20 Mai 2020
“Diante de falhas evidentes na organização da produção mundial, é esperável uma reviravolta sobre um nacionalismo econômico que está em seu momento mais alto. Em sua mão está a capacidade de atrair adeptos para sua causa. Se conseguir, então poderemos realmente falar de desglobalização”, avalia Jorge Díaz Lanchas, economista e professor associado da Universidade Loyola Andaluzia, em artigo publicado por Letras Libres, 18-05-2020. A tradução é do Cepat.
Definitivamente, parece que já podemos dizer que a desglobalização está tomando forma. Muitas foram as análises que esboçaram o início do fim da globalização, a partir de 2016, e antes da chegada de Trump ao governo. Ou, pelo menos, que antecipavam uma mudança de época dentro do maior processo de integração econômica internacional que o mundo já experimentou.
Até então, esses presságios vinham de mãos dadas com um nível mais baixo de comércio internacional. Durante a primeira metade de 2016, até a China apresentou taxas de crescimento do comércio notavelmente baixas, que evidenciavam que o motor do crescimento chinês estava apagando. Se o grande beneficiário da integração comercial já não podia mais seguir se aproveitando dela, o que esperar do resto das economias? No entanto, a China surpreendeu novamente e respondeu com outro arsenal de políticas econômicas que permitiu reativar boa parte da atividade econômica e comercial perdidas. O que poderia ter sido o começo da desglobalização, por fim, não ocorreu.
Após esse episódio, surgiriam tensões protecionistas e a guerra comercial de Trump. Sua agenda política agiu como um freio e retrocesso na liberalização comercial que os Estados Unidos haviam liderado, a partir dos anos 1970. O fato de a economia líder de abertura internacional ter optado unilateralmente por se fechar, corroendo não apenas suas relações comerciais, mas também políticas com outros parceiros comerciais, realmente, foi entendido como um antes e um depois, em uma globalização impulsionada precisamente por essa potência econômica.
Tal foi o paradoxo que, no discurso de abertura do Fórum Econômico Mundial de 2017, em Davos, o outro líder da economia mundial, Xi Jinping, chefe do Partido Comunista Chinês, defendeu fortemente a globalização como um mecanismo para gerar riqueza e cooperação multilateral entre países. Em outras palavras, no mesmo ano, tivemos o líder da potência capitalista defendendo o protecionismo comercial, enquanto seu colega chinês estava defendendo uma maior integração econômica.
Embora Trump tenha conseguido boicotar boa parte do multilateralismo, suas pretensões em apostar nas políticas protecionistas como um instrumento para forçar negociações bilaterais com seus parceiros comerciais, especialmente China e Alemanha, parecem ter tido poucos frutos. A realidade acabou sendo muito mais dura. Naquele momento, Trump não levou em consideração as sementes que tinham sido implantadas em todo o mundo e que transformaram para sempre o conceito de relações comerciais.
Sementes, a propósito, bem projetadas por suas próprias empresas estadunidenses. Tornaram-se cadeias de produção globais que se estendiam por todo o planeta. Com elas, a administração estadunidense precisou entender que dobrar seus parceiros comerciais não seria possível sem prejudicar sua própria economia nacional. O que nos anos 1930 era possível, caso um país agisse antes dos outros parceiros, atualmente, não é mais tão simples, uma vez que as próprias empresas assumiram a liderança na realocação de processos de produção em vários países. As medidas protecionistas tomadas unilateralmente por um governo acabam prejudicando a competitividade de suas próprias empresas. Em outras palavras, na globalização do século XXI, é mais difícil arruinar outros parceiros comerciais, sem arrastar também as próprias empresas nacionais.
A desglobalização não seria possível sem prejudicar as economias que lideravam o protecionismo. Isso não quer dizer que os níveis de integração não tivessem sido alterados. Desde 2007, observa-se nos indicadores uma menor integração das cadeias produtivas globais, isso se deve à estagnação secular e à baixa demanda internacional que a economia internacional sofre, desde o início da Grande Recessão, e não tanto a uma mudança estrutural no próprio processo globalizador. Mais uma vez, o início da desglobalização teve que esperar.
Em 2020, veio o maior impacto econômico e sanitário na história recente. É difícil pensar o que esperar e quais cenários teremos, conforme a crise atual vá se resolvendo, mas há vários elementos que podem sugerir que o colapso internacional será maior do que o sofrido entre 2008 e 2009. A queda simultânea e abrupta da produção e demanda internacional não tem comparação. Na crise anterior, a demanda internacional conseguiu amortecer parte da queda da demanda interna enfrentada pelos diferentes países, mas esses estímulos podem não existir no cenário atual, uma vez que ocorreu a ruptura em todas as principais economias.
Por outro lado, a crise da saúde expôs o calcanhar de Aquiles das cadeias produtivas globais, destacando a fragilidade inerente que sofrem as economias que não possuem determinados insumos e produtos básicos em momentos críticos. Não apenas isso, mas a alta dependência industrial entre as economias ficou evidente.
Com a crise financeira de 2008, vimos que a interdependência entre países tinha lugar dentro dos circuitos de capitais. No entanto, a Covid-19 mostrou que há uma escassez de bens básicos e necessários para enfrentar uma crise de saúde, como consequência da excessiva especialização dos países na produção de certos bens.
Nesta ocasião, as falhas das cadeias produtivas globais colocaram sobre a mesa argumentos a favor da segurança nacional e da reorientação por parte da indústria nacional. O paradoxo está servido. Se as cadeias de produção serviram para diminuir a guerra comercial de Trump, na crise da Covid-19 podem acabar se tornando o germe de posições protecionistas. Essas posições não são apenas defendidas pelas forças políticas populistas e nacionalistas, mas também por outros partidos com uma tradição social-democrata, liberal e conservadora, que neste momento estão fazendo uma aposta decidida em manter os canais comerciais e diplomáticos abertos para garantir o abastecimento desses produtos.
Mas não sabemos quanto tempo durará essa aposta e se a manterão durante a crise econômica, uma vez a sanitária resolvida. Caso a política de segurança nacional se torne mais forte, podemos esperar reversões nas cadeias produtivas globais. Por um lado, essa reversão pode ser incentivada politicamente por meio de decisões de abastecimento nacional. Por outro lado, se as empresas matrizes começarem a ver que os custos de coordenação de suas subsidiárias localizadas em outros países superam os benefícios de tal terceirização, podem ser tentadas a devolver parte da produção aos países de origem. De fato, o atual ambiente de instabilidade econômica e política intensificou esses custos, o que seria uma interrupção no processo de globalização, caso as empresas comecem ver que a reversão da produção é uma estratégia comercial atrativa.
Essa paralisação na integração, ainda que possa ser negativa para a economia mundial, também pode ter efeitos positivos em determinados territórios. Assim, se houver fases do processo produtivo que foram previamente realocadas para outros países, aproveitando seus custos de mão de obra mais baixos, essas mesmas fases poderão ser redirecionadas para territórios nacionais que tenham vantagem comparativa nos custos de produção. Se houver um renascimento internacional do protecionismo, uma estratégia industrial coerente e articulada entre os níveis nacional e regional poderá explorar as vantagens que o novo ambiente oferece.
Durante as reuniões do G20, em 2008, surgiram fortes lideranças políticas (Obama, Gordon Brown, Merkel) que evitaram uma escalada protecionista como resposta à crise econômica. Atualmente, claramente carecemos dessas lideranças, mesmo dentro da própria União Europeia. Diante de falhas evidentes na organização da produção mundial, é esperável uma reviravolta sobre um nacionalismo econômico que está em seu momento mais alto. Em sua mão está a capacidade de atrair adeptos para sua causa. Se conseguir, então poderemos realmente falar de desglobalização.
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O paradoxo da desglobalização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU