiente, que se tornou mais fraterno e, por isso mesmo, mais cristão. Francisco dizia: “Lepra, minha melhor mestra!” Assim como Jesus de Nazaré, Francisco de Assis convivia com as pessoas impuras, excluídas e discriminadas.
Para Francisco de Assis, fé em Deus exigia fé em si mesmo e na força espiritual dos violentados da história e na natureza, que é sagrada. No meio de tantas injustiças, Francisco ouviu o mais profundo da mensagem divina: “Agora, vá, Francisco, e restaure minha casa que está em ruínas”. Mais do que uma igrejinha local o que estava em ruínas era a igreja acumpliciada a podres poderes da política e da economia. Francisco descobriu que para ser fiel ao chamado de Deus precisava estar junto aos leprosos. Dizia ele: “Somos todos leprosos, mesmo escondendo nossas chagas. Deus nos ama tanto, mãe, apesar de nossas chagas, que se doou a nós na cruz nos mostrando todas suas chagas”.
É preciso recordar que o “hábito” usado por Francisco era a roupa dos leprosos, “dos irmãos em situação de rua”, era roupa de saco, “chita” da época, muito diferente do hábito franciscano ou carmelita de hoje, que pode soar como status. Francisco e seus irmãos maltrapilhos foram expulsos do seu território. “Não queremos você, Francisco, e este bando de maltrapilhos em nossas terras”, ameaçavam os cavaleiros do poder repressor. Um cardeal, tipo O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, tentou dificultar o acesso de Francisco e seus irmãos ao papa: “Quatro maltrapilhos! Sua santidade não perderá tempo com esses quatro maltrapilhos.”
Francisco dizia: “Se ninguém estiver disposto a dar o primeiro passo e se ninguém tiver a coragem de perdoar, essa guerra não acabará”. Ele se referia à guerra das cruzadas. Hoje, a guerra que nos assola é aquela na qual o sistema capitalista mancomunado com as transnacionais e as elites subservientes à idolatria do mercado impõe aos povos e territórios, ameaçando exterminar a vida humana sobre o Planeta Terra. Uns trezentos anos antes do iluminismo e do mercantilismo, que levaram à absolutização do indivíduo branco, europeu e capitalista ao afirmar os direitos individuais, Francisco de Assis já compreendia e testemunhava que o ser humano não é superior aos outros seres vivos na natureza. Ele aprendeu e cultivou uma espiritualidade universal, ao ver que “todas as terras são santas”, não apenas Jerusalém, e se encantou com a beleza e a sacralidade de toda a natureza. Por isso, para Francisco todos os seres vivos e integrantes da natureza são irmãs ou irmãos: “irmão sol”, “irmã lua”, “irmã água”, “irmão fogo”, “irmã e mãe terra”, “irmã morte”, ...
Nascido no ano de 1182, após viver apenas 44 anos, dia 03 de outubro de 1226, Francisco de Assis partiu para a vida plena e há 800 anos segue renascendo, inspirando humanidade nos corações de milhões de pessoas. E também nos interpelando sempre. Dois anos depois de sua morte, foi reconhecido como santo pelo papa Gregório IX, não porque fez milagres extraordinários, mas porque se humanizou plenamente e já era reconhecido pelo povo que teve a graça e a responsabilidade de conviver com ele. Enfim, Francisco de Assis se tornou outro Cristo e, ao ver, vivenciar e irradiar a espiritualidade de Francisco, Clara se tornou outra Maria Madalena. Por isso e muito mais, Jorge Bergoglio, ao ser escolhido papa, preferiu que fosse chamado de Papa Francisco[1].
[1] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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Francisco de Assis nos inspira e interpela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU