06 Agosto 2020
“Quero enfatizar a incerteza dos tempos. Não temos certeza de que o que acreditamos hoje continuará sendo sustentável em dois meses”. Esta reflexão é do filósofo francês Étienne Balibar. O mesmo que em 1965 publicou, junto com Louis Althusser, “Para ler o capital”. São épocas de ebulição. Ainda faltam três anos para que os estudantes tomem as ruas de Paris, mas esse burburinho, sem dúvidas, adquiriu uma fisionomia diferente daquela da fábrica, e aquele trabalho teórico contribui como um sismo no pensamento marxista, tornando-se um texto fundacional do estruturalismo francês.
Desde então, Balibar se tornou uma referência inescapável do pensamento filosófico. A pandemia o encontra, 55 anos depois daquele começo, longe de qualquer sedentarismo. No entanto, aceitou esta troca de e-mails para pensar os cenários vindouros e avaliar um mundo que, de um modo similar, mas diferente ao dos anos 1960, está em pleno alvoroço.
A entrevista é de Carolina Keve, publicada por Clarín-Revista Ñ, 31-07-2020. A tradução é do Cepat.
Foram feitas muitas interpretações sobre as possíveis realidades que serão moldadas por esta pandemia. Qual é a sua leitura?
Não sabemos quando terminará a pandemia e a crise de saúde que causará, nem sabemos qual será a escala da crise econômica resultante. Não sabemos quais serão as repercussões em termos de sofrimento e destruição, nem os protestos e movimentos políticos que possam surgir. E tudo isto constitui a referência real das palavras que utilizemos e, portanto, de seu significado.
Não acredito que estejamos diante de uma simples interrupção na vida de uma sociedade, nem tampouco diante da ocasião de uma inversão de poder. Talvez o mais acertado seja dizer que estamos diante de uma mudança, mas no modo de mudança em si mesmo, e são os sinais que surgem neste presente que devem nos sugerir, pouco a pouco, as perguntas corretas, em vez de fazer prognósticos diante da crise.
Como avalia que o clima e a situação social evoluirão, na medida em que o medo da pandemia ceda passagem?
Tudo depende do desenvolvimento da crise. Apenas está começando em todo o mundo, também na Europa e na França. Tem dimensões sanitárias (portanto, “biopolíticas”, no sentido de Foucault), econômicas e também, não esqueçamos, morais. No plano econômico, as duas variáveis estratégicas são a multiplicação das dívidas públicas e a forma como podem ser geridas pelos Estados (os bancos centrais) – inclusive em termos de concorrência entre moedas e guerras de divisas – e, por outro lado, os efeitos do desemprego massivo na seguridade social. Neste ponto é onde o conflito, que pode ser muito duro, se desenvolverá frente às políticas de austeridade reforçadas, que não podem se impor sem repressão, ou então projetos alternativos de solidariedades coletivas, em particular sob a forma de sistemas de “ingressos de cidadania universal”.
A experiência histórica demonstra que situações assim geram grandes mobilizações progressivas, mas também fenômenos fascistas de massas, cujo alimento principal é a xenofobia. E aqui vem a dimensão moral da crise. Felizmente, hoje, há exemplos de mobilização política com uma dimensão transnacional e um forte conteúdo moral, como o movimento para salvar o planeta de uma catástrofe ecológica e o movimento pela libertação das mulheres de toda violência sexista, onde se destaca o “Ni una menos”. Isto é o suficiente para evitar o fascismo ou o “populismo” de direita? Não estou seguro. Espero que a consciência crítica nascida da pandemia e a solidariedade que expressa também empurrem nesta direção. Façamos tudo o que for possível para que isto aconteça.
Você destacou que estamos diante de uma profunda transformação...
Não haverá um retorno ao estado anterior. Não tomo isso como uma profecia, mas como a descrição de um estado de coisas. A crise revela condições que se tornaram incompatíveis com uma reprodução do regime anterior. Estamos diante de um processo de transição que já não pode ser interrompido, mas cujos métodos e orientação permanecem indefinidos. Como as civilizações mudaram na história? À custa de que violência, quais invenções e quais conversões? Esta é a pergunta que, como outras gerações antes de nós, teremos que enfrentar, e para a qual nunca houve uma resposta unânime.
Em que sentido?
É claro que as forças poderosas e organizadas acreditam que podem continuar como antes. Nesses chamados a uma reativação da economia – independente do custo humano – não é difícil identificar o projeto de aceleração neoliberal e imaginar os efeitos devastadores que pode haver. Muitas destas tendências, seja a da financeirização e a dívida generalizada ou a da mercantilização do meio ambiente, buscarão se efetivar, mas também é verdade que se depararão com obstáculos igualmente poderosos. E, portanto, as consequências não serão uma reprodução ampliada do neoliberalismo. De fato, as forças do capitalismo devem reinventar uma estratégia de dominação e não é possível que isso ocorra sem conflitos internos entre as diferentes hegemonias.
Aqui aparecem várias questões. Em primeiro lugar, estamos voltando a uma reafirmação dos estados-nação?
A globalização produziu uma interdependência sem precedentes das economias e as sociedades, mas não tem regimes políticos padronizados, níveis de prosperidade igualados, nem aproximou as tradições culturais entre si. Implica polaridades muito fortes entre o Norte e o Sul, assim como entre o Leste e o Oeste. E qualquer análise de uma situação local depende do lugar que ocupa em um campo de relações geopolíticas instáveis.
E o que acontece com a Europa nessa conjuntura? Há tempo, vem sustentando a necessidade de que se reinvente...
A situação não é simples. Nas vésperas do coronavírus, a Europa já estava em um estado de decomposição política e moral avançado. O Brexit é um sintoma, mas não o único. Agora, trata-se de reagir aos problemas colocados por esta crise, com uma tendência a favorecer uma resposta nacional, por razões que são compreensíveis e inclusive justas – é a este nível que se organiza a saúde pública –, mas também por outras negativas, como o aumento dos sentimentos nacionalistas. Vimos um pouco de solidariedade transnacional, mas basicamente foi pouco.
No entanto, houve um fenômeno positivo, que nem todos esperavam: a reversão da posição alemã sobre a acumulação de dívida, e a decisão, em princípio, de fortalecer a solidariedade financeira dos estados europeus, obrigados a emitir grandes quantidades de dívida pública. Resta observar agora sob quais condições este esforço monetário e orçamento será implementado, com quais regras e especialmente em razão de quais projetos econômicos. Se apenas se trata de salvar as indústrias automotiva e aeronáutica é um desastre. Se se trata de colocar em marcha uma transição energética e uma transformação dos modos de produção-consumo, há alguma esperança.
Outra vez surge a pergunta sobre qual será o lugar do Estado nestes processos.
A questão do Estado se tornou, de repente, a questão central do debate político e também filosófico. E o domina uma alternativa herdada dos conflitos ideológicos do século XX, que postula que as intervenções estatais e as atividades de mercado são antitéticas entre si. Mas, realmente é possível falar em sair das leis do mercado, em um mundo onde se generalizou? Que instrumentos permitiriam isto? É complexo e não pretendo reunir os termos de todas estas discussões, mas, sim, gostaria de me ater em um ponto.
Qual?
Na questão da “polícia” – no sentido de Jacques Rancière – que surge em novos termos. Refiro-me às relações que podem surgir entre a necessidade de certas restrições para organizar o fornecimento dos serviços universais e as práticas de padronização e controle que subjugam os que acessam estes mesmos serviços. Certamente, há algo paranoico nas descrições que as grandes mentes nos oferecem, neste momento, sobre uma evolução irresistível do estado de exceção, que é o confinamento, para uma sociedade totalitária. Mas esta dificuldade não se resolve com um “retorno aos princípios” do estado de direito, já que tem sua origem nestes mesmos princípios.
Ao contrário, apontaria à obrigação de um Estado que tinha se dedicado por completo aos interesses da classe dominante a se colocar a serviço público, inclusive retirando os recursos necessários da economia de mercado e os mobilizando de maneira racional, sob um controle democrático.
Considera que a reivindicação de “Black lives matter”, nos Estados Unidos, se relaciona com as mobilizações na França pelo assassinato policial de Adama Traoré, em 2016?
O movimento social de “Justiça para Adama” é frágil, mas extremamente interessante e produtivo. Os que o dirigem mostraram uma grande inteligência surpreendendo a opinião conservadora, mas também parte da opinião progressista que não viu o retorno da política vindo deste lado. Aparentemente, a crise do coronavírus havia sufocado as aspirações de uma política democrática e antiautoritária, mas estas ressurgem onde não se esperavam, conseguindo unir um grande número de forças diversas.
Acredito que houve dois elementos que desempenharam um papel de cristalização: a consciência crítica, nascida da prova da pandemia em muitos cidadãos, e o entusiasmo despertado por “Black Lives Matter”, após o assassinato de George Floyd e o assassinato de outros ativistas.
Existem diferenças na história dos fenômenos do racismo institucional na França e nos Estados Unidos, mas não até o ponto de ocultar as enormes semelhanças. E, sobretudo, o movimento nos Estados Unidos tem uma autêntica dimensão insurrecional, extremamente comunicativa, que faz com que as pessoas de minha geração pensem no “contágio” que ocorreu nos anos 1960, especialmente em 1968. Precisaremos observar como as coisas evoluem nos dois lados, mas não posso deixar de dar as boas-vindas à novidade.
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“A crise revela condições que se tornaram incompatíveis com uma reprodução do regime anterior”. Entrevista com Étienne Balibar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU