30 Julho 2020
Walden Bello: uma vida vivida em nome dos direitos humanos. Desde o combate à ditadura nas Filipinas até o desenvolvimento de propostas para um mundo pós-pandemia mais igualitário: se são as ações que determinam a grandeza de um ser humano, então ele é, em todos os aspectos, um gigante.
A entrevista é de Francesca Lancini, publicada por LifeGate e reproduzida por OutrasPalavras, 28-07-2020. A tradução é de Simone Paz.
Nascido em Manila, em 1945, Bello desempenhou um importante papel na história da esquerda progressista mundial. Sociólogo, acadêmico, ambientalista e ativista, previu mudanças históricas graças uma intuição afiada. Quando ainda era um estudante universitário no Chile, viu a extrema-direita derrubar o presidente Salvador Allende. Nos EUA, onde atualmente é professor, Bello descobriu provas de que o Banco Mundial e o FMI tinham apoiado o regime autoritário de Ferdinand Marcos nas Filipinas (1965-1986) e seu livro inspirou o movimento popular que o derrubou.
Bello foi o primeiro a apontar os terríveis resultados do “milagre econômico asiático”, começando pela crise financeira de 1997 – precursora de outros colapsos do mercado de ações. Em 1999, foi gravemente espancado pela polícia em Seattle, quando protestava pela reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC); também arriscou sua vida durante a repressão às manifestações no Fórum Social de Gênova, em 2001. Mas nunca desistiu. Em 2003, recebeu o Prêmio Right Livelihood — também conhecido como “Prêmio Nobel Alternativo” — e atuou no congresso de seu país entre 2009 e 2016. Naomi Klein já se referiu a ele como fonte de inspiração. “Nessas horas, em que nossos valores progressistas são atacados ou ridicularizados, é que somos testados. E é quando temos de reafirma-los”, nos conta nesta entrevista.
Bello falou conosco a partir de Bangkok, onde dirige um think tank chamado Focus on the Global South (“Foco no Sul Global”). “Aqui pude observar como a cooperação entre a sociedade civil e as autoridades de saúde pública produziram uma resposta sólida à crise”. Ele compartilhou sua visão do mundo durante e depois da pandemia de coronavírus — a crise mais recente que nos forçou a aprender com o passado e a repensar o futuro.
Onde você passou a quarentena? Como tem sido essa experiência?
Fiquei isolado em Bangkok, Tailândia. Mas foi uma coisa boa porque pude observar como a cooperação entre a sociedade civil e as autoridades de saúde pública, com base na confiança desenvolvida ao longo de cinco décadas de campanhas bem-sucedidas, produziu uma resposta sólida à crise. A Tailândia conteve a covid-19, com pouco mais de 3.200 infecções e “apenas” 58 mortes. Em contraste com as centenas de milhares de infecções e mortes nos EUA e na Europa, isso é simplesmente incrível.
Mas não só a Tailândia…
Taiwan registrou pouquíssimas mortes e o Vietnã, nenhuma. Em nenhum dos três casos se tratou de líderes autoritários dando ordens desde cima que se mostraram decisivas. Inclusive, a liderança militar na Tailândia cometeu erros graves no início. O que fez a diferença não foi apenas o uso de máscaras, que na Tailândia chegava a 95% (contra 15% no Reino Unido e 48% nos EUA). Foram as autoridades de saúde pública, trabalhando em estreita colaboração com a sociedade civil, que estabilizaram a situação e contiveram a disseminação do vírus. Higiene, em conjunto com um sistema de saúde pública com apoio popular, foi fundamental. A liderança política e seu decreto de emergência foram, na verdade, supérfluos.
Você diz que essa pandemia, essa segunda crise em uma década, nos mostra mais uma vez que “o neoliberalismo está morrendo”. Como podemos convencer as pessoas disso?
A pandemia devastou um mundo que ainda não tinha se recuperado da crise financeira global de 2008 e suas consequências. Antes da pandemia, já havia uma forte desilusão nos EUA, pelo fato do governo ter preferido resgatar os grandes bancos em vez dos pequenos proprietários falidos, e pelo desemprego ter permanecido muito alto, mesmo depois de 2008, devido à resistência neoliberal aos gastos do governo. O sul e o leste da Europa estavam envolvidos em programas de austeridade destinados a enxugar a população e os fundos necessários para pagar as instituições públicas europeias e o FMI, que resgataram bancos alemães e franceses. A última década viu a economia mundial num estado de “estagnação secular”, como o próprio Fundo Monetário Internacional admitiu. Então, veio a pandemia e os sistemas econômicos, que já tinham problemas, congelaram. O PIB caiu entre 4% e 7% nas principais economias mundiais, no primeiro trimestre deste ano — o maior declínio em décadas — e as estimativas mais otimistas veem um declínio de pelo menos 6% no PIB global em 2020. Milhões foram jogados nas estatísticas de desemprego — cerca de 30% da força de trabalho dos EUA, por exemplo.
Como os governos estão reagindo a essa situação?
Os governos foram forçados a ir além das suas típicas respostas à crise financeira, tendo de intervir em grande escala com programas de estímulo – para evitar uma catástrofe econômica, seguida de apocalipse político. A diferença entre uma fraca resposta à crise financeira e outra relativamente vigorosa à pandemia — embora ainda limitada — tem sido uma grande surpresa para as pessoas. Mostrou o que é possível, quando os governos desconsideram as soluções de mercado e optam por ações decisivas. Em suma, a credibilidade do pensamento neoliberal e da sua formulação de políticas, já abaladas pela crise financeira e suas consequências, foram prejudicadas mais ainda pela pandemia. A única questão que resta é se a morte do neoliberalismo será rápida ou “lenta”, como afirma o economista Dani Rodrik.
Depois de dois meses de uma rígida quarentena, prevê-se uma enorme crise econômica na Itália. Como o sistema pode ser tão frágil? Até a década de 1980, fábricas, lojas e serviços fechavam por pelo menos um ou dois meses durante o verão, e isso acontecia todos os anos.
As economias do Norte e do Sul globais são muito mais frágeis hoje do que nas décadas de 1970 e 1980, devido a três fatores. Primeiro, porque a globalização da produção levou à desindustrialização de muitas economias do Norte, à medida em que processos intensivos em mão-de-obra foram deslocados para o Sul, onde os salários eram muito mais baixos. As cadeias de suprimento globais substituíram a produção doméstica, tanto na indústria quanto na agricultura: elas parecem eficientes, mas na verdade são muito frágeis, suscetíveis a rupturas por guerras, desastres e pandemias. Quando a covid-19 chegou, as linhas de produção da China pararam, gerando uma grande escassez de bens essenciais em muitos países, incluindo máscaras e outros equipamentos de proteção individual. E agora vem a ruptura das cadeias globais de fornecimento de alimentos no mundo todo, levando à possibilidade de escassez de comida – e, portanto, fome — em determinadas regiões nos próximos meses.
E as outras duas razões?
Segundo: as políticas neoliberais acabaram com o consumo, e todos sabemos que o consumo é o motor da demanda. No norte global, os salários ficaram estagnados por duas décadas e as pessoas tiveram de recorrer a empréstimos em massa. Quando a crise financeira de 2008 chegou, os empréstimos não eram mais uma opção, forçando um grande número de pessoas a perder suas casas e cair na pobreza. Ao mesmo tempo, políticas projetadas para aumentar a taxa de lucro levaram a uma desigualdade cada vez maior.
Terceiro, com a indústria estagnada, o dinheiro que iria para investimentos foi para o mercado financeiro, onde poderia gerar lucros maiores graças à especulação. Embora contribuindo com apenas cerca de 5 a 10% do PIB, o setor financeiro nos EUA detinha cerca de 40% de todos os lucros das empresas. Investir em finanças, no entanto, não cria novo valor. O lucro é obtido por meio da especulação ou das apostas no aumento do preço dos ativos em comparação com o seu valor real. Isso significa que esses preços podem vir a colapsar, vem a crise financeira e, logo em seguida, uma forte retração na economia real e produtiva.
Como podemos nos recuperar?
É uma perspectiva muito difícil. A única recuperação sustentável possível é uma que se afaste radicalmente dos princípios do neoliberalismo e envolva um grande grau de intervenção do Estado. A questão é: será que a intervenção estatal vai ser progressiva, inclinada a uma direção socialista, ou repressiva, inclinando-se numa direção fascista?
Você poderia explicar seu “caminho alternativo” para substituir um sistema neoliberal moribundo? O que você quer dizer com “desglobalização”?
Vejo três caminhos possíveis sendo oferecidos às pessoas para sair da crise atual. Uma é a restauração das políticas neoliberais, o que será muito difícil, pois elas simplesmente não produzirão nada além de uma maior desigualdade, que as pessoas não aceitarão mais. Uma segunda via é a progressista, pela qual há uma maior intervenção do Estado no contexto da democratização das tomadas de decisão econômicas, do empoderamento popular, de maior igualdade e da adoção de políticas econômicas ecologicamente sustentáveis.
Nos últimos anos, têm surgido muitas políticas e paradigmas empolgantes, propostos com esses fins, como o decrescimento, soberania alimentar e desglobalização. Eu gosto muito da desglobalização, que busca tornar a demanda doméstica — criada por meio de medidas igualitárias — a peça central da economia. Outro objetivo é proteger a indústria, a agricultura e o emprego de deslocamentos criados por importações industriais e agrícolas não controladas.
A terceira via, e a mais preocupante, é a via fascista. Aqui, a intervenção estatal na economia ocorre no contexto de uma política que sequestra de forma oportunista as medidas de bem-estar social associadas à esquerda. No entanto — e isso é crucial — afirma que apenas aqueles com a cor de pele “certa”, que provêm do grupo étnico “certo” ou que pertencem à cultura “certa” merecem desfrutar dessas medidas. Minorias e imigrantes passam a ser bodes expiatórios, apontados como a fonte dos problemas e da desordem sociais. A corrida para substituir um neoliberalismo moribundo está entre a opção progressista e a via fascista.
Você foca na psicologia das massas para entender os fenômenos sociais. O que acha que está acontecendo hoje?
Em 2008, as pessoas ficaram chocadas quando veio a crise financeira, após quase duas décadas de relativa tranquilidade. Embora a desigualdade estivesse crescendo por baixo da superfície, o público não estava tão alienado assim do sistema capitalista neoliberal. Hoje as coisas são diferentes. No Norte global, as pessoas estão ficando cansadas. E no Sul, é claro, os programas contínuos de ajuste estrutural neoliberal do FMI e do Banco Mundial, que vêm sendo aplicados desde o final da década de 1970, fizeram com que muito poucas pessoas tenham qualquer esperança de desenvolvimento sob o neoliberalismo. O otimismo popular e dinâmico que existia na era da descolonização, entre os anos 50 e 70, se extinguiu.
A extrema direita vem se aproveitando do descontentamento mundial em diversos continentes e você vê semelhanças com a década de 1930. Pode nos dizer quais são? Como podemos inibir um ressurgimento repressivo desses?
Infelizmente, na atualidade, a extrema-direita é a que está melhor posicionada para tirar proveito do descontentamento global. Isso ocorre porque, mesmo antes da pandemia, os partidos de extrema direita já vinham selecionando de forma oportunista certos elementos anti-neoliberais e de programas da esquerda independente, mas colocando-os dentro de uma gestalt de direita (num “todo organizado”). Exemplos dessa tendência incluem a crítica à globalização, expansão do estado de bem-estar e maior intervenção estatal na economia. Então, na Europa, você vê partidos radicais de direita — entre eles, o Rally Nacional de Marine Le Pen (anteriormente Frente Nacional) na França, o Partido do Povo Dinamarquês, o Partido da Liberdade da Áustria, o Partido Fidesz de Viktor Orban na Hungria – que se livram apenas da parte antiga dos programas neoliberais que defendiam a liberalização e uma menor tributação.
Então, passaram a proclamar que são a favor do estado de bem-estar e de maior proteção da economia contra compromissos internacionais, mas exclusivamente para o benefício das pessoas com “cor de pele certa”, “cultura certa”, “etnia certa”, “religião certa”. Essencialmente, é a antiga fórmula nacional-socialista de inclusão de classes, mas racial e culturalmente exclusivista, cujo expoente absoluto, hoje em dia, é Donald Trump. Infelizmente, isso funciona em nossos tempos conturbados, como mostra a inesperada série de sucessos eleitorais da extrema direita que piratearam grandes setores de base da classe trabalhadora da social-democracia.
E a extrema-direita na Ásia?
Surgiram dois líderes no Sul global que ilustram facetas da dinâmica de extrema-direita de forma muito mais evidente do que no Norte. O Presidente Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e o Primeiro Ministro da Índia, Narendra Modi, pertencem à extrema-direita. Eles são muito populares; em parte, porque souberam se aproveitar do descontentamento das pessoas com as falhas da democracia liberal, especialmente na lacuna entre suas promessas de igualdade e a realidade de profunda desigualdade e pobreza. São indivíduos carismáticos que convenceram grande parte da população de que seus programas antiliberais seriam a solução para os males da sociedade. Estamos testemunhando um paradoxo no qual eleições livres confirmam enfaticamente o seu poder e levam o poder a estar cada vez mais concentrado em suas mãos.
Como a esquerda poderia se reconectar com o povo?
Antes de tudo, acho que devemos admitir que, apesar do nosso lado ter muitas boas ideias para transformar o mundo, na prática, essas ideias não foram traduzidas para as massas críticas. Assim como a direita aprendeu com a esquerda, talvez devêssemos ver se também não há lições que o sucesso da direita ofereça à esquerda. A História é um movimento dialético complexo e, muitas vezes, há desenvolvimentos inesperados. Estes podem gerar oportunidades para que pessoas corajosas o suficiente saibam aproveitá-las, para pensar fora da caixa; e também para aqueles dispostos a entrar no navio da imprevisível navegação rumo ao poder. Existem muitas pessoas assim na esquerda, especialmente entre as gerações mais jovens.
A nova esquerda precisa enfrentar a realidade de que a razão — que sempre foi seu forte — é de valor limitado hoje em dia, quando se trata de conquistar o poder político necessário para reestruturar a sociedade. Além disso, deve reconsiderar o lugar das emoções na política, algo de que sempre suspeitou; geralmente, com razão. A esquerda consegue comprometer-se com sua antiga crença no eleitor racional, ou no cidadão racional, e manter-se fiel aos seus valores? Quando Antonio Gramsci diz “pessimismo da razão, otimismo da vontade”, acho que se refere a esse compromisso. Mas, talvez, a curto prazo, a lição que a esquerda deveria aprender é que a história é implacável e raramente tolera cometer o mesmo erro duas vezes. Se os progressistas permitirem novamente que social-democratas desacreditados na Europa, e democratas como Obama e Biden nos EUA, arrastarem a política progressista de volta a um novo compromisso com um neoliberalismo moribundo, as consequências poderão ser verdadeiramente fatais.
Você já travou muitas batalhas em nome dos direitos humanos. Como ainda encontra forças e esperança?
Para ser sincero, hoje em dia, passo por sérios momentos de dúvida quando vejo pessoas indo para a direita. Me pergunto: estou no caminho certo? É muito natural experimentar momentos de dúvida. Mas é nesses momentos, quando nossos valores progressistas são atacados ou ridicularizados, que somos testados e nos deparamos com a opção de nos afastar deles e ficar calados, ou afirmá-los. É quando os valores progressistas não são populares que o teste real chega até nós. Mas, também estou ciente das minhas limitações e de minha geração, a geração de 1968, que dominou a esquerda global desde o final dos anos sessenta até o início dos anos 2000. Sei que estamos trabalhando com paradigmas antigos e datados de análise e organização – ou será que estamos presos neles? Precisaremos de líderes da geração atual para nos levar adiante, pessoas mais jovens, capazes de fazer o que não conseguimos, e que podem surgir em circunstâncias não-ortodoxas e imprevisíveis.
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Caminhos para enterrar um sistema moribundo. Entrevista com Walden Bello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU